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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Análise: Memórias de um Homem em Pijama



Memórias de um Homem em Pijama, de Paco Roca

Memórias de um Homem em Pijama está carregado de coisas boas mas, infelizmente, tem uma mancha na sua edição, à qual é difícil fazer vista grossa.

Comecemos pelas coisas boas: esta é uma obra do autor espanhol Paco Roca, composta por pranchas humorísticas, que foram sendo publicadas entre 2010 e 2011, no jornal espanhol Las Provincias.

Sendo Paco Roca um autor completo – encarregue da história e ilustração - em praticamente todos os seus livros, é de salientar que o seu fulgor para o texto parece ser muito profícuo. Se em Rugas, somos esmagados emocionalmente pela sua sensibilidade para aprofundar um tema tão complexo como a velhice; se em Os Trilhos do Acaso temos um muito bem detalhado livro histórico e bélico; se em O Tesouro do Cisne Negro, escrito em parceria com Guillermo Corral, temos uma história ao nível de um policial norte-americano; ou se em O Inverno do Desenhador temos um relato pormenorizado acerca das aventuras e desventuras da célebre Editora espanhola Bruguera; neste Memórias de um Homem em Pijama temos algo completamente diferente daquilo que o autor nos deu com as obras acima mencionadas. O que temos nesta obra é um texto humorístico. Um livro em que cada página nos oferece uma breve rábula do dia-a-dia do autor.

E tenho que dizer que, mais uma vez, Paco Roca oferece-nos qualidade. Não é um texto para chorar a rir, mas é um texto que nos deixa bem-dispostos. Que nos faz sorrir. Com um teor que nos remete, de certa forma, à série televisiva norte-americana Seinfeld, tal como a Levoir bem refere na contracapa do livro. 

Paco Roca conta-nos as suas histórias pessoais e aquelas que envolvem as pessoas que o rodeiam. Situações mundanas do quotidiano de um homem, na casa dos quarenta, que consegue realizar o seu sonho de criança que é trabalhar em casa, de pijama. 

São pequenas histórias pessoais, quase apontamentos, que o autor nos dá, tal como se abrisse a porta da sua casa para nos mostrar como é a sua vida e a sua pessoa. No fundo, é uma obra autobiográfica, que nos faz conhecer melhor este autor. No final, a ideia com que fiquei, é que Paco Roca deve ser uma pessoa muito divertida e com um apurado sentido de humor.

Este tipo de humor é o tipo de humor que catalogo como “humor seguro”. Não arrisca demasiado e joga pelo seguro. O resultado é que nunca faz rir desalmadamente mas quase sempre faz ficar com um sorriso na cara, no final de cada rábula. Funciona bem, portanto.

Devo dizer que mais do que nunca, esta obra faz sentido em Portugal e no resto do mundo, tendo em conta o confinamento que (quase) todas as pessoas se viram forçadas a fazer, a propósito da pandemia de Covid-19. A maioria das pessoas teve pois que trabalhar a partir de casa (possivelmente, de pijama), encarando uma nova realidade. Por este motivo, considero que dificilmente a editora Levoir poderia ter tido um melhor sentido de oportunidade. Não faço ideia se a obra até já estava pensada antes da pandemia de Covid-19. Se já estava, foi uma sorte feliz, por parte da editora. Se não estava, bato palmas a esta iniciativa tão oportuna.

Quanto ao estilo de ilustração, Paco Roca mantém-se fiel a ele próprio. Um desenho que utiliza a linha clara, cores fortes, e um estilo de ilustração "cartoonizado". É curioso verificar que em termos de texto, Paco Roca faz coisas muito diferentes nas suas obras, como já mencionei acima, mas que, em termos de ilustração, mantém sempre o mesmo género. E não há nada a apontar. É o seu estilo e funciona bem nas suas histórias. Em Memórias de um Homem em Pijama, sendo uma obra cómica, funciona melhor que nunca, diga-se.

Ora, aparentemente, esta é uma obra interessante, lançada num bom timing, de um bom autor de banda desenhada, bastante respeitado em Portugal. Assim sendo, não haveria grande motivo para queixas, certo?
Errado!

E provavelmente, o leitor de banda desenhada atento já desconfiará daquilo que vou comentar. É que, este livro, foi editado de forma desastrosa! E não o digo em relação ao papel utilizado ou à encadernação, que é semelhante aos lançamentos da editora Levoir, na sua Coleção Novelas Gráficas – a própria opção por considerar esta obra, uma compilação de pranchas humorísticas, em “novela gráfica” não faz qualquer sentido, mas já nem vou por aí. 
Avanço então para o grande problema deste livro.

O grande problema reside, pois, no facto de Memórias de um Homem em Pijama ter sido lançado com páginas constituídas por 9 vinhetas quando cada uma das histórias foi pensada para ter 12 vinhetas. Ou seja, na prática, o que esta edição da Levoir faz, é cortar as três últimas vinhetas de cada história, e enviá-las para a página seguinte, fazendo com que todas - repito, todas – as histórias fiquem desorganizadas e de leitura difícil, com uma fluidez que é igual a zero. Isto arruína por completo a experiência de leitura.

Os mais otimistas poderão perguntar: “Então mas, com esta divisão das histórias por páginas, não dá para perceber a piada de cada uma das histórias?”.  A resposta é “Sim, dá para perceber”. Mas o que é mais importante, é que a piada se perde por si e tem que ser o leitor a "repescá-la". Mais atrás mencionei a série televisiva Seinfeld e agarro agora nesse exemplo: imaginem o que era o Seinfeld começar a dizer uma qualquer piada e, quando está a chegar o momento da tirada cómica final, irmos para intervalo! Seria inadmissível, certo? Pois, mas é o que se passa nesta edição de Paco Roca. É claro que todos percebemos a piada mas o problema é que a leitura da rábula fica sem qualquer fluidez. E não é a mesma coisa. Perde-se o momentum, perde-se o ritmo, perde-se a cadência. Tal como um músico que perde o tempo a meio de um compasso e depois tem que entrar atabalhoadamente no início do compasso seguinte.

Não tenho interesse em procurar a “culpa” desta triste escolha. Algures na blogoesfera já li que foi o próprio autor que autorizou este formato. Se o fez, fê-lo mal. Péssima decisão. Também já li que esta opção editorial passa por uniformizar o formato porque há mais dois álbuns, para além deste Memórias de um Homem em Pijama #1, que poderão vir a sair. Ou que a edição nos outros países também é com 9 vinhetas por página. Seja como for: qualquer desculpa é esfarrapada para esta opção. Não me interessa se foi a Levoir que escolheu esta opção. Ou se foi Paco Roca. Ou se foram outras editoras. Interessa-me é - a mim e aos leitores portugueses - o resultado final dessa escolha. Que é este: esta edição é um crime contra a própria obra. Uma missed oportunity, como dizem os ingleses. A ideia de lançar a obra foi excelente mas a forma como foi feita, foi completamente ao lado. Como um remate que, no futebol, sai pela linha lateral.

Porque o que aqui parece estar a ser esquecido – e me choca, principalmente – é que um dos alicerces da banda desenhada é a própria planificação da mesma. Quando o género de bd é o thriller, por exemplo, já se sabe que é quando folheamos a página que vamos ver algo que nos surpreende e nos deixa entusiasmados. Algo que responda ao cliffhanger da página anterior. Ora, se isso for trocado, então lá se vai o thrilling effect. Lá se vai a ideia do autor. Em banda desenhada humorística isto também é especialmente relevante. É que uma piada obedece a um ritmo, e tem um determinado momentum para ser dita. Se isso é alterado, perde-se a punchline. E a punchline é, sem qualquer dúvida, a parte mais importante de qualquer piada que se conte, veja ou leia. Desde as comédias clássicas da Grécia Antiga. Desde sempre. Ninguém, que aprovou esta decisão de dividir as histórias, pensou nisto? É uma das leis bases da criação de um texto, seja ele um conto, um poema ou uma banda desenhada! A mim incomoda-me mais isto do que se o livro tivesse sido impresso com cores esbatidas. Era grave, mas não tanto. Ou que as páginas viessem coladas. Era grave, mas não tanto. Ou outra coisa qualquer que pusesse em causa a boa edição da obra seria grave mas não tanto. Cortar o ritmo a um texto humorístico é como um coito interrompido subitamente. Podemos retomar, é claro. Mas a piada da coisa, o ritmo, a construção… já eram. E infelizmente, é isso que acontece neste álbum.

E se, de facto, a ideia era harmonizar o formato do livro, haveriam imensas formas de o fazer, sem ter este problema: poder-se-ia ter optado por uma singela marca gráfica a dividir a história. Essa marca gráfica podia ser um símbolo, um boneco do Paco Roca, um pijama, umas pantufas, qualquer coisa. 
Ou até a palavra “FIM”. Ou a assinatura do autor. Qualquer coisa seria melhor do que aquilo que (não) foi feito. Ou até – vejam lá como isto é um problema que era tão facilmente resolvido – poderia haver um simples espaçamento entre histórias, que fosse ligeiramente maior do que o espaçamento entre vinhetas da própria história.  Dar dois "enters" entre histórias, pronto.

Vou ainda mais longe e digo uma coisa que, curiosamente, ainda não li em nenhum lado. Tenho lido que a razão disto, prende-se com a mudança do formato e que, com este formato, a história teria que ser dividia em 9 vinhetas por página. Tirei uma foto a uma página, abri o photoshop e facilmente cheguei à conclusão que poderia perfeitamente ter sido mantido este formato do livro, maior do que o original, e ainda assim, assegurar as 12 vinhetas por página. Ou seja, por outras palavras, o livro poderia medir exatamente os mesmos centímetros e, mesmo assim, manter as 12 vinhetas por página. Não acreditam? Ora vejam:

Páginas do Livro como nos é dado. Notem como é imperceptível onde começa uma história e onde acaba a outra. Parece que estamos a ler uma só história. A fluidez é zero.

Páginas do Livro COMO deviam ter saído. 12 vinhetas por página que cabem perfeitamente neste formato, sem se mexer no tamanho das vinhetas. Aqui fica provado que dava para ter sido editado o livro com as 12 vinhetas por página. Isto foi feito em photoshop sem alterar as dimensões das vinhetas.

Digam-me lá então, olhando para as duas imagens acima, se não era perfeitamente viável manter-se a estrutura original das histórias, com 12 vinhetas por página, lançando o livro com as mesmas dimensões. Não me considero uma pessoa muito picuinhas com estas coisas das edições. Por vezes até acho que os leitores abusam nas suas queixas com eventuais imperfeições editoriais. Mas neste caso, é-me difícil não abanar a cabeça negativamente, face a este disparate editorial. Cortar uma piada justamente no sítio onde a mesma não pode ser cortada? Sem desculpas. A própria introdução da fotografia do bloco de notas de Paco Roca, que aparece nas primeiras páginas do livro, permite verificar a sua planificação de uma página com 12 vinhetas. Não são nove. São doze.

Em conclusão, este é um livro que se torna difícil para eu recomendar. Por um lado, é uma obra interessante, de um excelente autor, e lançada numa boa altura. Por outro lado, a edição optada pela Levoir parece-me um claro tiro no pé. Não se trata de purismo, trata-se de respeitar todo um estilo e as regras que o mesmo utiliza.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica
Memórias de um Homem em Pijama
Autor: Paco Roca
Editora: Levoir
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura


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