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terça-feira, 15 de setembro de 2020

Análise: O Astrágalo

O Astrágalo


O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg
O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

O Astrágalo marcou a estreia da editora G. Floy no lançamento de novelas gráficas, estávamos em 2016. Desde então, já foram várias as novelas gráficas que a editora lançou, consolidando o seu catálogo de qualidade. Este O Astrágalo é a adaptação para banda desenhada do romance homónimo de Albertine Sarrazin, publicado em 1965. Trata-se de uma obra de enorme fulgor, de cariz auto-biográfico, que muito marcou a literatura francesa, devido a ser uma obra muito refrescante para os tempos vividos nessa década de 60. É que tudo em Albertine Sarrazin parecia ser anti-sistema: a forma desabnegada como escrevia, o facto de ser mulher e, naturalmente, a sua condição sócio-económica. Infelizmente, Albertine Sarrazin morreu muito cedo, quando ainda só tinha 29 anos de idade.

Quanto à novela gráfica O Astrágalo, adaptada para banda desenhada por Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg, a obra mantém-se fiel ao texto original e conta-nos a história de Anne que, ao fugir da prisão, onde cumpria pena por assalto, parte o osso do tornozelo astrágalo. Acaba por ser salva por Julien – outro ladrão – por quem desenvolverá, embora de forma algo débil e aos solavancos, uma relação amorosa. Sendo fugitiva da prisão e, ainda para mais, incapacitada de se locomover devido ao osso partido no tornozelo, Anne terá que se manter escondida durante muito tempo e, para isso, são os contactos de Julien que entram em ação. Mas Anne também não é uma pessoa fácil de lidar nem, tão pouco, o são as pessoas que lhe dão refúgio. Por isso, ao longo da história, Julien terá que encontrar novos locais para que Anne se mantenha escondida. Anne é uma personagem complexa que vai tentando encontrar-se a si mesma ao longo das 224 páginas que compõem esta obra. O próprio sentimento que nutre por Julien não é arrebatador no seu início. É algo que vai crescendo em paralelismo com a necessidade de proteção que ela mesmo procura em alguém. E ainda por cima, Julien é alguém muito intermitente, ora fazendo visitas regular, sendo confessor e amante de Anne, ora estando ausente durante semanas ou meses, deixando Anne a sofrer e a lamentar a ausência do seu amor.

O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

Esta é uma narrativa muito adulta. Nem tudo o que pretende passar é dito e, portanto, requer um olhar atento do leitor para que acontecimentos e sentimentos não escapem. Muitas coisas estão subentendidas. E outras coisas não são muito óbvias, sequer. Por exemplo, a relação amorosa que Anne mantinha com Rolande, a sua companheira na prisão, parece ser esquecida pela protagonista quando esta encontra Julien mas, volta e meia, Rolande regressa ao pensamento de Anne. 

A meu ver, esta é uma história de sobrevivência, pura e dura. E quando digo isto não o digo com o cariz mais romanceado da palavra. Digo-o da forma mais mundana possível: Anne é um exemplo de um produto criado pela nossa sociedade, em que a sobrevivência, especialmente para aqueles que têm origens humildes, ou que estão sós no mundo, é a primordial necessidade de existência. E Anne tudo faz para se manter à tona da sociedade que, por sua vez, a parece puxar sempre para baixo. O próprio Julien, mais do que um príncipe encantado, é uma "tábua de salvação" para Anne. E isso, mesmo podendo ser cruel e deselegante, é igualmente um retrato fiel do mundo como ele é. Especialmente se tivermos em conta que esta é uma obra que foi originalmente publicada na década de 60, onde o papel da mulher mais não era do que ser a companheira de um qualquer homem. 

O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

A certa altura, a narrativa "enrola-se" um bocado e o leitor fica perante algumas situações que se repetem rotineiramente como os mesmos dilemas de Anne, as mesmas ausências de Julien, os mesmos problemas da protagonista com as personagens que lhe dão guarida… até o texto parece ficar repetitivo. Mas, também é verdade que Anne-Caroline Pandolfo volta a tomar as rédeas da narrativa, sabendo dosear muito bem os momentos finais da mesma.

Em termos de arte, aquilo que Risbjerg nos dá não é consistente como eu gostaria. Há ilustrações e certos momentos nesta obra que são de cortar a respiração, tal não é a sua força gráfica e narrativa. Há outros, no entanto, onde o estilo de desenho, especialmente na caracterização das personagens, parece feito por uma criança de 8 anos. E longe de mim criticar negativamente um estilo de desenho mais naïf e infantil. Há muitas obras com esse estilo que são maravilhosas. E adultas nos temas que (re)tratam. O que não me apraz tanto em O Astrágalo é a inconsistência que, por vezes, acontece de uma página para a outra. Diria que há três tipos diferentes de ilustrações que habitam as páginas deste O Astrágalo: temos 1) as ilustrações onde há um brilhante efeito entre luz e espaço negativo, com imagens altamente contrastadas entre os pretos e os brancos, e onde Risbjerg usa pinceladas de preto, que dão dramatismo às cenas e que fazem lembrar as melhores memórias de Frank Miller em Sin City; 2) as ilustrações, geralmente de locais ou cenários, com um traço fino, cheio de charme, que parece encaixar bem nos ambientes franceses; e 3) as ilustrações - e infelizmente são as aparecem em maior número - que parecem feitas de forma meio “à pressa”, com um traço demasiado imaturo para corresponder bem aos outros dois estilos diferentes de ilustração que apontei. No todo, ficamos com um guisado de estilos, nem sempre em uníssono entre si. Claro que, no final, trata-se de uma mera questão de gosto pessoal, bem sei, mas que, pelo menos para mim, condicionou em muito a leitura desta obra, que considero ser altamente recomendável pelo tema, pelo texto e por aquilo que representa numa sociedade onde, gradual e justamente, as mulheres estão a ocupar o lugar que merecem.

O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg

Quanto à edição da G. Floy, e ao contrário daquilo a que a editora nos costuma habituar, esta edição não é em capa dura mas em capa mole. Claro que preferia que fosse em capa dura mas também é verdade que continua a ser um "livro-objeto" com um grafismo interessante.

Esta é uma obra obrigatória para quem já conhece o trabalho de Albertine Sarrazin e um excelente ponto de entrada na obra da autora. Um livro igualmente interessante para adeptos de novelas gráficas. Não deixa de ter alguns problemas na componente gráfica mas é um livro bastante cativante que vale a pena conhecer. Anne e Julien ficarão na memória de muitos leitores, estou certo.



NOTA FINAL (1/10):
8.1


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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O Astrágalo, de Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg
Ficha técnica
O Astrágalo
Autores: Anne-Caroline Pandolfo e Terkel Risbjerg
Editora: G. Floy
Páginas: 224, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Outubro de 2016

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