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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal


Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal, de Loisel e Tripp 

Como sintetizar a vida humana, as relações que criamos, os medos que desenvolvemos, a necessidade de aceitação, a construção de valores - e respetivo reajuste dos mesmos? E como ultrapassar o luto com que nos vamos deparando ao longo das nossas vidas? E a propensão de ultrapassar as barreiras que se vão colocando na nossa jornada? Como adocicar a existência de vidas amargas? O que é que nos diferencia verdadeiramente dos animais? Será (apenas) a inteligência ou, também, o facto de criarmos relações intensas entre nós? Qual é, então, o papel de cada pessoa numa sociedade? 

Armazém Central propõe-nos, senão uma resposta a todas estas questões, pelo menos, um cuidado vislumbre para que, na pele de algumas personagens fictícias inesquecíveis, possamos ver o reflexo de nós mesmos. Esta é uma rara e singular obra-prima da banda desenhada. Como que um poema em que os versos são vinhetas e os sonetos são pranchas. O coração enche-se, o nó na garganta instala-se e o resultado desta leitura é algo que, dificilmente, deixará leitores insatisfeitos. Diria que, para conseguir apreciar este portento da 9ª arte, apenas é solicitado uma coisa aos leitores: que tenham sensibilidade e maturidade. Sem isso, talvez esta banda desenhada não possa ser apreciada. Afinal, aqui não há uma ação rápida. Nem pensar! As coisas vão acontecendo de forma lenta, suave e subtil. Assim são as mudanças numa sociedade, certo? 

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
Mas voltemos ao início. 

Quando a Arte de Autor, há poucas semanas, anunciou o (re)lançamento de Armazém Central que, desde 2011, com o lançamento do 3º tomo, Os Homens, pela editora ASA, tinha sido cancelada, deixando os leitores portugueses a menos do que a meio desta série - que, no total, é composta por 9 volumes - a sensação foi de alegria e júbilo! E ainda por cima, logo com um álbum duplo! Afinal de contas, como já referi em várias intervenções, Armazém Central é uma das bandas desenhadas da minha vida. Como gosto de fazer TOPs, muitas vezes enviam-me questões perguntando qual é, afinal, o meu TOP 10 de bandas desenhadas preferidas. Como já li muitas centenas de livros de bd, esse é sempre o TOP derradeiro a que me esquivo, pois é demasiado difícil de fazer. Bem, talvez um dia o faça. E será uma tarefa hercúlea! Mas uma coisa é certa, Armazém Central terá que figurar no meu TOP 10 de melhores livros de banda desenhada que já li. E sim, já li muita bd! 

Claro que estas coisas de preferências são sempre muito subjetivas pois o que é bom para mim, pode não ser para o leitor que me está a ler neste texto. Mas, ainda assim, também é possível olhar objetivamente para esta obra e, objetivamente, repito!, detetar a sua genialidade. 

Em primeiro lugar, os autores Régis Loisel (autor consagrado com a série Em Busca do Pássaro do Tempo e com a adaptação para bd de Peter Pan) e Jean-Louis Tripp fazem algo nesta série que é muito raro na banda desenhada: inventaram o seu próprio novo processo criativo que consiste na partilha, por igual, das tarefas de produção da obra. Quer isto dizer que, para além de dividirem as funções de argumentista, ambos desenham esta banda desenhada. Loisel, faz inicialmente um desenho mais cru mas em que ficam traçados, de antemão, os planos a utilizar, o ritmo da narrativa, a concepção das personagens e toda a matriz da banda desenhada. Como se fosse um storyboard mas feito de uma forma muito desenvolvida. Depois desta fase, é a vez de Tripp desenhar por cima do trabalho de Loisel. Ou seja, o que ele faz é adornar e dar profundidade aos desenhos crus de Loisel. O resultado, não só é único, como é maravilhoso do ponto de vista estético. Ambos os autores acabam por criar "um novo autor" de bd. Quase como se fosse um heterónimo ao jeito de Fernando Pessoa. Estes desenhos não são os desenhos de Loisel nem de Tripp. São, antes, do autor virtual “Loisel & Tripp”. Chamemos-lhe assim, na ausência de melhor nome. Coloco aqui uma imagem para que se possa perceber o modus operandi da dupla criativa. 

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
No lado esquerdo, a arte inicial de Loisel.
No lado direito, a mesma página mas já com a arte de Tripp sobreposta ao desenho inicial.

O resultado é uma ilustração bastante detalhada, embora muito “riscada”, numa base de esquisso, que acentua as sombras de forma muito demarcada e rabiscada, conseguindo obter uma aura muito artística. E a este processo magnífico e cuidado de ilustração ainda se juntam umas cores suaves que atenuam a força das sombras dos desenhos. É um estilo de ilustração que serve perfeitamente o tom humanizante e dramático das situações que habitam esta narrativa. 

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O universo rural está magnificamente retratado. O estilo de desenho, típico na arte de Loisel, acentua as feições da cara, oferecendo-lhes um aspeto algo caricatural, mas sério no trato. Como se fosse um próprio mundo, extraído da mente dos autores. A forma como as emoções das personagens são tratadas é verdadeiramente excepcional. Se um olhar diz muitas coisas, os olhares destas personagens dizem-nos mil coisas e, muitas vezes, um simples silêncio está repleto de muitas nuances e significados. E isso só é conseguido quando a arte da ilustração se transcende. 

Se graficamente é uma obra sublime, a história, sendo simples, é magnifica no seu todo também! Tentando fazer, também eu, um brevíssimo resumo de toda a história (do tomo 1 até ao tomo 5) sem fazer spoilers a ninguém, começo por dizer que a ação se passa em Notre-Dame-des-Lacs, uma pequena aldeia da província do Quebeque, no Canadá, e estamos no ano de 1926. Esta é uma aldeia de costumes enraizados, bastante fechada do universo exterior, marcada por uma forte ruralidade e valores bastante tradicionais. Se a história se passa no Canadá, a verdade é que poderia passar-se em qualquer aldeia de Portugal ou de outro qualquer país, pois as personagens que habitam esta narrativa são universais, mesmo sendo dotadas de uma personalidade tão própria. 

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Em Notre-Dame-des-Lacs, cada pessoa tem a sua função no equilíbrio natural desta aldeia parada no tempo. E a função de Félix Ducharme era a de assegurar no seu Armazém Central – uma espécie de bazar ou mercearia que vendia de tudo um pouco – todas as necessidades da população local. Entretanto, logo no início do 1º tomo, Félix morreu e a sua esposa, Marie, decidiu pôr mãos à obra e passar a ser ela a ocupar a antiga função do seu marido. Depois, no tomo 2, surgiu acidentalmente nesta aldeia uma personagem, Serge, que era em tudo diferente da população local. Era instruído, viajado, culto e sabia um pouco sobre todos os assuntos. Naturalmente, revolucionou os comportamentos da população de Notre-Dame-des-Lacs. Mas com a chegada dos homens, que estavam ausentes da aldeia, por longas jornadas de vários meses, para trabalhar na indústria lenhadora, Serge começa a ser olhado de soslaio pelo grupo masculino. E, entretanto, a relação de Marie com Serge também parece estar cada vez mais perto de se consumar. Pelo menos, até ao final do tomo 3, quando nos é dada uma revelação de sobeja importância. 

Agora, a partir dos tomos 4 e 5, todos já parecem estar acomodados a Serge, bem como ao seu restaurante La Raviole. Mas agora, é a vez de ser Marie a quebrar as regras locais, devidamente enraizadas, deixando a pequena localidade de pernas para o ar. Os eventos levam-na até a querer ausentar-se de Notre-Dame-des-Lacs para uma estadia na cidade cosmopolita de Montreal. Não creio que seja benéfico adiantar mais sobre a história. Mais importante que isso, será afirmar perentoriamente que esta é uma história magnífica, adulta, profunda, madura e que se pode comparar a uma boa telenovela ou série de tv, daquelas em que criamos uma relação profunda com as personagens. E onde o enredo é tecido de forma magistral pelos autores Loisel e Tripp. O ritmo de ação é lento e comedido, convidando o leitor a mergulhar naquilo que aqui se passa. E o que se passa é de tudo um pouco: temas como a emancipação das mulheres, o desafio dos valores impostos, as opções sexuais, os problemas de foro psicológico, a luta entre homens e mulheres, o papel da religião, a solidão, etc. 

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
Quanto à edição, é mais uma edição de luxo. Com aquela capa rija com textura suave, de que sou fã, e que já vai sendo característica dos lançamentos da Arte de Autor, este é um livro bonito para se sentir nas mãos. O papel é excelente e a encadernação também. De referir duas coisas que me parecem muito importantes: em primeiro lugar, a lombada deste livro marca uma excelente continuidade com as lombadas dos livros anteriores. E bem sei como isto é importante para os colecionadores de banda desenhada. Assim, quer sentido e dimensão do texto, quer organização dos elementos, tudo está em linha com os livros lançados anteriormente pela ASA. Em segundo lugar, foi feita uma coisa tão simples mas que, por ser tantas vezes esquecida por outras editoras, merece menção. Falo de uma pequena contextualização que é feita antes do quarto volume avançar. Na prática, isto é apenas uma breve sinopse dos livros anteriores. Ajuda bastante alguém que cai de paraquedas neste livro. Pelo menos fica contextualizado. Acredito que, ainda assim, não seja suficiente para fazer com que o leitor domine aquilo que se passa em Notre-Dame-des-Lacs. Mas já ajuda em muito. E por isso, aplaudo esta iniciativa da Editora! 

Porque a verdade é que esta é uma série em continuação. E mesmo que possamos analisar cada volume em separado, é justo dizer que Armazém Central é uma grande história, dividida em 9 volumes. Não é um daqueles casos em que se diz “Ah, o tomo 3 é fantástico, mas o tomo 5 não é tão bom”. Em vez de olharmos para a história como tendo 9 volumes (livros), podemos olhar como sendo uma história composta por 9 grandes capítulos. 

Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
Falando, aliás, nesse tema, há uns dias foram várias as mensagens que recebi questionando-me se era possível começar a ler a história a partir deste livro, caso as leituras dos primeiros 3 volumes não tivessem sido feitas. Na altura respondi que sim, que dava, pelo menos, para entrar na narrativa. Agora, depois de ter (re)lido esses primeiros 3 livros, antes destes 4º e 5º volume, devo confessar que não será tarefa fácil compreender, convenientemente, esta história se não se conhecer a história anterior. Ou, dito de outra forma, até é possível que se compreenda os eventos que sucedem em Confissões e Montreal mas sem, no entanto, mergulhar tão bem na narrativa, absorvendo tudo aquilo que ela nos dá. É uma pena que hoje em dia já seja relativamente difícil encontrar os primeiros três volumes publicados pela ASA. E ainda que não seja a situação que todos nós queríamos, compreendo que a Arte de Autor tenha sentido a necessidade de auscultar o mercado, lançando a obra a partir do volume que ainda não tinha sido publicado – o quarto. É que, se a Arte de Autor tem lançado a obra a partir do 1º volume também estaria a não aproveitar parte importante do público que já é possuidor dos primeiros três volumes. E assim, lançando a partir do 4º volume, receberá, à partida, interesse de todos esses leitores que já são fãs da série. É compreensível. Quando confrontada com a possibilidade de lançar os primeiros três tomos, a Arte de Autor disse-me que todos os cenários estão em aberto e que, se se justificar, os primeiros três álbuns poderão ser lançados. Mas claro, irá depender da prestação deste Armazém Central #4 e #5 em termos de vendas. Veremos como acontece. Da minha parte, irei oferecer pelo menos 3 exemplares a amigos meus, para contribuir para que esta coleção tenha margem de progressão para ser integralmente editada pela Arte de Autor. 

Em conclusão, repito que este é o grande lançamento de banda desenhada do ano! É uma série maravilhosa, uma autêntica carta de amor à sensibilidade de cada um de nós e que merece ser (re)conhecida por mais leitores de (boa) banda desenhada. Sendo magnífica nas ilustrações, no argumento e nas questões que levanta, é uma obra fantástica que (também) nos ensina a ser mais humanos, tolerantes e a saber aproveitar e guardar as coisas boas da vida. E de quantas bandas desenhadas podemos dizer isso, afinal? Esta é “A obra-prima” de Loisel e de Tripp e uma ode à banda desenhada enquanto género. Obrigatório conhecer! 


NOTA FINAL (1/10): 
10.0 



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020 



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Análise: Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal
Ficha técnica
 
Armazém Central #4 e #5 - Confissões e Montreal 
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp 
Editora: Arte de Autor 
Páginas: 144, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Outubro de 2020

2 comentários:

  1. Eu diria que o segundo faz arte final. Procedimento mais que comum.

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    1. Caro Jorge,

      Obrigado pelo comentário.

      Mas não estou de acordo. Não sei se o exemplo que coloquei acima é suficientemente explicativo mas a verdade é que, se olharmos com atenção, Tripp também redesenha, altera, modifica muitas coisas de Loisel.

      Não se trata apenas de adornar o desenho de Loisel, como costuma ser feito no processo de arte final.

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