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terça-feira, 10 de novembro de 2020

Análise: 1984 - A Novela Gráfica

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti


1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti 

De todas as obras da literatura que já devorei, o clássico 1984, de George Orwell, depara-se-me como uma das obras mais difíceis de adaptar à banda desenhada. É daquelas empreitadas com potencial para ser um “tiro no pé”, dada a dificuldade inerente a adaptar uma história tão complexa, com um mundo tão intricadamente construído, e em que só a explicação desse mesmo mundo distópico – a forma como o mesmo necessita ser explicado ao leitor – é, por si só, uma tarefa complexa. Mas o autor brasileiro Fido Nesti - que, em 2015, também já foi responsável pela adaptação para BD de Lusíadas, de Luís de Camões – dá a volta por cima e constrói uma adaptação grandiosa, bem executada e que está ao nível dessa obra-prima intemporal da literatura. 

1984 é um dos meus livros preferidos de sempre. Escrito em 1949 pelo génio George Orwell, apresenta-nos uma visão distópica de como o mundo seria no ano de 1984. Estamos em Londres, uma província do estado de "Oceania", que está em guerra perpétua com um dos outros dois Estados que compõem o mundo. Os habitantes de Oceania vivem uma realidade em que a vigilância governamental está sempre presente e em que o Estado manipula, a seu proveito, os factos e até mesmo o passado. Há uma língua própria - a "Novilíngua" – e noções como individualismo ou liberdade de expressão são veemente perseguidas pelo Estado, através da sua "Polícia do Pensamento". Não é, pois, de admirar que vários sejam os “tele-écrans” que supervisionam constantemente cada indivíduo e que estão dispersos por toda a cidade de Londres. Estes tele-écrans funcionam como câmaras, mas também permitem a emissão de imagem. Este Estado autoritário é liderado – e simbolizado - pelo "Grande Irmão" que é adorado por todos os habitantes. 

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
Acompanhamos o protagonista da novela, Winston Smith, que é membro do Partido Externo e que trabalha para o "Ministério da Verdade", onde é controlada toda a propaganda do Estado e onde se faz também uma revisão histórica, moldando o passado de acordo com as pretensões do Regime. Assim, se algo do passado não é conveniente, esse passado é reescrito, de modo a que pareça que se vive num mundo perfeito. E embora Winston seja um excelente trabalhador, começa interiormente a questionar o Estado e a odiar o Grande Irmão. Entretanto, desenvolve de forma secreta um romance com Julia. Ambos alugam o primeiro andar de uma loja de antiguidades, de forma a que este espaço, livre de tele-écrans do Governo, possa ser o seu refúgio. Mas, entretanto, a sua “rebelião” - se é que assim pode ser chamado o ato de se querer ter privacidade do Estado – vai fazê-los ser descobertos pelo Regime que, posteriormente, lhes administrará o seu tratamento através de um processo de lavagem cerebral, de forma a que Winston e Julia mudem os seus próprios ideais. Conseguirá o Governo mudar uma coisa tão livre e intangível como a liberdade de pensamento? É essa a grande questão que esta obra levanta. 

É uma obra triste, inteligente, original, extremamente pesada no seu conteúdo, mas que faz uma reflexão muito clara e alarmante sobre o perigo subjacente a uma sociedade que fica refém de um regime autoritário assente numa ditadura, que consegue controlar o próprio pensamento dos cidadãos, e onde não há espaço para a intimidade ou para a individualidade. 

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
E se, por ventura, aquando o seu lançamento, a obra terá parecido demasiado ficcionada e exagerada, a verdade é que, à medida que o tempo vai avançando, este 1984 parece cada vez mais atual na amplitude da sua reflexão. O que acaba por ser algo praticamente único na ficção futurista. É que, com o passar do tempo, as obras que procuram traçar um retrato de como será o mundo no futuro, parecem, muitas vezes, “chutar ao lado” nas suas previsões, o que faz com que gradualmente vão perdendo algum do seu charme e relevância originais. 1984 é o oposto. Quanto mais tempo passa, mais a obra parece atual. E não só isso é impressionante como, por outro lado, nos leva a poder considerar George Orwell como uma das mentes mais brilhantes do século passado. 

Mas 1984 não é apenas magnífico por ser uma distopia que, tão antecipadamente, conseguiu perceber para onde o mundo estava (ou pode estar?) a caminhar. A verdade é que também é uma obra muito bem conseguida do ponto de vista narrativo. Era fácil, diria, que este livro se tornasse demasiado político, demasiado frio, demasiado pesado e, consequentemente, uma obra direcionada, apenas e só, para uma elite intelectual. Mas, ao saber dosear a história com um romance, que dá (alguma) cor à tal frieza burocrática que a obra pode parecer apresentar, o autor conseguiu que a sua obra chegasse às massas. E isso, a meu ver, é igualmente fantástico. Na música, é algo semelhante a quando se consegue fazer uma canção que reinventa o género, mas que consegue, ao mesmo tempo, ser comercial e passar nas rádios, chegando a muita gente. Uma coisa é ser-se conceituado junto da elite intelectual e nos livros do género. Outra coisa é ser-se conceituado (também) junto do Grande Público. Nunca mais um autor é esquecido quando o fruto da sua criação passa a habitar a memória e consciência coletiva. George Orwell e o seu 1984 - e, também, a sua outra obra O Triunfo dos Porcos, já agora - nunca mais serão esquecidos pela consciência coletiva da humanidade.

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
Posto esta nota sobre esta obra incrível, regresso ao início do meu texto. Era extremamente difícil adaptar este romance para banda desenhada sem o tornar demasiado vazio ou, por oposição, sem o tornar demasiado complexo. E Nesti conseguiu fazê-lo. Porque mesmo admitindo que é uma banda desenhada que pode parecer complexa a muita gente, também é detentora de um texto muito simples que procura que não falte nada para que os leitores possam mergulhar convenientemente neste universo. Talvez por isso, a grande maioria do texto desta novela gráfica nem sequer é dada através de diálogos, mas sim através da "voz" do narrador. Por vezes é verdade que existem algumas vinhetas possuidoras de muito texto mas, tendo em conta, uma vez mais, a obra que temos em mãos, penso que era a única forma de o fazer, não desvirtuando 1984. E além disso, como é um livro com mais de 200 páginas e em que, quase sempre, cada uma dessas páginas apresenta 8 ou 9 vinhetas, a tal abundância de texto é-nos dada com alguma contenção, permitindo-nos a entrada nesta distopia enquanto abarcamos esse universo visual que caracteriza esta bd. 

E falar deste 1984 de Fido Nesti é, acima de tudo, afirmar claramente que o autor soube adaptar de forma maravilhosa esta obra enorme da literatura mundial. Tal como o livro, temos a história a ser dividida entre os 3 grandes capítulos. O primeiro capítulo serve para nos apresentar este universo distópico e algumas das dúvidas que começam a surgir na mente de Winston. O segundo capítulo é o mais leve da história. É quando Julia entra na vida de Winston e ambos parecem viver uma história de amor, erotismo e liberdade em plena clandestinidade. O terceiro capítulo é o mais pesado e mostra-nos, com frieza, como uma máquina estatal bem oleada consegue vergar qualquer ideia. Num mundo em que, cada vez mais, as nossas vidas são expostas para que estranhos possam aceder a ela ou onde os Governos têm as ferramentas para, se assim quiserem, saberem tudo sobre nós enquanto indivíduos - o que somos, como somos, do que gostamos, do que não gostamos, os nossos receios, as nossas valências - 1984 continua assustadoramente atual e é uma boa reflexão para os dias que vivemos. 

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
Em termos visuais, Fido Nesti soube dar-nos a arte perfeita para ilustrar a obra. É um estilo de desenho eficaz, não demasiado detalhado, que procura não roubar o protagonismo em relação ao texto escrito, mas antes, servir o próprio texto com uma componente visual muito em linha com o mesmo, que nos oferece um casamento perfeito entre componente textual e imagética. As personagens de Nesti apresentam caras tristes, desiludidas, maquinais e de olhares vazios. A cidade de Londres é feia, escura e muito cinzenta. Aliás, cinzento é uma cor que habita toda a história que, por vezes, aparece salpicada por tons avermelhados, o que dá uma certa beleza cromática ao trabalho de Nesti. 

E toda esta desolação física e cénica que Nesti nos oferece na sua arte ilustrativa, é tudo o que o texto de Orwell pediria. Vou até mais longe: o grande trunfo de Nesti é ter conseguido dar a esta bd, o exato ambiente criado na mente dos leitores – pelo menos, a sua grande maioria – quando leu a obra original. Já vos aconteceu verem um filme, depois de terem lido o livro original, e terem dito: “Não era nada assim que tinha imaginado isto”? E já vos aconteceu o oposto? “Era exatamente assim que tinha imaginado isto”? Este último cenário é pois o que me aconteceu com esta novela gráfica de Nesti. Para isso talvez tenha contado uma das adaptações cinematográficas da obra, com John Hurt no papel de Winston, e da qual Nesti também parece ter tirado ideias. 

1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
A editora Alfaguara estreia-se pois na edição de banda desenhada, com uma obra maravilhosa, de enorme fulgor e que recebe o carimbo de recomendada por parte do Vinheta 2020. A edição é boa, em capa dura e com papel de boa gramagem. Em edições de bd futuras deverá ser dada uma maior atenção à legendagem pois verifiquei que o texto aparece fora das legendas e balões 3 ou 4 vezes. Não é nada que estrague a obra, mas é, seguramente, algo que poderia ter sido evitado na revisão para se assegurar uma edição perfeita. Destaque positivo para o apêndice final que permite aos leitores mergulharem de forma mais profunda na Novilíngua, de forma a perceberem como a mesma é uma estrutura basilar na criação do mundo de 1984

Em conclusão, o clássico de George Orwell, 1984, tem nesta magnífica aposta da Alfaguara, a merecida adaptação a banda desenhada. Fido Nesti faz um trabalho memorável e o universo visual por si criado - opressivo, triste, cinzento - é exatamente o universo visual que imaginei quando li a obra original pela primeira vez. Mas mais que ser uma obra visualmente relevante, o que também é fantástico é a forma como o autor soube adaptar o romance original. Parece que nada fica por dizer neste brilhante livro. Altamente recomendável. 


NOTA FINAL (1/10): 
9.3 



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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1984 - A Novela Gráfica, de Fido Nesti
Ficha técnica
1984 - A Novela Gráfica 
Autor: Fido Nesti (adaptado da obra de George Orwell) 
Editora: Alfaguara 
Páginas: 224, a cores 
Encadernação: capa dura 
Lançamento: Outubro de 2020

2 comentários:

  1. Viva Hugo, tive a oportunidade de folhear recentemente esta obra, que me parece excelente em termos gráficos, mas uma coisa chamou-me à atenção - o formato, demasiado "diminuto" para uma obra deste peso. A edição original do selo brasileiro Quadrinhos na Cia conta com 20.4 x 27 cm, um formato bem mais próximo ao "padrão" europeu e que valoriza a obra em termos visuais e de leitura. Em contraste a edição nacional reduz, e muito, o formato para 17 x 24 cm , ou seja um corte de cerca de 15%. Qual a intenção do editor - poupar no papel? "adaptar" a um formato mais vendável/simpático por aproximação ao livro tradicional? Entendo que a Alfaguara como outras editoras tradicionais não têm experiência na edição de obras deste género e por isso cometem estes erros de palmatória, mas para o leitor avisado isto não deixa de ser uma diminuição da obra (literalmente...). Como disse estava muito tentado em investir nesta obra, até porque o editor, aparentemente, respeitou o português nacional, mas irei aguardar pela edição em inglês com formato mais próximo da edição brasileiro e com 64 páginas de extras.

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    1. Caro António. Naturalmente prefiro (quase) sempre formatos maiores em dimensão, pois a leitura faz-se em melhores condições. Neste caso, e embora existam vinhetas pequenas e com algum texto, acho que, mesmo assim, a leitura se faz bem. Pode não ser a situação ideal mas é aceitável para os meus padrões.
      "Qual a intenção do editor - poupar no papel? "adaptar" a um formato mais vendável/simpático por aproximação ao livro tradicional?"
      Eu diria que sim.

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