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quarta-feira, 16 de junho de 2021

Análise: O Local

O Local, de Gipi - Vitamina BD 100 Sentidos


O Local, de Gipi - Vitamina BD 100 Sentidos
O Local, de Gipi

Por vezes encontram-se pequenas pérolas perdidas no meio de livros velhos. Este livro de que vos falo hoje, foi encontrado por mim numa daquelas pequenas "feiras de livros" que costumam ser realizadas dentro de alguns centros comerciais e/ou junto a estações de comboios. Foi numa dessas feiras que encontrei este O Local, do autor italiano Gipi, a um preço ridículo de 3€! Sim, leram bem. 3€.

Tratando-se de uma obra lançada em 2007 pela 100 Sentidos, uma chancela da antiga editora Vitamina BD, não me espanta que se encontre a um preço tão irrisório. Até porque, provavelmente, interessa aos vendedores, que ainda têm stock desta obra, escoá-la da forma que lhes for possível. Porque, afinal de contas, vender barato é melhor do que simplesmente não vender. E é por isso que o preço é apenas de 3€. Antes de avançar na análise, permitam-me então dizer: se virem este livro à venda por 3€, não hesitem nem um segundo. Comprem-no sem pensarem duas vezes!

Agora, olhando mais para a obra e menos para o produto, há que dizer que O Local é uma obra muito interessante, de estilo slice of life, que é caracterizada por ter uma arte subtil e bonitas aguarelas que lhe dão cor e alma.

O enredo navega à volta de quatro adolescentes que formam entre si uma banda de rock. Sendo ainda bastante jovens, ficam radiantes quando o pai de um deles, lhes empresta uma garagem – O Local - para aí poderem tocar e desenvolver as suas músicas. Cada um dos jovens tem os seus próprios problemas e a sua personalidade vincada representando, todos eles, claros exemplos daquilo que também nós, leitores, já fomos na nossa adolescência. Trata-se, pois, de uma história do género coming of age, onde nos é dada uma parte da passagem para a vida adulta destes quatro jovens.

O Local, de Gipi - Vitamina BD 100 Sentidos
Se o início do livro é pautado por alguns pequenos episódios avulsos que nos vão mostrando a personalidade e background de cada um dos quatro jovens, há depois uma ocorrência que implica bastante as personagens. Essa ocorrência surge depois de um dos amplificadores se avariar e ser necessário encontrar equipamento substituto para que a banda possa continuar a tocar. Os quatro rapazes decidem então assaltar uma outra sala de ensaio. Naturalmente, as coisas acabam por não correr da forma que estes adolescentes gostariam que acontecesse. E mais não conto.

Esta não é uma história que encerre em si mesma uma grande conclusão e, por esse motivo, alguns poderão achar que o livro "sabe a pouco" e poderia tecer (mais) reflexões (mais) concretas. No entanto, e sendo do estilo slice of life, o que importa aqui é um breve vislumbre àquilo que é ser jovem e, particularmente, pertencer a uma banda de garagem.

Devo dizer que, no meu caso, e tendo em conta a minha ligação a bandas de rock desde a minha adolescência, este é um livro que me remeteu totalmente para esses tempos de juventude em que, juntamente com os meus amigos e bandmates, ficava fechado no estúdio durante uma manhã ou uma tarde a tentar fazer músicas.

Por esse motivo, acaba por ser um livro onde pareço visualizar os meus tempos de músico de forma auto-biográfica. E não serei caso único. Todos aqueles que já se sentaram num estúdio para tocar música – ou até mesmo aqueles que, não o fazendo, sonharam fazê-lo – se reverão em toda a imagética que o autor italiano Gipi nos oferece nesta obra. A emoção, a abnegação, a dor, a energia, o suor e o cheiro que emana das paredes de uma garagem que é utilizada como sala de ensaio de uma banda de rock, está aqui brilhantemente retratada. Olhamos para Giuliano (o guitarrista), Stefano (o vocalista), Alex (o baterista) e Alberto (o baixista) e parecemos rever-nos a nós e àqueles que nos acompanharam – ou ainda acompanham – nos tempos de bandas de garagem.

O Local, de Gipi - Vitamina BD 100 Sentidos
E Gipi ilustra maravilhosamente esses episódios, reproduzindo com talento e olho atento esses momentos e essas poses de banda de rock. As imagens que ficam na memória daqueles que já pisaram uma sala de ensaio de uma banda. Se Gipi não fez, ele próprio, parte de uma banda de garagem, há-de ter-se documentado muito bem para conseguir ilustrar, de uma forma tão verossímil, estes momentos.

O seu traço é bastante estilizado, nervoso e rabiscado, ganhando candura, através da forma delicada como as cores são colocadas nas ilustrações, com o recurso às aguarelas. Se é verdade que as expressões faciais das personagens por vezes parecem ser desenhadas de forma demasiado linear, não menos verdade é o facto de o autor italiano saber dotar as mesmas personagens de personalidade própria em termos gráficos.

A história é simples e tem uma cadência algo lenta. Mas isso oferece, acima de tudo, a possibilidade de mergulhar, por instantes, naquilo que paira nas cabeças de quatro jovens que utilizam a música como escape criativo para as suas vidas, enquanto fomentam e fortalecem uma amizade à margem da própria música. A tensão vai aumentando à medida que acompanhamos a narrativa mesmo que, como já referi, depois não haja uma sensação de término ou de resolução da história. Mas quem disse que a adolescência é um período da vida que fica resolvido? Quantos não são os adultos ainda a tentarem resolver certos acontecimentos que continuam em aberto nas suas vidas, incluindo algumas vivências da adolescência? Fica a questão.

O Local, de Gipi - Vitamina BD 100 Sentidos
A edição da Vitamina BD agradou-me bastante. Embora o livro tenha capa mole, esta apresenta uma textura granulada, agradável ao toque, que muito apreciei. O papel também apresenta boa gramagem, bem como a impressão tem boa qualidade.

Acho apenas que o título da obra não é muito bem conseguido. Questa è la stanza ("Esta é a Sala") é o título em italiano. Nas edições francesa e espanhola a obra foi editada como Le Local e El Local, respetivamente, e, assim sendo, compreende-se que o título para português O Local seja coerente. No entanto, a versão em inglês tem o título de Garage Band que, a meu ver, faz um muito melhor serviço em conseguir vender a ideia do livro, do que algo tão genérico como O Local. Um título destes não diz nada sobre a obra. E Garage Band ou "Banda de Garagem" funcionariam muito melhor. Se calhar um título como esse não me tinha feito demorar 14 anos a encontrar esta excelente obra. Se calhar.

Em conclusão, termino como comecei. Por vezes, encontram-se pequenas pérolas perdidas no meio de livros velhos. O Local é uma dessas pérolas. Uma história simples e introspetiva sobre ser-se jovem e ter-se um grupo de amigos com os quais se forma uma banda de rock. E tudo aquilo que se deixa para trás quando se toca música entre amigos. Uma fantástica surpresa. E pelo preço ridiculamente barato com que (ainda) se encontra esta obra, é absolutamente obrigatório conhecer.


NOTA FINAL (1/10):
8.9


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
O Local
Autor: Gipi
Editora: Vitamina BD (100 Sentidos)
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Setembro de 2007

5 comentários:

  1. Aí está um autor que merecia ter mais obras em Portugal. Pena que ninguém vai por aí. Os meus agradecimentos pela sua resenha.

    Letrée

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    1. Caro Letrée, obrigado pelo comentário.

      Estou totalmente de acordo. Merecia ter mais obras publicadas em Portugal, sem dúvida.

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  2. A ausência de edições deste mestre italiano é mais um dos “crimes” cometidos contra a 9ª Arte em Portugal. Outros exemplos - Igort, Sérgio Ponchione, Liberatore, Mattotti, etc, etc… Acordem editores!…

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    1. É difícil para as editoras portuguesas publicarem tudo o que é interessante ou pertinente mas sim, concordo, que os mestres italianos que refere têm obras muito interessantes e que gostaria de ver publicados em português.

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    2. Caro Hugo entre o tudo e o nada existe um grande espaço vazio. O que é um facto é que, com a excepção de Manara, Hugo Pratt e uma ou outra edição esporádica de Mattotti e da Bonelli, o resto é um deserto total. Sendo Itália um dos portentos da 9ª arte mundial é tanto mais de estranhar está ausência e não me parece que seja por falta de conhecimento. Aguardemos melhores dias…

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