Análise: Apesar de Tudo

Apesar de Tudo, de Jordi Lafebre

Apesar de Tudo o que lerão sobre este livro - e estou certo que serão palavras muito lisonjeadoras para a obra – não será repetitivo dizer que não há nada a pesar em Apesar de Tudo. Sim, para mim, este livro, que tão acertadamente foi publicado há uns dias pela editora Arte de Autor, é uma obra perfeita. E quando digo que é “perfeita”, não pretendo dizer que é a melhor banda desenhada de sempre. Mas também não estou a dizer que não o pode ser. Digo que é "perfeita" porque, olhando para tudo o que faz, e para tudo aquilo que traz consigo, não conseguiria sugerir a Jordi Lafebre, o autor que neste livro se estreia a solo, coisas concretas que pudessem melhorar a obra. Em todas as suas vertentes Apesar de Tudo parece-me extremamente bem conseguida. Perfeita!

Comecemos pelo argumento.

A história de Apesar de Tudo até é bem simples na sua génese. Relata-nos as vivências de Ana e Zeno, que são dois amantes a viverem uma intensa relação platónica, que parece destinada a não se consubstanciar na realidade. Ela é Presidente da Câmara e uma verdadeira workaholic. Ela quer assentar arraiais. Casar, ser mãe, ser devota à profissão e à pequena cidade onde vive. Ele é o oposto: quer viajar, conhecer, descobrir. Sem pensar em casar, em ser pai ou a ter, sequer, uma profissão constante. Não é difícil de prever que o andamento natural da vida os vai manter separados em tudo o que fazem. Menos numa coisa: no enorme sentimento reprimido de ambos, a que vão dando alguma cor através das cartas e telefonemas que vão mantendo ao longo da sua vida. E passar-se-ão anos (37!) até que os mesmos se voltem a encontrar no verdadeiro sentido da palavra. Estaremos todos nós, cada um à sua maneira, destinados a encontrar a nossa cara metade seja de que forma for? Serão as pontes possíveis de erigir em terrenos tão arenosos? Poderão os opostos acabarem por se unir?

Se o argumento pode não parecer tão original assim, deixem-me dizer-vos que será, por ventura, na forma como a história nos é dada – na narrativa – que Jordi Lafebre, conhecido pelos leitores portugueses pela também fantástica série Verões Felizes, que assina em parceria com Zidrou – e que a Arte de Autor também publica no nosso país – nos oferece uma verdadeira obra de arte. Essa tal narrativa parece agarrar nas regras base duma banda desenhada e distorcê-las a preceito para, dessa forma, brincar com o leitor, levando-o a percorrer a história da forma que Lafebre deseja. Com calma, com leveza, com ternura e com beleza. E de trás para a frente.

Assim, a obra que está dividida em 20 capítulos, começa no fim e acaba no princípio. O primeiro capítulo é o capítulo 20 e a partir daí caminhamos ao contrário, em contagem decrescente, até chegarmos ao derradeiro capítulo que é, afinal de contas, a génese da história de amor entre Ana e Zeno. Esse último capítulo é, aliás, uma masterclass de banda desenhada. Onde não há um único balão de fala, mas em que Lafebre nos brinda com um muito criativo e inspirado momento de narração que, depois de absorvido pela primeira vez, deve ser relido ao contrário – de trás para a frente - para que nada se nos escape. Esta é, por isso, uma coisa que recomendo aos leitores do Vinheta 2020. Depois de lida a obra, é pertinente relê-la novamente, mas do fim para o princípio, do capítulo 1 para o capítulo 20. E o próprio capítulo 1 até pode e deve ser lido da última vinheta para a primeira vinheta. E não se preocupem os meus leitores com esta aparente “complexidade”. Apesar de tudo é uma obra muito fácil de ler. A complexidade é, pois por isso, mais ao nível da conceção da obra – por parte do autor – do que ao nível da leitura.

No final do conto – ou será no princípio? – Lafebre deixa, de certa forma, a resolução da história nos ombros do leitor. Como terminará, pois, o romance de Zeno e Ana? É o leitor um romântico-nato? Então, o fim poderá ser de um certo tipo. Ou é o leitor uma pessoa realista e down to earth? Então o fim da história já será outro. Cada um pode decidir o seu final. E isto é apenas mais uma coisa fabulosa em Apesar de Tudo.

O próprio texto também é de uma beleza e simplicidade, que merece ser apontado por mim. Admito que fiquei surpreendido em verificar que, para além de ser um excelente ilustrador, Jordi Lafebre encontre palavras e frases tão profundas e cativantes dentro de si mesmo e que tão bem as coloque nos balões de fala destas personagens. Ou nas deliciosas cartas clandestinas de amor que trocam entre si. E estão a ver aquela característica de texto “quotable” que várias vezes eu assinalo como algo valioso e que enriquece tanto as obras de bd, mas a que poucos autores conseguem chegar? Pois bem, Lafebre dá-nos um texto rico e pleno de ser citável em determinadas alturas. Fantástico! E mesmo nos momentos aparentemente mais triviais em que aparecem personagens secundárias, encontramos frases-chave que nos ajudam a compreender o percurso de Ana e Zeno e a dimensão de uma “não-relação” que pode, ainda assim, ser a maior parte de nós mesmos.

Mas, se a narrativa e o texto são verdadeiramente admiráveis, também a arte ilustrativa se coaduna a este conto de forma magistral. Eu já era um confesso admirador do traço do autor: quer em Verões Felizes, quer em Lydie, os desenhos de Lafebre têm uma vivacidade, uma doçura e um tratamento que os tornam irresistíveis. De traço moderno e personalizado e de cariz semi-caricatural – que sabe ir beber inspiração à escola franco-belga – Lafebre é, no momento atual, um dos meus ilustradores preferidos em banda desenhada. Graciosidade na concepção das personagens e uma paleta de expressões verdadeiramente incrível, fazem com que o leitor facilmente se renda aos protagonistas do autor. Tal como é difícil resistir a uma bolacha de chocolate fora de horas ou a um arco-íris depois de uma tarde chuvosa, é difícil resistir às ilustrações de Lafebre.

Junte-se ainda uma bela e suave paleta de cores que encaixa na perfeição no deleite que é admirar as bonitas ilustrações do autor, e temos uma obra sublime em termos visuais.

E que dizer da capa? Magnífica na conceção e nos próprios significados que em si encerra. Como em tudo nesta obra, há também uma inversão, ou paradoxo, na própria ilustração da capa. Se virarmos o livro ao contrário veremos que aquilo que ocupa mais de 75% da capa é apenas o reflexo na água da imagem de Zeno e Ana a passearem de mão dada. E como os reflexos da água são incertos, Lafebre soube brincar com isso, conseguindo um efeito surrealista e dinâmico, que até faz transparecer um coração nos chapéus de chuva das personagens. E sem que isso se torne gratuito ou lamechas. É apenas ternurento e aquece-nos o coração. Será então esta capa uma analogia para o facto de mais de 3 quartos da vida de Ana e Zeno não passarem de uma imagem surrealista e disforme, com um coração lá escondido? Será o reflexo de nós mesmos aquilo que realmente nos define? A nossa verdadeira face? São questões que uma só capa consegue trazer consigo.

Quanto à edição, e para pontuar com chave de ouro este Apesar de Tudo, estamos perante uma das edições do ano. O livro apresenta um design lindíssimo que capta na perfeição a essência da obra. Capa dura com textura aveludada e detalhes a verniz, a que se adiciona um papel de boa gramagem, tornam o livro apetecível ao primeiro toque. E, para além disso, o próprio design do livro, a começar pela organização dos elementos, pela beleza da lombada ou na simplicidade da contracapa - com aquela pequena citação de um dos diálogos da obra - é fantástica, adulta e diferenciada. E, claro, desta vez a Arte de Autor fez acompanhar esta edição de um ex-libris (limitado a 120 unidades) que é uma belíssima ilustração do autor, que vem protegida com um envelope lacrado com o selo da editora. Que classe, que charme, que estilo! Parabéns à Arte de Autor. É bem capaz de ser a sua melhor edição até à data. E atente-se que as suas edições já são, todas elas, muito boas em termos de qualidade!

Em resumo, e olhando para as partes que formam o todo, considero que Apesar de Tudo, dá soberbas cartas em todos os cômputos em que poderemos basear a nossa avaliação da obra. Senão, vejamos: um trabalho exemplar do ponto de vista narrativo? Sim! Uma história de amor leve e ternurenta ao mesmo tempo? Sim! Uma arte ilustrativa bonita, elegante, cheia de personalidade e que condiz perfeitamente com aquilo que o argumento tem para nos oferecer? Sim! Personagens inesquecíveis a que nos apegamos facilmente? Sim! Um texto muito inspirado e delicado, que consegue ser refrescante mesmo num tema tão batido como o amor e as relações impossíveis? Sim! Uma edição fantástica da Arte de Autor, com a cereja de ainda vir acompanhada de um ex-libris? Sim! Uma capa maravilhosa que, só por si, já valeria a compra do livro? Sim! 

Afinal, o que é que falta neste Apesar de Tudo? Honestamente, e segundo os meus gostos, nada. Tudo está feito na perfeição e na quantidade certa.

Oxalá toda a banda desenhada fosse assim! Apesar de Tudo é um sério candidato a melhor livro do ano! Pelo menos, será com certeza, a surpresa do ano! Estava à espera que fosse bom mas não sabia que era tão bom. Quando, há uns meses, li as primeiras páginas da edição em francês, pareceu-me logo que este era um álbum fantástico. Mas, despois de lido e relido, posso dizer que é um livro lindo, marcante e inolvidável. Daqueles para guardar num lugar especial. Seja no nosso coração, seja numa das mais honrosas prateleiras da nossa estante. Se esta é a primeira obra a solo de Jordi Lafebre, então que seja a primeira de muitas! 

O que se pede ao leitor para bem apreciar e sentir-se maravilhado com este Apesar de Tudo? É simples: que tenha coração. Imperdível!

NOTA FINAL (1/10):

10.0

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

Apesar de Tudo

Autor: Jordi Lafebre

Editora: Arte de Autor

Páginas: 156, a cores

Encadernação: Capa dura

Lançamento: Junho de 2021