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terça-feira, 26 de outubro de 2021

Entrevista a André Diniz - "Foi com espanto que vi o Brasil de 1904 repetir-se em 2020"




Hoje é dia de publicar mais uma entrevista! 

Desta feita, tive o privilégio de estar à conversa com o autor brasileiro André Diniz, que já tem as suas mais recentes obras, Revolta da Vacina e Matei o meu Pai e foi estranho, disponíveis para compra no stand da editora Polvo, no Amadora BD.

O autor estará presente no próximo sábado, dia 30, e na segunda-feira, dia 1, no Festival da Amadora, com a apresentação das obras a ocorrer no sábado e as sessões de autógrafos a acontecerem no sábado e na segunda-feira.

Deixo-vos com esta interessante entrevista que tive com o André.





Entrevista


1. A Polvo prepara-se para editar "Revolta da Vacina", livro já lançado no Brasil. Como está a ser a recepção a esta nova obra no Brasil?
A resposta à edição brasileira vem sendo acima do que eu esperava, confesso. Curiosamente, esta BD não é inédita: havia sido publicada antes no Brasil, mais precisamente em 2013, com o título de “Z de Zelito”. A arte era diferente também, a cores e com outro acabamento. Eu nunca ficara realmente satisfeito com esta primeira edição, principalmente por decisões minhas no visual e no título, mas também porque ela não foi editada de maneira satisfatória. Com isso, poucos viram o livro e eu realmente queria retrabalhar nela de novo, num outro momento. O que eu jamais imaginaria é que os temas da BD, que fala de epidemias, o descaso e uso político dela e a ignorância do povo pudessem voltar a ser temas atuais anos depois da primeira versão da BD pronta, quando eu julgava escrever apenas sobre fatos passados.


2. Já são mais do que uma mão cheia os livros que editaste em Portugal. É Portugal um país com especial carinho pelo teu trabalho? Como sentes a aceitação da tua obra por parte dos portugueses? Já te sentes “meio português”?
A minha conexão definitiva a Portugal (vim cá viver com minha família em 2016, após alguns títulos já cá publicados) começou justamente pelas BDs. Conheci Paulo Monteiro no Brasil, a quem reencontrei aqui. Foi quando ele me apresentou ao editor Rui Brito e daí começou a sucessão de novos amigos e novos títulos publicados. Em todos os graus e de todas as formas possíveis, este país maravilhoso me acolheu de forma comovente desde o começo. Vim como turista em 2013 pela primeira vez, e em janeiro de 2016 eu e minha família já éramos cá residentes... Desde então, não só sinto-me muito honrado por ter leitores queridos aqui em Portugal, mas tenho grande prazer, sempre que posso, em ajudar nesse intercâmbio das Bds dos dois países, apresentando autores portugueses aos autores e editores brasileiros e o mesmo com autores brasileiros aos autores e editores portugueses.



3. E como tem sido a relação com a editora Polvo?
A Polvo foi a primeira a se interessar pelo meu trabalho e a publicar a grande maioria deles em Portugal. Vários deles, inclusive, publicados por cá pela Polvo antes mesmo de serem publicados no Brasil! Além disso, a Polvo também se tornou a porta de entrada das BDs brasileiras em Portugal. Creio que não haja mesmo no Brasil uma editora única com uma colecção tão extensa e tão seleta de quadrinhos brasileiros como a da Polvo. Por fim, depois de tantos trabalhos conjuntos desde 2013, eu e Rui seguimos cada vez mais como dois grandes amigos pessoais, daqueles que juntam as duas famílias para viajar. Acho que isso prova mais do que tudo a harmonia do nosso trabalho em parceria!


4. Este livro retrata a crise sanitária que o Brasil viveu em 1904 e como a vacina compulsória (a solução para a epidemia de então) causou revolta junto das gentes brasileiras. Já tinhas a ideia para esta história antes do início da pandemia de Covid-19 ou foi este novo vírus que te remeteu para o Brasil de 1904?
Como citei mais acima, a primeira versão da BD foi lançada em 2013, sendo que eu havia escrito esse roteiro ainda alguns anos antes, creio que em 2007 ou 2008. Num momento que eu não poderia prever a pandemia. Eu também não poderia prever que estaríamos, em um futuro próximo, discutindo se a Terra é ou não é redonda. Muito menos que teríamos um movimento mundial na direção da extrema-direita, de fanatismo religioso, da negação à ciência. Sabia desde já que a história se repete, mas sabia disso na teoria apenas. Foi assustador testemunhar isso na prática com consequências tão trágicas. Jamais imaginaria que aquela história passada em 1904 e escrita em 2008 seria um tema atual em 2020.



5. Como surgiu a ideia de avançar com esta história?
O tema, na verdade, foi-me sugerido pelo amigo Alexandre Linares, meu editor na época, de forma até meio informal. O projeto não vingou na época, mas aí eu já estava fascinado pelo tema, e acabei prosseguindo com as pesquisas e com a criação da BD por conta própria. Como outros argumentos meus, este junta cenário e contexto reais com personagens fictícios e sua própria história pessoal jogadas em tal momento histórico. As pesquisas pelo tema e as ideias para Zelito, o protagonista, vinham surgindo de forma que não era mais uma escolha para mim fazer ou não fazer a história, ela já nascia ali à minha revelia.


6. Há uma procura da tua parte em estabelecer um paralelismo entre a epidemia de 1904 e a pandemia de Covid-19? E a forma como ambas foram (ou estão a ser) vividas no Brasil? Os tempos mudaram, mas continuamos iguais?
Foi com espanto que vi o Brasil de 1904 repetir-se em 2020. Mas depois que um presidente como o atual é eleito pelo povo, nada mais me espanta.



7. Com a enorme quantidade de informação disponível que existe hoje em dia faz-te confusão a enorme onda de negacionismo que o Brasil (e tantos outros países) tem experienciado relativamente à Covid-19? Ou será essa mesma facilidade de informação – assente nas redes sociais - a causa maior do avanço da corrente de negacionismo?
É tudo ainda mais absurdo do que isso. Em 1904, falar de uma vacinação em massa ao povo brasileiro era algo no mínimo estranho mesmo às pessoas mais informadas. O Brasil de hoje é um país que já foi, a até pouquíssimos anos atrás, referência mundial em vacinação em massa, levada a sério por dirigentes e pelo povo. Então, o que houve foi algo mais grave do que falta de informação. Foi negacionismo oportuno e vil e por parte do poder somado ao fanatismo do povo, acima de tudo.


8. Podemos admitir que há também uma mensagem política nesta obra ou será meramente sociológica?
Sim, fortemente política. Já víamos lá a ambição pelo poder colocado acima de tudo e a ignorância e boa fé popular usados com esse propósito. Houve mesmo a tentativa de aproveitar o caos político, social e económico para depor o presidente da época. Impossível separar a política de todo aquele contexto.


9. Depois deste Revolta da Vacina, já tens projetos para o futuro, relativamente a novos livros de banda desenhada? Queres partilhar alguma novidade com os leitores do Vinheta 2020?
Os projetos futuros são a minha maldição: enquanto trabalho em uma BD, vêm-me as ideias para outras cinco!... A pandemia freou-me um pouco nesse fluxo, confesso, mas voltei já a trabalhar em novas ideias que ainda estão cedo demais para serem comentadas. Mas fico feliz pela Polvo lançar em simultâneo com A Revolta da Vacina outra BD minha ainda inédita por aqui: “Matei Meu Pai e Foi Estranho”, uma das Bds que mais gostei de fazer. Isso deve compensar um pouco o hiato criativo, creio.

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