Análise: Santa Família

Santa Família, de Eider Rodríguez e Julen Ribas

Foi ontem lançada a nova aposta da editora A Seita que dá pelo nome de Santa Família. Este é um livro feito por uma dupla de autores bascos e, devo dizer que é uma das novidades de 2022 que, pelo menos até agora, mais me surpreendeu!

Não conhecia a obra, nem os autores, e, portanto, desde que o editor, José Freitas, me falou deste livro, que andava bastante curioso em relação a ele. Gosto daquela sensação de pegar num livro sem saber nada sobre o mesmo. À medida que os anos vão passando, isto é cada vez mais difícil de acontecer porque temos quase sempre uma pré-referência sobre o autor ou sobre o género de um livro que nos chega às mãos.

Neste caso, eu não sabia rigorosamente nada de Santa Família. E que bom foi mergulhar nesta história humanizante, divertida, com belos desenhos e com boas e originais ideias em termos narrativos.

Mas, já lá irei. Por agora, deixem-me começar por abordar uma coisa que normalmente deixo para o fim, nas minhas análises: a capa.

A capa deste livro é extremamente bonita. O design é bem concedido, o enquadramento é bonito, as cores e a luz também estão muito bem executadas. Mas, mais importante que isso, é uma capa impactante, isto é, daquelas que nos fazem indagar sobre a própria história. Um homem e uma mulher sentados num sofá, no meio de um oceano, enquanto ele joga videojogos e ela come um donut? E ambos têm as pernas presas ao chão do mar, já com lapas alojadas aos membros inferiores, levando-nos a crer que já estão ali há muito tempo? Será uma estátua apenas? Ou serão pessoas reais que solidificaram há muito tempo? E que faz aquela mulher nadadora que parece encontrá-los? São muitas perguntas que a capa consegue levantar, não são? E é por isso – e também pelo belo desenho, sim – que é uma excelente capa.

Mas se o mérito para a fantástica capa será dos autores, ele também deve ser repartido com a editora A Seita. Por um simples motivo: porque foi a editora portuguesa que tentou alterar a capa original da obra, que nada tem a ver com a capa d’A Seita. Mesmo continuando a ter um bom desenho, a capa original apresenta um tom muito religioso-eclesiástico que se afasta muito do teor da obra em si. Os editores portugueses tiveram o bom senso e a visão de compreender que essa capa não só não fazia justiça ao real conteúdo da obra como poderia até afastar potenciais compradores da obra. E isso, meus amigos, é experiência e bom planeamento de edição que A Seita aqui demonstra. Portanto, eis a razão de eu começar pelo fim, falando da capa do livro.

Olhando para a obra em si, Santa Família é um livro muito bem conseguido, daqueles que tem o potencial de trazer leitores para o género da bd. Aqueles livros que podemos oferecer a alguém, que não “pesca” nada de banda desenhada e, por ventura, levar esse alguém a ficar fã da obra e a interessar-se pela 9ª arte.

Santa família é uma história familiar que começa com a seguinte premissa: escolhemos quase tudo na nossa vida… os amigos, o trabalho, a carreira, a roupa que vestimos, a música que ouvimos, e os livros que lemos. Mas, quanto à família, isso não é bem assim. É algo automático que recebemos desde o dia da nascença. Nenhuma família é perfeita e todas elas pressupõem uma adaptação e compreensão mútuas para que o relacionamento floresça. E Nora, a protagonista desta história, é uma jovem adolescente que, tal como outras pessoas da mesma idade, se encontra na encruzilhada da vida de decidir o que quer fazer dela. Que rumo tomar? Que felicidade perseguir? E como explicar as suas escolhas aos seus pais Sorkunde e Teodoro?

A argumentista Eider Rodríguez começa por abrir este livro de forma magistral, apresentando-nos o percurso de como a sua mãe e o seu pai se conheceram e o passado de ambos. A escrita é fluída, carregada de boas metáforas e um belo texto que nos é dado em forma de narração, por parte de Nora. Sendo uma família moderna, estão aqui bem presentes alguns dos problemas, tensões e pressões que habitam o seio de uma família contemporânea. E Nora, quer queira ou não, e tal como os seus pais, também é um produto da sociedade atual. Com tudo de bom – e mau – que isso acarreta.

Há depois uma maravilhosa metáfora na mente de Nora: quererá ela viver a sua vida da forma que os seus pais imaginaram para si? Ou quererá ela enveredar por um caminho próprio? Afinal, até que ponto somos mesmo livres numa sociedade que nunca se assumiu tanto como liberal? Deverá Nora nadar nas pistas, previamente delineadas, de uma piscina olímpica ou procurará ela nadar em águas desconhecidas? E serão os pais que moldam os seus filhos ou serão os seus próprios rebentos que os escolhem enquanto pais? Admito que esta última ideia é um pouco rocambolesca mas é mesmo isso que que é trazido, pela autora, para a farta mesa de reflexões que este Santa Família nos dá.

São excelentes metáforas, para dúvidas já batidas, é certo, mas que aqui têm um tratamento sensível e inspirado por parte da argumentista, não esquecendo que, em cima disso tudo, a autora ainda tem o mérito de construir, através do pai e da mãe de Nora, duas personagens maravilhosas. Daquelas que ficam connosco, mesmo depois de finda a leitura. São trágicas e cómicas ao mesmo tempo!

Quanto às ilustrações de Julen Ribas, devo dizer que são muito bem executadas, com um belo conjunto de desenhos modernos, bonitos e que nos dão a sensação de familiaridade e sensibilidade certa para que possamos apreciar a bela história que aqui nos é dada. Porque se a história é sensível, os desenhos de Ribas também o são. 

Nas expressões das personagens, na sua linguagem corporal e no conjunto, muito variado, de diferentes cenários, sempre muito bem caracterizados, que o autor nos oferece. É um livro que só tem 48 páginas, mas que tem uma grande variedade de desenhos, locais e situações. O trabalho de cores, belíssimo, também é impressionantemente bem conseguido, já que funciona como cereja em cima do bolo para nos dar passar o tom sensível que a história emana. Saliente-se ainda a planificação airosa, que sabe “respirar” da obra, com pranchas organizadas de forma bastante diversa, que nos convida a uma leitura descontraída e fluída. Não conhecia o autor mas fiquei fã dos seus belos desenhos.

Se há algo de que me posso queixar neste Santa Família é que considero que a mesma precisaria de uma melhor sensação de “closure”, como dizem os ingleses. Ou seja, que parece-me que a história deveria ter ficado mais bem resolvida. Fica-o, é verdade. Mas não com o primor e a sensibilidade que o início da história prometia. Julgo que um maior cuidado na forma como é fechada esta história – que talvez fosse alcançado com um maior número de páginas – poderia elevar este livro à perfeição. Seja como for, também não é por isso que não deixa de ser um livro excelente e uma das propostas mais apetecíveis deste primeiro trimestre editorial de banda desenhada em Portugal.

A edição d’ A Seita que, para além de primar por aquele bom trabalho na utilização de capa diferente da original, conforme já referi mais acima, apresenta-nos um livro em grande formato, com capa dura, e um papel de boa qualidade, completamente em harmonia com o espírito do livro. Tudo bem feito.

Em suma, Santa Família é um livro fantástico que, se não me encheu as medidas, não andou muito longe! Uma bela história, servida por ilustrações ternas e belas, onde há espaço para tudo aquilo que circunda uma família habitual. Porque, afinal de contas, há humor, mas também há desespero nas vivências desta família. E em qual família isso acontece, de igual forma? Santa Família é uma maravilhosa aposta d’A Seita que merece ser descoberta por todos.

NOTA FINAL (1/10):

9.2

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

Santa Família

Autores: Eider Rodríguez e Julen Ribas

Editora: A Seita

Páginas: 48, a cores

Encadernação: Capa dura

Lançamento: Março de 2022