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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Análise: Primordial

Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal

Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal
Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino

Recentemente foi lançada pela G. Floy Studio a obra Primordial, uma mini-série de 6 capítulos, estilo livro one-shot, da autoria de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino, dupla responsável por, entre outros, Gideon Falls.

Foi com grande expetativa que parti para esta obra, já que considero Jeff Lemire um fantástico argumentista, bem como Andre Sorrentino tem uma personalidade muito própria nas ilustrações, que aprecio.

Contudo, tenho que dizer que Primordial foi uma desilusão a vários níveis. Se há coisas, no argumento e nas ilustrações, que me parecem interessantes, a verdade é que o resultado, desta vez, ficou bastante aquém, com uma história algo desconexa - e que não consegue aproveitar bem as boas ideias que levanta - e uma arte ilustrativa que não sendo - de todo! – má, acaba por contribuir para o conjunto com mais entropia.

Mas vamos por partes.

Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal
Este é um livro de ficção científica que nos leva numa viagem temporal, que ora tem acontecimentos nos anos 50, ora nos leva até ao futuro. Tudo começa quando, em 1957, a URSS lança a conhecida cadela Laika para a órbita da Terra. Mas o que nem tanta gente sabe é que, passados dois anos, dessa iniciativa soviética, os Estados Unidos da América decidem lançar dois macacos, Able e Baker, para a órbita da Terra. 

Num clima de Guerra Fria, foi natural que os Americanos e os Russos estivessem sempre em constante competição ao nível dos avanços tecnológicos e militares. Mas esses dois macacos enviados pelos americanos nunca regressaram à terra. Todavia, e contrariamente ao que todos poderiam pensar, os macacos não morreram na órbita, mas antes foram levados para algum lugar e por alguma coisa. E, eventualmente, estão de regresso a casa. E há um cientista americano que, vasculhando por algumas destas informações que se encontravam escondidas, acaba por trazer o perigo para junto de si.

Este é o ponto de partida para Jeff Lemire nos fazer mergulhar num thriller da Guerra Fria, onde o mistério e a tensão são uma constante. E se o tema parece interessante, a verdade é que a narrativa em si, bem como o enredo, torna a história em algo pouco claro. E quando digo “pouco claro” não é por considerar que é difícil compreender o que aqui se passa devido à inteligência e complexidade do tema. Digo-o porque me parece que o próprio autor não soube bem para onde quis navegar com a sua história. Acabou por ser algo vago e insuficientemente desenvolvido.

Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal
E, às tantas, temos diálogo entre animais, um piscar de olho à vida alienígena, vários momentos históricos a serem repescados para a ambiência da obra e até um certo piscar de olho geopolítico ao futuro que nos espera. Boas ideias, mas algo aleatórias e que não encaixam particularmente bem entre si. As personagens são algo vazias, sem que percebamos quais as suas motivações e isso fica ainda mais incrementando pelo facto de os diálogos serem em pequeno número. Por vezes, parece que passamos várias páginas sem que aconteça verdadeiramente nada.

E mesmo no final, onde há uma tentativa - um pouco desesperada - de tornar a história emocional, pareceu-me um ato demonstrativo de poucas ideias por parte do autor. Que já mostrou ser tão criativo noutras obras.

Quem dá show – embora me pareça que, mesmo assim, não consiga salvar a obra – é Andrea Sorrentino que tem nesta obra algumas das suas melhores ilustrações de sempre em que, utilizando uma planificação muito diferente do que consideramos "habitual" em banda desenhada, consegue construir painéis em duas pranchas verdadeiramente deslumbrantes. Tendo em conta a temática meio isotérica do tema, acho que funcionam muito bem este tipo de ilustrações estilizadas embora, também reconheço que, por vezes, se tornem de difícil compreensão. E, relembrando que a história de Lemire dá bastantes tropeções, esta complexidade gráfica de Andrea Sorrentino também não ajuda a tornar a história mais acessível. Mas lá que é vistosa e bela, lá isso é.

Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal
Gostei, também, da forma como o autor desenha as cenas com os animais, revelando um traço mais claro e limpo, que dá alguma leveza em relação às restantes páginas, que são muito carregadas e densas em termos visuais. Na parte do desenho das personagens é que não fiquei tão agradado. O estilo de ilustração, que facilmente remete para o efeito Photoshop threshold revela uma ilustração que, mesmo podendo ser bem enquadrada com o ambiente de Guerra Fria, já que é, de facto, bastante fria naquilo que nos passa, aparece algo desajustada das restantes ilustrações: quer daquelas dos animais, quer das dos momentos mais cósmicos, de odisseia visual. Como se, no geral, e apesar de alguns momentos espetaculares, este Primordial seja, do ponto de vista ilustrativo, um guisado com um ou dois ingredientes a mais.

A edição da G. Floy Studio, expetavelmente, não desilude. Com capa dura, bom papel brilhante e um bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação, importa destacar o generoso caderno de extras em que, em 18 páginas, nos são dadas várias galerias de ilustrações alusivas ao tema, da autoria de vários autores consagrados, e uma galeria a preto e branco com algumas das ilustrações mais impactantes de Andrea Sorrentino. Aquelas que nos deixam com o queixo caído.

Em suma, devo dizer que estava à espera que Primordial fosse mais bem concebido, devido a ser uma obra de dois autores com tantas cartas dadas. Tendo boas ideias, acho que acaba por não as saber agarrar e nem a arte de Sorrentino consegue levar ser o salvador do dia. Pode chamar-se Primordial, mas não é, nem de perto, nem de longe, uma obra primordial de Jeff Lemire ou de Andrea Sorrentino.


NOTA FINAL (1/10):
6.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Primordial, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino - G. Floy Studio Portugal

Ficha técnica
Primordial
Autores: Jeff Lemire e Andrea Sorrentino
Editora: G. Floy Studio
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5
Lançamento: Julho de 2022

2 comentários:

  1. Não desgostei, a arte do Sorrentino é qualquer coisa de fantástico, sou fã dele desde o Old Man Logan e, sobretudo, desde o Gideon Falls.
    Achei que terminou de forma demasiado abrupta, ficam demasiadas respostas por dar. Não tenho nada contra finais em aberto, mas concordo com a tua análise, não se percebem bem as motivações e a história tem várias boas ideias que ficam por explorar ou explicar. Por exemplo, seria muito interessante explorar melhor a tal União Europeia Soviética....

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    Respostas
    1. Sim. Concordo. Acho que com mais capítulos/páginas, talvez certas ideias avulsas recebessem o tratamento desejado e contribuíssem para uma obra mais marcante.

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