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terça-feira, 22 de julho de 2025

Análise: Tales from Nevermore

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro

Sempre que um artista apresenta a sua obra de estreia ao público, seja um músico com o seu primeiro álbum, seja um realizador com o seu primeiro filme, seja um fotógrafo com a sua primeira exposição de fotografia, seja um escultor com a sua primeira peça esculpida ou seja um autor de banda desenhada com a sua primeira BD, independentemente da qualidade dessa mesma obra, pode fazê-lo de um modo promissor, embora tímido, ou de uma forma retumbante, confiante, orgulhosa, que não deixa ninguém indiferente. Depois desta introdução, deixei-vos a pensar no álbum de estreia da vossa banda preferida? Ou no primeiro filme do realizador que vos enche as medidas? Pois bem, estou a falar concretamente de Tales from Nevermore, a BD de estreia dos portugueses Pedro N. (AKA Pedro Nascimento) e Manuel Monteiro, editada há algumas semanas pela editora Ala dos Livros.

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
À semelhança de um Appetite for Destruction, o álbum de estreia dos Guns N' Roses que, curiosamente, festejou ontem os seus 38 anos de existência, e que, mesmo sendo o primeiro álbum de uma banda de jovens músicos, tomou de assalto o rock n roll para sempre desde o dia do seu lançamento original, também Tales From Nevermore tem a energia, a juventude, a ousadia, o talento, a infâmia, a noção do clássico e, pelo menos, o potencial de ser uma primeira obra que abala o meio nacional, neste caso, a banda desenhada portuguesa. Aliás, até gostava de estar enganado - pois isso significaria que o talento nacional é ainda maior do que aquilo que já é -, mas custa-me a crer que, em 2025, Tales From Nevermore não seja a obra revelação da banda desenhada portuguesa.

Esta é uma antologia de histórias curtas de terror que se destaca desde as primeiras páginas pela sua qualidade surpreendente e coesão narrativa. Através da figura de Vincent, um corvo carismático e sombrio que nos serve de anfitrião, um cicerone que nos acompanha por contos tenebrosos e desconfortáveis, os autores levam-nos numa visita ao misterioso cemitério de Nevermore, onde cada campa esconde um conto trágico, macabro e profundamente humano. Esta estrutura narrativa que recorre ao corvo como conector entre histórias é algo que, logo à partida, funciona muito bem para unir os pontos e fazer com que o livro suba de patamar narrativo, já que é um truque perfeito, um bom artifício que se revela o verdadeiro cimento capaz de bem unir as seis histórias aqui presentes, transformando a obra numa experiência imersiva, contínua e verdadeiramente cinematográfica. Em vez de um conjunto de seis histórias, o livro passa, portanto, a ser uma "história grande" que se espraia em seis histórias mais curtas... e tudo graças à vertente catalizadora da personagem de Vincent. E logo aqui, fiquei conquistado.

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
Vincent é o narrador omnipresente, com um toque irónico e lúgubre, que surge, pois, como a ponte entre cada conto e confere ao livro uma continuidade quase teatral. Essa “cola” narrativa faz com que a antologia se leia como um todo coeso, e não como uma mera compilação de histórias. Ainda recentemente joguei na PlayStation alguns dos videojogos The Dark Pictures Anthology, em que também temos a presença de um narrador presente que tão bem nos mergulha nas histórias de terror, e não pude deixar de fazer ligações mentais entre esses videojogos e este Tales From Nevermore. Mas claro que outra referência que vem à memória quando lemos esta BD é a série televisiva Tales from the Crypt., que também tinha um narrador que dialogava connosco enquanto nos ajudava a mergulhar nas várias histórias de terror.

A escolha de Vincent como anfitrião é particularmente feliz, pois ele é simultaneamente personagem, narrador e figura simbólica, uma presença que acompanha o leitor, que o guia e que o seduz para dentro do mundo sombrio de Nevermore. E já que falamos em "referências", em "Vincent" e em "Nevermore", é impossível não afirmar que a grande influência aqui presente é Edgar Allan Poe, o mestre do terror, ou não fosse a própria menção a "Nevermore" da sua autoria, tendo primeiramente surgido no seu poema The Raven, ou seja, O Corvo. Por outro lado, há muitas outras referências para além de Poe, já que o próprio nome do Corvo, "Vincent", estará certamente ligado a Vincent Price, um dos maiores ícones do cinema de terror, também popularizado pelo realizador Tim Burton. "Burton" que, já agora, também é o apelido de uma das personagens deste Tales From Nevermore. Enfim, como já devem ter percebido, todo o livro aparece carregado de referências e múltiplos easter eggs e homenagens visuais e textuais que celebram o terror clássico e o cinema de culto. São referências subtis (e outras menos subtis) a autores, filmes e obras que podemos encontrar ao longo das páginas, revelando não só o conhecimento profundo de Pedro N. e Manuel Monteiro, mas também o carinho que têm pelo género. Para os leitores mais atentos, e especialmente para os fãs de terror, essa camada de referências funciona como um jogo de descoberta que enriquece ainda mais a obra e que sedimenta a interação com o leitor, criando uma cumplicidade que enriquece a leitura e que a transforma numa experiência (mais) participativa. Tales From Nevermore não é apenas uma coleção de histórias... é um universo, uma mitologia em expansão. E, espero eu, pode ser a abertura de um universo com o potencial de ser explorado, com novas histórias, em livros futuros.

Mas há mais que importa referir sobre este livro!

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
O trabalho de Pedro N. e Manuel Monteiro é tão bem executado que dificilmente se acreditaria tratar-se de uma estreia. A fluidez entre os contos, a consistência tonal e a solidez estética demonstram uma maturidade artística que normalmente se encontra em autores com longa carreira no meio da banda desenhada. Nada parece ao acaso: desde a forma como o horror é trabalhado, com elegância e contenção, até à forma como se gerem os silêncios, os olhares e as sugestões visuais. Há aqui um domínio da linguagem gráfica e narrativa que impressiona.

Pedro N., responsável pelos desenhos, oferece-nos um trabalho verdadeiramente sublime. O seu virtuoso traço a preto e branco é ao mesmo tempo realista e expressivo, com uma capacidade rara de transmitir atmosfera. A planificação das páginas, a escolha dos planos, o uso magistral das sombras e das tramas, a expressividade das personagens... tudo aqui contribui para um resultado visual imersivo, inquietante e sedutor. É um talento raro no panorama nacional, que se afirma, desde já, com uma voz própria e uma assinatura artística inconfundível. É isto que eu chamo "entrar pela porta grande da BD nacional"!

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
As histórias em si, da autoria de Pedro N. e de Manuel Monteiro, abordam temas clássicos como o amor, o ciúme, a ganância ou o arrependimento, e certamente evocarão memórias de outros contos de terror para os mais batidos neste tipo de narrativas, o que pode, por vezes, parecer algo clichet, mas diria que mais do que isso ser uma falha, é uma qualidade, pois há aqui uma reverência assumida pelo género, um reconhecimento das suas raízes, não obstante uma vontade de o reinventar subtilmente. 

Se a proposta é séria e dramática, há ainda espaço para algum humor, bem-vindo, em que os autores nos permitem um certo alívio ao peso funesto da obra. Aqui podemos encontrar anúncios classificados morbidamente divertidos, entrevistas com a presença de figuras como Edgar Allen Poe ou Niccolò Paganini, ou uma página dupla onde, em cada uma das campas do cemitério de Nevermore, há um QR Code que nos convoca a (re)conhecer personagens reais ligadas ao terror e que aqui são homenageadas, como H.P. Lovecraft, Béla Lugosi, Mary Shelley ou Grigori Rasputin. Mas sempre com os nomes abreviados - tal como o próprio nome do autor Pedro N. - para que a referência não seja demasiado óbvia.

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
Tudo isto torna o livro muito rico e muito denso, o que poderá fazer criar no leitor a necessidade de uma segunda ou terceira leituras. E isso, mais uma vez, revela tenacidade autoral e uma "maturidade juvenil" (se é que isso faz sentido) que, já sendo rara de encontrar na banda desenhada nacional, imagine-se o quão rara é de encontrar numa BD de estreia portuguesa.

Se há um ponto que merece alguma reflexão, quiçá menos positiva, é a opção por manter todos os títulos dos contos - ou quase todos - em inglês. Ainda que isto seja compreensível dentro da estética do livro e das suas múltiplas homenagens ao imaginário anglo-saxónico do terror já aqui mencionadas, talvez tivesse sido mais interessante (ou mais identitário, diria) que alguns títulos fossem em português. Esta escolha autoral/editorial pode afastar levemente quem procura uma obra de terror com mais sabor local, especialmente num contexto em que o livro se afirma orgulhosamente como produto nacional.

Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros
Falando da edição, há que referir que a Ala dos Livros fez aqui (mais) um belíssimo trabalho! O livro é verdadeiramente diferenciado e pleno de detalhes que oferecem requinte à obra. Tem capa dura num tecido que parece pele preta, com detalhes góticos e ainda um corte que cria um "buraco", uma janela que nos permite ver a ilustração da primeira página. Na prática, a capa do livro parece uma moldura para a a primeira página do livro. Delicioso! Há ainda uma fita marcadora em tecido preto e um belo papel baço utilizado no miolo do livro. A impressão e encadernação são excelentes, também. Visualmente é, pois, um livro singular, que chama a atenção pelo seu requinte e pelo seu aspeto gótico e obscuro, tão em linha com o próprio livro. Muito bom!

Enfim, Tales from Nevermore é um livro sofisticado, elegante e assustador no melhor sentido do termo, que, de forma impetuosa, escancara sem medo as portas da BD nacional para a sua entrada triunfal. Consegue ser, ao mesmo tempo, um tributo ao passado e uma proposta ousada para o futuro da BD de terror em Portugal. Pedro N. e Manuel Monteiro entram no panorama da 9ª arte portuguesa com um primeiro livro que poderia perfeitamente ser assinado por autores veteranos. No cemitério de Nevermore, cada história é uma lápide, mas também uma janela. Uma janela para os recantos mais escuros da alma humana, onde o terror não vem de monstros imaginários, mas dos pecados que carregamos connosco. O meu desejo é apenas que possamos voltar brevemente a este cemitério com novas histórias extraídas das mentes de Pedro N. e Manuel Monteiro!

NOTA FINAL (1/10):
9.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Tales from Nevermore, de Pedro N. e Manuel Monteiro - Ala dos Livros

Ficha técnica
Tales from Nevermore
Autores: Pedro N. e Manuel Monteiro
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a preto e branco
Encadernação: Capa em pele, estampada, com recorte.
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Maio de 2025

4 comentários:

  1. "Buraco"??? Hugo, o termo é vazamento. De resto, uma belíssima edição para uma 1ª obra.

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