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terça-feira, 28 de julho de 2020

Análise: Os Passageiros do Vento - Vol. 8 - O Sangue das Cerejas (Livro 1)



Os Passageiros do Vento – O Sangue das Cerejas – Livro 1, de François Bourgeon

A Ala dos Livros tem sido uma editora que sabe surpreender os leitores, apresentando, de forma, por vezes, quase abrupta, as suas novidades, que deixam os fãs de banda desenhada franco-belga entusiasmadíssimos. E fê-lo, novamente, quando há pouco mais de uma semana, anunciou que iria lançar o 8º livro da série Os Passageiros do Vento, de François Bourgeon. Trata-se de O Sangue das Cerejas, que é o primeiro tomo de um álbum duplo que, espera-se, conclua a série. A série está dividida em três ciclos. O primeiro ciclo, constituído por 5 livros (A Rapariga do Tombadilho, O Pontão, A Feitoria de Judá, A Hora da Serpente e Ébano), foi previamente publicado pela Meribérica. Mais recentemente, esse mesmo ciclo foi reeditado pela ASA, juntamente com a publicação do 2º Ciclo, A Menina de Bois-Caïman (dividido em 2 livros). A série encontra-se por isso totalmente publicada em Portugal. O que é um bom indicador.

Neste O Sangue das Cerejas, a história desenrola-se em Paris, em 1885, no período da história de França em que a Comuna de 1871 ainda dividia a cidade de Paris e acabou por marcar um período de repressão social. Traz-nos Zabo, que já tinha sido a protagonista de A Menina de Bois-Caïman, e que agora se encontra em Paris, utilizando o nome de Clara. Apresenta-nos também uma jovem bretã, Klervi, que chega à cidade das luzes completamente desorientada e sem saber falar a língua francesa. Invariavelmente, esta jovem solitária e perdida, acaba nas garras de um proxeneta que lhe controla a vida. Klervi é então ajudada por Clara, que lhe dá guarida na sua habitação em Montmartre. E é na relação entre ambas as personagens, que o desenvolvimento da trama deste primeiro tomo se torna muito agradável de ler. Primeiramente, Klervi apresenta uma forte desconfiança em relação a Clara mas, mais adiante, perceberá como ela é tão importante na sua vida, muito embora, Clara se mantenha muito fechada em relação a contar-lhe detalhes da sua vida íntima. É aos poucos que Clara vai contando a sua história pessoal a Klervi. A narrativa vai-se, pois, adensando e, no final deste primeiro tomo, embora se resolvam algumas questões na narrativa, é deixado muito em aberto para o segundo tomo. O que é um bom motivo para que os leitores queiram terminar a história.

Sendo uma banda desenhada do estilo histórico, e mesmo tendo em conta que se centra em acompanhar as aventuras e desventuras das personagens Clara e Klervi, as referências históricas estão muito presentes, o que imprime veracidade e maturidade a toda a história que nos é dada. Não obstante, diria que algumas das referências históricas me parecem algo forçadas. Ou, melhor dizendo, frequentemente, parece-me que alguma da informação que nos é dada, não é muito auto-explicativa, deixando o leitor comum – que certamente saberá algo sobre este período da história de França mas sem ser um expert – um pouco à deriva. Não é algo que estrague a leitura de todo, mas considero que 1) ou as informações histórias deveriam ter sido introduzidas com um cariz mais informativo ou, 2) caso o objetivo da presença de tais informações históricas fosse apenas o de criar uma contextualização para a narrativa, as informações poderiam ser menos detalhadas. Assim, parece que se fica a meio da ponte.

Quanto à arte aqui presente, vai ao encontro daquilo a que o autor já nos habituou. Também aqui, Bourgeon, um nome célebre na banda desenhada europeia, presenteia-nos com um desenho realista de mestre. Com uma tónica clássica na execução, diria que se trata de uma arte, quiçá, mais destinada a um público mais maduro e com uma cultura de banda desenhada franco-belga já bem presente. A maneira como desenha os cenários, as personagens ou as situações que se vão passando com o desenrolar da história, é muito convincente e atenta ao detalhe. Sendo eu um amante da cidade de Paris, foi também com especial gosto que vi esta representação fiel da cidade durante o período da Belle Epoque, em que merecem destaque, por parte do autor, as transformações arquitetónicas e paisagistas que a cidade recebeu durante este período, com a construção da Basílica de Sacré-Cœur, bem como, com a construção da Torre Eiffel, a propósito da organização da Exposição Universal de 1889. O ambiente boémio da zona de Montmartre, com os cabarés e libertinagem noturna que lhe são conhecidos, também está muito bem representado por Bourgeon. Aparecem algumas personagens famosas da cultura francesa durante este período, tais como Renoir, Satie ou Lautrec, que são mais um detalhe apetecível na obra. 

Embora o livro seja fantástico, há, no entanto, um ponto negativo que, infelizmente, condiciona bastante este O Sangue das Cerejas: é que muitos dos diálogos são em bretão e a solução encontrada para isso, não foi a melhor. Por opção do autor - uma vez que no livro original tal também acontece e, por esse motivo, isto não deva ser imputado à editora Ala dos Livros – os diálogos em bretão não estão traduzidos, e acabamos por ser obrigados a rumar constantemente às três últimas páginas do livro, que reúnem um glossário, para saber o que se está a querer dizer, sempre que há um diálogo em bretão. Ora, isto foi claramente uma escolha mal acertada por parte do autor. Estraga por completo a fluidez na leitura. E havia muitas outras opções para fazer isto de uma forma melhor para o leitor. Se o objetivo era dar a ideia de que se estava a falar numa outra língua, que não o francês, poder-se-ia ter utilizado balões de uma cor diferente, como foi feito, por exemplo, na recentemente publicada série Operação Overlord, que utiliza balões doutra cor, sempre que os soldados alemães falam entre si. Na minha opinião, isso funciona muito bem. Mas mesmo que o objetivo - mais purista - do autor passasse por nos dar as expressões em bretão dentro dos balões de diálogo, julgo que as traduções para essa mesma língua, e eventuais notas do autor e/ou tradutor, deveriam - e poderiam - ter sido colocadas na própria página onde os diálogos acontecem, para que os mesmos fossem automaticamente retidos pelo leitor. Assim, como está, os leitores ver-se-ão obrigados a estar constantemente com um dedo, ou um marcador de livro, a marcar as últimas páginas para irem descodificando os diálogos em bretão com que se deparam. Este é um daqueles caprichos dos autores que me ultrapassam. Incompreensível mesmo.

Mas, seja como for, tirando este percalço na leitura, esta é uma obra verdadeiramente recomendável para os amantes de banda desenhada franco-belga. Este O Sangue das Cerejas marca o bom regresso de Bourgeon à mítica série Os Passageiros do Vento que deverá terminar, no próximo segundo tomo. 

Quanto à editora Ala dos Livros, esta assume uma vez mais, que "está aqui para as curvas", com a tomada de mais uma série de prestígio para o seu catálogo de bd, que vai sendo gradualmente maior e melhor. A edição da obra está feita em grande formato e com um papel de boa qualidade, à semelhança daquilo a que a Ala dos Livros já nos tem habituado.

Em suma, esta é mais uma proposta de qualidade que os amantes de bd franco-belga acharão imperdível.


NOTA FINAL (1/10):
8.7

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha Técnica
Os Passageiros do Vento - Vol. 8 - O sangue das cerejas (Livro 1)
Autor: François Bourgeon
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Julho de 2020  

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