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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Análise: As Paredes Têm Ouvidos



As Paredes Têm Ouvidos – Sonno Elefante, de Giorgio Fratini

A obra As Paredes Têm Ouvidos – Sonno Elefante é o 5º volume da Coleção novelas gráficas da Levoir e do Público. E em boa hora a Levoir decide lançar este relato, único e totalmente aconselhável para os leitores portugueses de banda desenhada. Este álbum já tinha sido editado em Portugal pela editora Campo de Letras. Contudo, hoje em dia, era um livro extinto do mercado, praticamente impossível de encontrar. E ainda bem que a Levoir resgatou esta obra, mostrando o seu bom sentido de oportunidade.

Abordando o período do Estado Novo, mais concretamente a ação da PIDE, a polícia secreta de Salazar, que castrava qualquer opinião que fosse oposta aos valores incutidos pelo Estado, As Paredes Têm Ouvidos apresenta-se como imprescindível para mergulharmos num passado que, infelizmente, não é assim tão distante como gostaríamos que fosse.

A história passa-se nos anos 70 e tem como ponto primordial de ação o edifício na rua António Maria Cardoso, no Chiado, que albergou a sede da PIDE. Este edifício que em 2006 foi transformado num condomínio de luxo, tem uma história pesada, sangrenta e violenta, pois era aí que muitos dos que se opunham ao regime político eram interrogados e torturados. Giorgio Fratini resgata assim a ideia de que um edifício também fica marcado pelos acontecimentos que nele decorrem.

Ao longo da obra, vamos conhecendo alguns episódios da atividade da resistência anti-fascista, e como o silenciamento da mesma era dever e atividade da PIDE. A história acontece em 1970 e em 2006, e através das recordações de Marisa, uma imigrante cabo-verdiana que é cozinheira num restaurante lisboeta, ficamos a conhecer os acontecimentos que marcaram duas vítimas da PIDE. Uma dessas vítimas é o próprio filho de Marisa, Zé, e a outra é o pintor Léon que, depois de ter revelado informações aos agentes da PIDE, fechou-se para o mundo, como que numa apatia que funciona de paralelismo com o elefante mutilado de Paolo Conte, que só acordava pela morte.

É curioso que este livro, tão português, tenha sido concebido, na verdade, pelo italiano Giorgio Fratini que já nasceu depois do 25 de Abril. Não obstante, é de louvar a forma como o autor abordou este assunto, não entrando em dramatismos fáceis, mas antes, dando-nos a conhecer uma visão, bem ritmada e bem orquestrada, de alguns cidadãos que se viram nas teias da PIDE. Fratini até podia ter enveredado por uma visão demasiado violenta e/ou comovente dos acontecimentos, mas preferiu utilizar uma abordagem mais adulta, com o espaço para uma interpretação, algo poética, dos acontecimentos e das marcas que os mesmos deixaram na sociedade portuguesa. Não obstante o que acabo de referir, este é um livro de uma violência extrema. Mas, claro, a violência aqui presente – e mesmo havendo algumas cenas com bastante violência gráfica – é de um teor muito mais psicológico do que físico. Afinal, haverá peso mais negativo de um Estado do que a não permissão da liberdade de expressão aos seus cidadãos? Ou haverá maior medo do que o daqueles que viam os seus familiares a serem levados pela PIDE para interrogatório?

Este é um livro pungente e forte, que nos deixa com um travo amargo na boca, ao imaginarmos que há tão poucas décadas atrás, esta era uma realidade que assolava o nosso país. E na sede da PIDE, esse maldito edifício, foram inúmeros os episódios de violência, de abuso de poder, de gritos de dor, de desespero que aí tiveram lugar.

A arte de Fratini oferece à obra o tom certo. Com um traço a preto e branco carregado, rude, rabiscado, o autor oferece-nos uma Lisboa facilmente reconhecível, mas que é habitada por personagens sombrias e sorumbáticas que são, aliás, uma representação fidedigna do ambiente reinante na capital portuguesa, durante aqueles anos. Como se a prisão da ausência de liberdade deixasse uma tez de sofrimento, de vida por viver, na cara dos portugueses. As ilustrações acabam por funcionar bem e o livro, como um todo, apresenta uma arte peculiar e interessante. Como ponto negativo, senti que por vezes as caras das personagens não variam assim tanto entre si, o que prejudica um pouco a leitura. Não diria que é algo que estrague a experiência, mas não deixa de ser verdade que limita um pouco a fluidez da leitura e que, por vezes, leva o leitor a ter dificuldades para perceber quem é quem. Talvez por isso, logo nas primeiras páginas, o autor tenha sentido a necessidade de colocar uma cábula, com as caras das personagens e respetivos nomes das mesmas, para facilitar a vida ao leitor. Ajuda, mas não resolve tudo.

Quanto à edição da Levoir, que nos títulos que antecederam esta obra, nomeadamente, O Neto do Homem mais Sábio e Rever Paris, apresentou vários problemas em termos de revisão das obras - com erros ortográficos e "pixelixação" de algumas vinhetas, entre outros - não apresenta neste quinto volume nenhum erro ou problema a salientar – pelo menos que me tenha incomodado – o que é um bom sinal e um bom presságio para o resto desta 6ª coleção de novelas gráficas que, como se sabe, começou de modo tão titubeante. 

Em resumo, este As Paredes têm Ouvidos é uma boa aposta da Levoir para a coleção de novelas gráficas, mostrando-nos um Portugal obsoleto mas recente em termos cronológicos, que não devemos olvidar. É um retrato forte e sensível da atuação da PIDE em Portugal, durante o período do Estado Novo, e como a mesma foi um instrumento do Regime para aniquilar qualquer corrente de pensamento antagónico. Uma obra que vale muito a pena conhecer e que é bastante recomendável.


NOTA FINAL (1/10):
8.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
As Paredes Têm Ouvidos – Sonno Elefante
Autor: Giorgio Fratini
Editora: Levoir
Páginas: 120, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2020

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