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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Análise: O Neto do Homem Mais Sábio



O Neto do Homem Mais Sábio, de Tomás Guerrero 

O volume 3 da Coleção das Novelas Gráficas da Levoir, O Neto do Homem Mais Sábio, do autor espanhol Tomás Guerrero recebeu um lançamento mundial na passada semana. Coisa que é de louvar, por parte da editora Levoir. Esta obra procura ser uma biografia, em banda desenhada, de José Saramago, prémio Nobel da literatura. 

A história de Saramago é-nos contada pelo avô do escritor, José Melrinho - que Saramago considerava o homem mais sábio do mundo, embora não soubesse ler nem escrever -, e por Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Ricardo Reis. O diálogo destes dois espectros vai-nos contando a infância de José Saramago, desde as suas origens na Azinhaga do Ribatejo, passando pela vinda para Lisboa, pela vitória do prémio Nobel da literatura e terminando com os seus últimos dias em Lanzarote, acompanhado por Pilar del Rio. 


Comecemos pelo melhor do livro: a arte ilustrativa de Tomás Guerrero! Esta é uma arte com muita personalidade e que consegue impressionar várias vezes, ao longo do livro. Com imagens maioritariamente a preto e branco, Guerrero é dono de uma arte única, soberba, complexa, intrincada, com muitos detalhes. Por vezes, lembrou-me Sergio Toppi na forma como consegue detalhar e estilizar as suas ilustrações, como se de adornos se tratassem e, ao mesmo tempo, reaproveitar as páginas de uma forma diferente. Não raras vezes, são as ilustrações que delimitam a página e o espaço; e não as vinhetas que delimitam as ilustrações como, normalmente, vemos na banda desenhada. Isso é refrescante e muito interessante, pois quebra com as convenções, sendo igualmente verdade que, por vezes, torna a leitura algo difícil de fazer, perdendo-se alguma fluidez. Talvez por isso, o livro se pareça  amiúde mais com um livro ilustrado do que de banda desenhada, pois acaba por não existir uma linha sequencial clara, entre as ilustrações que compõem uma página. Não obstante, é verdade que é uma obra com uma força gráfica enorme e com um carácter muito próprio. Daquele género de arte que, certamente, dividirá os leitores: uns adorarão, outros detestarão. 


Quanto à narrativa que nos é dada, há que dizer que se a vida de Saramago ainda consegue aparecer bem dividida pelos seus principais acontecimentos de forma satisfatória, há uma outra coisa que aparece introduzida de forma bastante artificial na obra, rompendo com a fluidez da mesma, que são as brevíssimas alusões às obras do autor. Quase sempre, quando avançamos cronologicamente na vida de Saramago até à altura em que o escritor lançou determinado livro, é-nos dada uma ilustração bastante abstrata, baseada nesse livro, e depois é colocada, assim de forma meio aleatória, uma citação dessa obra. Isto não contribui positivamente em nada para a história que nos está a ser contada. Julgo que teria funcionado muito melhor se, em vez de uma citação escolhida ao acaso de cada livro de Saramago, tivessem sido explicadas as condições em que a obra foi lançada ou o que pretendia o escritor com determinadas obras. Algo como é feito em Memorial do Convento, por exemplo. Infelizmente, esta parte de O Neto do Homem Mais Sábio não funciona bem, a meu ver. Tal como não funciona bem, a introdução das capas dos livros de Saramago. Num livro onde o cuidado gráfico parece ser tanto, não deixa de ser curioso que as capas dos livros sejam colocadas, meio à bruta, ao longo do livro. Fica a parecer que não foi o autor Tomás Guerrero que decidiu fazer isto mas que alguém lhe disse: “o livro tem que ter uma ilustração para cada obra do Saramago, um excerto a que chamamos fragmento e uma capa, que nem sequer é a capa original dos livros”. Resumindo: no final, a narrativa fica consistente, mas repetitiva e “sem sal”. 


Também os diálogos entre Ricardo Reis e José Melrinho pareceram-me, algumas vezes, forçados e pouco orgânicos, como se a necessidade de querer informar se sobrepusesse à fluidez narrativa e à legitimidade do diálogo. Por vezes, pareceu que determinada coisa tinha que ser dita e então era colocada, de forma meio abrupta na história. No final, o retrato traçado de Saramago é mais informativo do que emocional, não passando para a BD um cariz mais pessoal do homem. Fica no ar uma certa superficialidade. E sendo Saramago um autor tão profundo nas suas palavras, fica a saber a pouco. Convém também dizer que não é uma obra que se leia mal ou que no final, não fiquemos com algumas informações adicionais pertinentes. Seria injusto dizer isto. Mas é verdade que a história fica um pouco aquém da arte ilustrativa, que é de alto nível de qualidade. 

Quanto à edição, é um livro com as características típicas dos livros da coleção de novelas gráficas da Levoir: capa dura e papel com pouca espessura, mas que asseguram uma edição muito satisfatória. Especialmente, se tivermos em conta, o preço, mais que simpático dos livros. Há, no entanto, que realçar que esta edição contém demasiados erros ortográficos, palavras repetidas, verbos mal conjugados e um incrível lapso no ano de nascimento de José Saramago que aparece como sendo 1992, em vez de ser 1922. É incrível como tantos erros passaram incólumes na revisão do livro. Chega a merecer ser questionado se houve, de facto, qualquer tipo de "revisão". Aplauda-se, ainda assim, a Levoir que emitiu um comunicado anunciando que irá proceder à troca gratuita dos livros por uma nova edição, corrigida, e complementada com um caderno de esboços de Tomás Guerrero. A Editora a demonstrar a sua preocupação para com os leitores merece o meu aplauso. Se os erros são chatos – especialmente num livro de José Saramago – a admissão e pronta correção do erro é de enaltecer, sem dúvida. 


Em conclusão, sendo O Neto do Homem Mais Sábio um livro com uma força gráfica muito grande e uma boa homenagem à vida de Saramago - que a Levoir, pertinentemente, edita -, em termos de argumento, esta obra poderia ter sido mais bem encetada por parte do autor. Ou talvez a “culpa” disto não seja do autor e sim das solicitações externas que, presumivelmente, costumam acontecer neste tipo de obras. Seja como for, é um livro que é recomendável para os interessados em conhecer a obra universal deste grande autor da literatura portuguesa. 



NOTA FINAL (1/10): 
7.8 



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020 



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Ficha técnica 
O Neto do Homem Mais Sábio – Uma Biografia de José Saramago 
Autor: Tomás Guerrero 
Editora: Levoir 
Páginas: 152, a cores 
Encadernação: capa dura 
Lançamento: Setembro de 2020

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