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domingo, 15 de novembro de 2020

Análise: Acender Uma Fogueira



Acender Uma Fogueira, de Chabouté
 

Com a coleção das Novelas Gráficas da Levoir e do Jornal Público a aproximar-se, cada vez mais, do seu final, devo confessar que este era um dos títulos mais por mim aguardados. O seu autor, Christophe Chabouté, conquistou nos últimos anos um lugar de destaque junto dos leitores de banda desenhada. E mais do que parecer almejar ser um autor comercial, parece-me que aquilo que Chabouté persegue é a qualidade do seu trabalho, abraçando projetos dificeis de levar a bom porto, como, por exemplo, uma banda desenhada em que, cada vez mais, o texto é apenas usado quando estritamente necessário. E este Acender Uma Fogueira é um exemplo da dificuldade inerente. O próprio autor refere que após conhecer o conto original de Jack London, no qual esta obra se baseia, achou imediatamente que seria “uma história impossível de contar em BD porque aconteciam pouquíssimas coisas”. Mas, lá está, foi exatamente essa impossibilidade ou, diria antes, dificuldade, que funcionou como drive para que Chabouté pegasse nesta obra. E isso é muito louvável. Revela que o verdadeiro concorrente do autor é ele mesmo. Pertencem a este tipo de artistas, aqueles que chegam mais longe, que quebram convencionalismos e que conseguem deixar a sua marca que persiste e resiste ao teste do tempo. 

A história desta obra não poderia ser mais linear e fácil de explicar. Um homem caminha pelas florestas geladas do norte da América, em busca do ouro do Klondike, enquanto é acompanhado por um cão. As temperaturas são tão geladas que a luta pela sobrevivência torna-se o primordial objetivo do protagonista. E é por isso que o punhado de fósforos que possui, são a verdadeira arma que o mune para fazer face a temperaturas tão nefastas de lidar por parte do ser humano. Uma clássica luta pela sobrevivência num ambiente incrivelmente inóspito. Conseguirá o homem prevalecer sobre a natureza? 

A arte de Chabouté revela uma grande beleza na caracterização das paisagens. Afinal, este é um livro bonito de se observar da primeira à última página. E em termos de planificação, embora Chabouté nos apresente uma planificação clássica e sóbria, também é verdade que é uma planificação variada com vinhetas de vários tamanhos. Em termos de cores, o trabalho do autor, mais do que bem feito, é inteligente na forma como utiliza a vertente cromática em Acender Uma Fogueira. Chabouté, que habitualmente recorre ao preto e branco, decidiu usar cores nesta obra e isso foi uma decisão claramente ajustada para que o branco da neve, que envolve o protagonista, seja constrastado com o vermelho vivo do fogo das fogueiras. Sendo uma paisagem árida de vida, poucas são as cores que aparecem. Quase que só existem 3 cores para além do preto e branco: o tom da pele da personagem, os tons acastanhados da sua roupa e dos troncos das árvores despidas, e, claro, o vermelho alaranjado do fogo. 

Esta é uma obra que não tem muito texto em quantidade mas, ainda assim, onde o texto que possui assume uma forte importância para que a relação que se cria entre o leitor e o protagonista seja sedimentada. E esse texto que nos é dado, não é feito propriamente através de balões de fala porque, afinal de contas, o protagonista da história encontra-se sozinho e não chega a comunicar com o cão através de fala. No entanto, o discurso da sua consciência, como que em pensamento, é passado aos leitores. E é através dessa forma que sabemos para onde vai, como vai e que vamos sentindo a angústia que, gradualmente, começa a habitar a personagem. Diria, pois, que há uma clara e brilhante consonância entre comunicação textual e imagética. 

O traço do autor é fino, elegante e habilidoso e só a cara da personagem aparenta uma maior crueza na caracterização. O jogo de sombra e luz está muito bem executado. Acima de tudo, sentimo-nos mesmo dentro do cenário onde a história se desenrola. Como se, tal como o homem e o cão, também nós sentíssemos o frio, o sentimento de desolação e o crescente mau presságio que começa a ser levantado. Desespero é mesmo uma sensação que me habitou enquanto lia esta obra. Como se, qual espetador, apenas seja dado ao leitor a possibilidade de assistir passivamente a uma história que ameaça desgraça desde as primeiras até às últimas páginas. Se ela acontece ou não, caberá ao leitor ir descobrir. 

E, portanto, toda a obra traz consigo uma grande maturidade narrativa, uma simplicidade nos intentos, que leva-me a considerar Acender uma Fogueira como uma obra carregada de qualidade. Eventualmente não será um daqueles livros que mudam a nossa vida – se é reconfortante assistir a uma obra com uma história tão despretensiosa, também é verdade que haverá finitude na capacidade de nos marcar ao longo das nossas vidas. É um livro sério, sincero e belo, mas que traz consigo uma reflexão pertinente. 

A edição da Levoir está muito muito bem conseguida. Detendo todas as características inerentes aos livros da mesma coleção – como capa dura e papel fino de boa qualidade – traz também uma bonita galeria de esboços do autor, além de um prefácio e de um posfácio pertinentes, que ajudam o leitor a inteirar-se sobre a obra do autor. 

Deixo um aviso à navegação. Não me parece que seja uma obra para todos. Não há ação, não há trama, não há vilões (só se considerarmos as condições atmosféricas como o próprio "vilão" desta história). É pois, uma obra solitária, em que acontecem "poucas coisas" como o próprio Chabouté referiu deste o início. Acredito que muitos autores poderão considerar uma obra “chata”, demasiado fechada e verificar uma certa sensação de marasmo. Reconhecendo pois que não será uma obra para todos, é uma obra verdadeiramente magnânime pelo propósito que tem, pela componente gráfica e por trazer consigo uma mensagem que, até mesmo sendo de alguma forma "batida", sempre convém relembrar: há coisas maiores do que o homem. E ser humilde enquanto espécie animal, fazer-nos-á chegar mais longe do que se adoptarmos uma postura de que somos donos e senhores do mundo e de tudo o que nele acontece. Uma poderosa mensagem, num poderoso livro de Chabouté. A qualidade é uma garantia nesta obra e, tal como João Miguel Lameiras assume no posfácio deste livro, também era meu desejo que este autor passasse a ser (mais) publicado em Portugal. Parabéns à Levoir pela aposta. 


NOTA FINAL (1/10): 
8.7 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica 
Acender Uma Fogueira 
Autor: Christophe Chabouté 
Editora: Levoir 
Páginas: 96, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Novembro de 2020

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