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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Análise: Folia de Reis



Folia de Reis, de Marcello Quintanilha 

Marcello Quintanilha é um autor brasileiro já com sete obras editadas em Portugal, pela editora Polvo. E este Folia de Reis, que reúne várias histórias curtas do autor, previamente lançadas nos livros Sábado dos Meus Amores e Almas Públicas, é a sua obra mais recente da Polvo, cujo lançamento ocorreu há cerca de um ano, em Novembro de 2019. 

Este é um livro algo desequilibrado nas histórias que compila. Temos duas histórias que considero verdadeiramente excecionais e obrigatórias para qualquer fã de banda desenhada, que se preze, ler. E depois há as outras, que me pareceram bem mais medianas e/ou desinspiradas. 

Mas antes disso, há que perceber que, quando falamos de Marcello Quintanilha, estamos a falar de um autor muito sui generis, que tem o seu próprio estilo muito bem delineado. É um daqueles autores facilmente identificáveis só de olharmos, por uns segundos, para algumas das suas pranchas. 

Em primeiro lugar, o autor é dono de uma arte invulgar. Por serem tão realistas, as suas ilustrações chegam a parecer fotográficas na sua génese. A utilização das cores e dos “planos de câmara” é fantástica também. E especialmente nos cenários e nos objetos, a arte é verdadeiramente incrível. Mas também na conceção da fisionomia das personagens e das suas expressões, o autor revela elevada qualidade. Se há autores em que eu gostaria de ver, ao vivo, como é o seu processo de ilustração, Marcello Quintanilha, é um deles. As suas ilustrações chegam a apresentar um cuidado no traço e na conceção, que considero absurdo. Absurdo pela qualidade, entenda-se! 

E depois, para além da sua arte ímpar, Marcello Quintanilha assume-se como uma espécie de Bob Dylan ou Bruce Springsteen, da banda desenhada brasileira. Os cantores que menciono habituaram-nos a ouvir as suas canções que relatam a história contemporânea da classe trabalhadora dos Estados Unidos da América. Como se, nas suas músicas, fosse delineado um quadro concreto de como é constituído o “Zé Povinho” americano. Marcello Quintanilha faz o mesmo, mas em relação à classe mais desfavorecida e empobrecida do Brasil. E fá-lo através da banda desenhada. Portanto, o seu foco não é, pois está claro, o Brasil das praias, das mulheres sensuais, das festas, do turismo. Não, é o Brasil real. O do Povo. 

E assim, este Folia de Reis não é mais do que uma manta de retalhos. Breves vislumbres de como é sentida e reproduzida a sociedade brasileira na mente do autor. E por isso, acho que é uma obra que merece a nossa atenção. Pela sua seriedade. Pela sua subtileza. Pela sua honestidade. Isto, olhando para a obra do autor e, especificamente, para este Folia de Reis, como um todo. Se analisar as coisas mais em detalhe, abordando sinteticamente cada uma das histórias que compõem este trabalho, penso que há conclusões diferentes a retirar. 

Comecemos pela melhor parte. A história que abre este livro, intitulada De Como Djalma Branco Perdeu o Amigo em Dia de Jogo, é uma verdadeira maravilha a todos os níveis. Em termos gráficos temos o autor no expoente máximo das suas faculdades de ilustrador, com uma utilização de expressões faciais incríveis, pigmentadas por cores vibrantes. Mas o ritmo e a forma como a história está montada é magnífica. Esta narrativa assume-se como uma homenagem à forma "doente" como certas pessoas vivem o futebol e as crenças e superstições que cultivam, com o desejo da vitória do seu clube. Faz rir mas também entristece. E, mais importante que isso, faz pensar. Magnífica! 

A segunda história que também me pareceu fantástica é A Fuga de Zé Morcela que nos coloca num diálogo de tasca, entre Zé Morcela, que trabalha num circo, e Gonzaga Carneiro e o Guarda-Civil Erivan. Num jogo de cartas, Erivan começa a desconfiar das histórias que Zé Morcela vai contando. E a sensação de raiva vai crescendo de forma abrupta. E tudo isto, por um assunto tão irrelevante. Mas, na vida real, também as maiores discussões e conflitos surgem, muitas vezes, de temas não importantes, quotidianos e banais. E aqui, acho que Quintanilha foi, mais uma vez, genial na abordagem que faz a este relato. E na forma como consegue criar a tensão no leitor. Enquanto lia esta história, comecei mesmo a ficar nervoso, sentindo que algo de mau estava para acontecer. Isto é uma técnica muito usada no cinema. Lembrou-me outras situações de enorme tensão criadas no cinema como, por exemplo, a passagem da fronteira entre o México e os Estados Unidos no filme Babel, de Iñárritu, ou o diálogo na taberna de Inglorious Basterds, de Quentin Tarantino. É esse tipo de sensação que esta magnífica história de Quintanilha nos passa. 

Mas se estas duas histórias são excelentes, não posso dizer o mesmo das restantes. Não é que sejam más – longe disso! – mas são histórias mais contemplativas e, consequentemente, entediantes, onde sucedem menos acontecimentos às personagens e em que as narrativas assentam quase totalmente nos diálogos que, por serem tão reais, acabam por ser difíceis de acompanhar. 

É verdade que, na oralidade da vida real, as pessoas, ao falarem, repetem inúmeras vezes várias frases e expressões, bem como cometem erros vários. Ao transpor essa forma de falar, incrementada pelo uso de expressões do português brasileiro, Quintanilha consegue uma veracidade quase sem precedentes, diria, na banda desenhada. Mas, o reverso da medalha, é que o texto se torna difícil de ler. A utilização de balões por parte do autor também é bastante original e pouco ortodoxa. Admitindo e percebendo alguns dos seus intuitos ao fazê-lo, enquanto leitor sinto que, quase sempre, a forma como os balões nos são dados, prejudica a leitura da história. 

Há que ser sincero. Algumas destas histórias são difíceis de ler. Muitas vezes, até tive a tentação de deixar a história a meio. Mas em termos de leituras, considero-me um "resistente", mesmo quando o processo de leitura não é fácil, e acabo sempre por ler tudo até ao fim. E, embora com algum esforço, especialmente em Dorso e Clarimundo de Melo, lá terminei a leitura atenta. 

A edição da Polvo apresenta uma boa qualidade de papel, que resulta bem, numa capa mole, detentora de uma ilustração onde, surpreendentemente, Quintanilha não me parece muito inspirado. É de notar que o formato da Polvo reduziu algumas histórias em relação ao original, o que prejudica a leitura. E isso sente-se especialmente nas vinhetas mais pequenas em dimensão. 

Em conclusão, embora inconstante na qualidade das histórias que nos dá, este Folia dos Reis é (mais) um livro muito interessante do autor brasileiro Marcello Quintanilha. 


NOTA FINAL (1/10): 
7.9 



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica 
Folia de Reis 
Autor: Marcello Quintanilha 
Editora: Polvo 
Páginas: 84, a cores 
Encadernação: capa mole
Lançamento: Novembro de 2019

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