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quarta-feira, 21 de julho de 2021

Análise: O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros


O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles

Esta era uma série que já estava prometida há alguns meses por parte da editora Ala dos Livros. A publicação integral d’O Mercenário, numa edição melhorada, revista e de qualidade superior. No mês passado chegaram-nos, numa só leva, os volumes #1 e #10, O Fogo Sagrado e Gigantes, respetivamente – e este último até era inédito em Portugal. E posso desde já dizer que O Mercenário tem as características comuns de uma banda desenhada de culto: decerto não será para todos, mas os que gostarem desta bd, serão fãs devotos e acérrimos. Ou se gosta muito ou não se gosta.

A fórmula da série é simples: num mundo perdido, algures entre montanhas de perder de vista e nuvens como pano de fundo, onde os cavaleiros se deslocam em dragões, existe um mercenário que está pronto a fornecer os seus serviços enquanto soldado. A este mundo onírico, recheado de soldados maléficos e dragões assustadores, junte-se uma boa dose de mulheres nuas em apuros e - aí está! - num só parágrafo, está descrita a tónica desta série de bd emblemática.

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

As mulheres que aparecem estão quase sempre nuas e precisam de ser salvas pelo Mercenário. Aliás, a primeira mulher que aparece no primeiro livro, O Fogo Sagrado, aparece nua em 9 páginas – e um número maior de vinhetas – e só passadas essas 9 páginas é que o Mercenário, vestido com uma armadura resplandecente, que provavelmente o deixa com calor, tem o bom senso e consideração altruísta de dar uma capa à mulher para que ela se cubra. Um autêntico gentleman! A mulher, por sua vez, rapidamente oferece os seus favores sexuais ao mercenário, mas este, mantém-se verdadeiramente profissional no modo como emprega os seus serviços e acaba por rejeitar a donzela.

Se o relato desta cena pode soar caricato, a verdade é que à altura do lançamento original deste primeiro número, estávamos em 1982, e com uma tentativa de abordagem clássica do conto medieval, o autor procurou fazer histórias numa estrutura também ela clássica e segura. Sem arriscar muito do ponto de vista narrativo. Portanto, as histórias são do mais linear possível: 1) donzela em apuros, 2) Mercenário é contratado para ajudar 3) encontra pela frente um adversário assustador; e 4) o Mercenário acaba por sair vitorioso.

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

Em O Fogo Sagrado, somos presentados com a tal história clássica já descrita acima. O herói terá que salvar uma bela e nua donzela. Depois desse episódio inaugural o protagonista encontra um novo mundo para lá das nuvens, completamente controlado por mulheres, que o farão prisioneiro. 

Quanto a Gigantes, estamos perante um livro um pouco diferente. Sendo constituído por 4 breves histórias, que são contadas à luz da fogueira pelo Mercenário à sua companhia feminina - e que são 4 contos que têm em comum a presença de um gigante enquanto vilão - acaba por ter um papel mais experimental, com Segrelles a introduzir alguns elementos de humor. Gostei particularmente da segunda história, Três Desejos, onde, inteligentemente, o autor desconstrói a temática do génio da lâmpada. Muito interessante e perspicaz esta abordagem. De referir também que, em termos gráficos, é na última história deste Gigantes que o autor começou a desenhar e a pintar as suas histórias com o recurso ao computador. Olhando por alto quase não se notam diferenças nas ilustrações finais. Mas se o nosso olhar foi mais cuidado, verificaremos várias diferenças a partir do momento em que Segrelles troca os pincéis pelo computador.

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

As histórias são sempre muito simples e, por vezes, têm uma cadência algo lenta, com muitos balões de pensamento que acompanham um discurso pouco realista do protagonista. Considero também que as cenas de ação normalmente se resolvem demasiado depressa perdendo-se assim a oportunidade de trazer alguma tensão para estas partes, que, desse modo, ficariam certamente mais memoráveis. Ainda assim, há também várias partes em que o Mercenário desliza pelos ares com o seu dragão e que permitem ao leitor uma breve e agradável calmaria e absorção do ambiente que rodeia a personagem.

O Mercenário é uma série que se destaca e se distingue pela sua arte ilustrativa inconfundível. Aplicando uma técnica bastante rara em banda desenhada, a pintura a óleo, Segrelles consegue criar um ambiente singular e, diria mesmo, nunca antes visto, em banda desenhada. A utilização deste método de pintura permitiu ao autor a criação de um mundo aparte, um universo advindo do mundo onírico para onde os leitores são convidados a ingressar. E as personagens, sendo representadas de forma super-realista, parecem verdadeiras! São, pois por isso, várias as vezes em que olhar para as vinhetas d’ O Mercenário nos vai parecer que estamos num museu a observar pintura clássica, em vez de propriamente, estarmos a olhar para um livro de bd com ilustrações a comporem uma história em arte sequencial. 

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

E sendo isto, o factor distintivo na arte de Segrelles, traz consigo uma característica que pode ser encarada quer como muito positiva, quer como muito negativa. Do lado positivo, podemos dizer que a arte de Segrelles enaltece a banda desenhada. A banda desenhada fica mais rica com a existência de um autor como este, que deposita na sua criação técnicas tão clássicas e virtuosas do espectro artístico. Mas também há o reverso da medalha desta opção. Que tem que ver com uma certa estática a que são votadas as ilustrações de Segrelles. Se fosse uma série de cariz mais político, em que tivéssemos muitos diálogos, talvez isto não fosse tão facilmente verificável. Mas como é uma série de ação, que tem lutas e movimentos rápidos (ou que deveriam ser rápidos) por parte dos protagonistas, parece-me que falta à arte de Segrelles a vivacidade e dinâmica necessária ao estilo de ação. Cada vinheta parece ter sido captada como se a personagem tivesse posado – sem se mexer – para o autor. Não há qualquer sensação de movimento. E isso, a meu ver, é uma lacuna. Ou um efeito colateral, vá.

Digna de nota é a capacidade do autor em desenhar painéis verdadeiramente maravilhosos que parecem, eles mesmos, já contarem uma pequena história sozinhos. A capa do livro #1 é apenas um exemplo disso. No entanto, a capa deste álbum #10 é incrivelmente "fraquinha". Especialmente comparando-a com o primeiro livro da coleção. 

A edição de O Mercenário é verdadeiramente espetacular! Os livros têm capa dura com textura aveludada e uma lombada num material branco, com uma textura granulosa que lembra pedra mármore e que encaixa que nem uma luva na tónica de fantasia da série. O papel brilhante das páginas é de boa gramagem e a encadernação e impressão também apresentam elevados níveis de qualidade. É bem capaz de ser das melhores edições de bd em Portugal no que à qualidade dos materiais diz respeito. E não é só! Cada livro desta coleção contém um impressionante caderno de extras de 16 páginas em que Segrelles nos relata, na primeira pessoa, como foi criar a série O Mercenário. Um documento que enriquece (em muito!) a própria obra. E além disso, ainda houve um número limitado de ex-libris que ainda tornam a edição mais incrível. Sinceramente, quando penso na edição dos livros d’O Mercenário, publicados pela Meribérica/Liber, e a comparo com esta edição da Ala dos Livros parece-me quase como se estivesse a comparar um Renault com um Porsche, tal não é a diferença de qualidade entre uma e outra edição.

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

Infelizmente, numa edição tão espantosa, o primeiro livro apresenta um pequeno problema. Na página 34, na vinheta do canto inferior direito, ficou a faltar uma legenda. Sendo um erro chato – e que sucedeu com a gráfica que imprimiu os livros – não lhe atribuo tanta importância como outro tipo de erros que me afligem mais, devido a dois fatores: primeiro: a ausência desta legenda não interfere na fluidez nem na captação do sentido da história; segundo: graficamente o livro não ficou afetado pois não chega a existir um balão ou uma caixa de texto sem texto. Isso seria visualmente mais desagradável. Aquilo que temos é apenas uma vinheta sem texto e sem legenda. Passaria certamente a muita gente que não estivesse familiarizada com a série. Um erro ortográfico clamoroso consegue, na minha opinião, estragar muito mais o prazer da leitura do que aquilo que aconteceu neste O Mercenário #1. Não obstante, claro que é chato.

Sobre este assunto, posso avançar uma informação oficial da editora Ala dos Livros, que revelou ao Vinheta 2020 que após serem analisadas as possibilidades, e após terem recebido o aval do autor, a editora irá disponibilizar uma folha de errata com a legenda em falta corrigida. Com essa errata, será fornecido um autocolante para quem prefira colocar a legenda em falta na própria página do livro. Os livros que ainda não chegaram às lojas seguirão já com a errata disponibilizada. E quanto aos livros já comercializados, a editora oferece várias opções: as livrarias vão receber as erratas que os leitores poderão levantar. E a editora também está disponível para enviar a errata aos leitores que já adquiriram o livro. Neste caso, a editora sugere que a errata seja enviada com um próximo livro, não por uma questão de custo do envio, mas sim para garantir a proteção física da errata. Finalmente, a errata também vai estar disponível em feiras e eventos futuros, podendo os leitores que compraram o livro em lojas como a FNAC, a Bertrand ou a Wook, solicitar diretamente a referida errata. Ora bem, com uma grande dose de humildade e responsabilidade a editora assume o (pequeno) erro mas, preocupando-se com os leitores, arranja uma solução para que os mesmos fiquem satisfeitos. Meus caros, isto para mim é serviço de primeira qualidade. E merece ser aplaudido por todos.

Concluindo, e olhando, finalmente, para o todo, O Mercenário é uma série com uma arte ilustrativa impressionante que, mesmo apresentando algumas fraquezas narrativas em termos de arte sequencial, consegue "encher o olho" e certamente agradará a muitos amantes de fantasia. E recebe pela Ala dos Livros uma edição maravilhosa que, por um lado, justifica a compra da mesma por parte de todos os leitores que já têm os livros que haviam sido anteriormente publicados em Portugal, e, por outro lado, consegue ser apelativa para leitores que ainda não conheciam o trabalho de Segrelles.


NOTAS FINAIS (1/10):
O Mercenário #1 – O Fogo Sagrado: 8.0

O Mercenário #10 – Gigantes: 7.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

Fichas técnicas
O Mercenário #1 - O Fogo Sagrado
Autor: Vicente Segrelles
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Junho de 2021

O Mercenário #1 e #10 – O Fogo Sagrado e Gigantes, de Vicente Segrelles - Ala dos Livros

O Mercenário #10 - Gigantes
Autor: Vicente Segrelles
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Junho de 2021

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