Rubricas

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Análise: Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor
Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn

Par além de Armazém Central ou de Corto Maltese (a preto e branco) outra das séries que a editora Arte de Autor terminou no ano passado, foi Os Filhos de El Topo. Aqui estamos perante uma mini-série, com três volumes, da autoria do consagrado Alejandro Jodorowsky, que se faz acompanhar por José Ladrönn no trabalho da ilustração.

Julgo ter tecido uma apreciação suficientemente completa desta série aquando a publicação da análise ao segundo tomo. Por esse motivo, convido todos os leitores deste texto a acederem a esse texto. Até porque neste artigo dedicado ao terceiro e último tomo da série, Os Filhos de El Topo #3 – Abelcaim, ver-me-ei forçado a citar esse texto várias vezes.

Primeiro que tudo, a série Os Filhos de El Topo é a história que Jodorowsky criou para ser um filme mas que, por circunstâncias várias, acabou por nunca chegar a sê-lo. Mas, não contente com esse fim para a sua história, Jodorowsky decidiu fazer dela uma banda desenhada. Como tal, para recriar a sua visão original, recorreu ao ilustrador Ladrönn.

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor
A relevância de Jodorowsky para a banda desenhada é de uma força abrupta se pensarmos não só na quantidade, mas, também, na qualidade de alguns dos trabalhos com que o autor já brindou os adeptos da 9ª arte. Mas, se isso é verdade e, praticamente, inquestionável, diria, também não deixa de ser verdade que nem tudo o que o autor lança atinge a qualidade expetável.

Os Filhos de El Topo talvez não seja disso exemplo – porque há aqui qualidade a vários níveis – mas também está longe de ser uma das obras mais relevantes ou recomendáveis do autor. Por ventura, será uma questão de gosto, subjetiva, portanto, mas o que é certo é que Os Filhos de El Topo representa uma viagem onírica, bizarra a muitos níveis, em que o autor tece várias alegorias envoltas nos mitos da religião cristã – ou não estivéssemos a falar de Abel e Caim, os filhos de Adão e Eva, segundo a Bíblia Sagrada –, transportando-os para o seu próprio universo e imaginação.

Assim, à partida, diria que parece logo ser uma ideia vencedora. E, com efeito, esta série tem uma personalidade tão própria que estou certo que será uma obra de culto para muitos entusiastas seguidores do autor. Porém, não deixa de trazer algumas lacunas e de deixar no ar que interessa mais a forma do que o conteúdo.

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor
Especialmente porque, acima de tudo, Os Filhos de El Topo é bem mais um misto de ideias avulsas e caprichos fetichistas do autor, do que uma narrativa coesa. Como referi, relativamente ao álbum anterior, “há uma consistente inconsistência nesta obra. Ou seja, o autor parece fiel ao seu estilo louco de inventar uma história e há até um bom paralelismo, muito coerente, com o filme El Topo. Esta é a parte em que Os Filhos de El Topo é consistente. Todavia, e goste-se ou não, por vezes a história poderá aparecer algo absurda, levantando algumas pontas que acabam por não ficar bem resolvidas – ou bem exploradas - e introduzindo elementos que, mais do que dotar a história de consistência narrativa, apenas parecem ser introduzidos para chocar e surpreender – gratuitamente – o leitor. Esta será a parte em que considero haver alguma inconsistência na obra, que acaba por ser uma das bandas desenhadas mais niilistas que já li. Neste western, carregado de surrealismo e constantes alegorias religiosas, contem com doses gratuitas de violência, como mortes, violações ou tortura, e com bastante sexo e nudez. Mas todos estes elementos estão envoltos numa aura metafísica e filosófica, que toca nos dogmas religiosos.

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor
Em termos de história, este terceiro volume conclui a saga. Abel continua a sua viagem, acompanhado de Lillith, satisfazendo os seus caprichos mais curiosos, até que ambos caem nas mãos do Coronel e do seu pequeno exército. A partir daqui, segue-se uma das cenas mais violentas (gráfica e mentalmente) que vi nos últimos tempos em banda desenhada. A situação é tensa e a forma como Jodorowsky a concebe e como Ladrönn a ilustra, está muito bem executada. Talvez não fosse necessária tanta violência? Talvez. Mas não restam dúvidas que a cena é daquelas que nos ficam na memória. O ponto alto do livro, diria.

Já o irmão de Abel, Caim, está desesperadamente a tentar salvar a sua amada. Todos os caminhos arrastam as personagens para a Ilha Sagrada que promete redenção a todas elas, das mais diversas formas.

O que é mais interessante na história de toda esta trilogia – e que está bem patente neste último volume – é a forma tão díspar e, até mesmo, oposta como atuam os dois irmãos. Um move-se pelo amor, outro move-se pelo ódio. Até as próprias mulheres de cada um são o oposto uma da outra. É interessante esta relação de yin-yang, de branco-preto, de bem-mal que as personagens trazem. No entanto, e no final, também fica no ar uma ideia de que talvez cada uma das personagens tenha mais elementos da outra do que aquilo que, inicialmente, seria de antever.

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor
Se essa foi a moral que Jodorowsky preparou para este Os Filhos de El Topo, até foi uma bela moral. Mas, também não é claro que tenha sido esse o seu objetivo, já que estamos perante uma história que é muito aleatória em diversos pontos. Como se as ideias fossem lançadas para o ar mais pela sua componente estética e respetivo potencial de choque do que, propriamente, pela sua componente narrativa.

Olhando para as ilustrações de Ladrönn, mantém-se neste terceiro livro, o belo trabalho feito até aqui. “Com cores genericamente esbatidas, que por vezes chegam a parecer estar mal pintadas, mas que são alternadas por alguns vermelhos vivos, o resultado estético final é muito interessante e parece remeter-nos automaticamente para o ambiente dos filmes de série b dos anos 70, em especial, e claro está, o de El Topo. Também aqui, na componente gráfica, há uma personalidade muito própria desta obra. É igual a si mesma. Por vezes, as personagens apresentam expressões faciais que me parecem algo mecânicas e pouco expressivas. No entanto, na aridez dos ambientes e cenários, que nos remetem para os clássicos do cinema de Sergio Leone, nas fantásticas ilustrações dos cavalos ou do corpo feminino, Ladrönn faz um excelente trabalho.

A capa volta a ser muito bela. E para isso também contribui a bela edição da Arte de Autor que, mais uma vez, apresenta capa dura com textura aveludada, com belos detalhes a verniz. De resto, a impressão e a encadernação são boas, e o papel é brilhante, com boa qualidade.

Em conclusão, posso dizer que certamente eu teria apreciado mais Os Filhos de El Topo se a minha leitura fosse feita durante o consumo de álcool e substâncias estupefacientes ou psicotrópicas. Como não foi o caso, devo dizer que a experiência deste volume – e desta série – mais não foi do que assistir a um freak show. Por vezes, com bons momentos, noutros casos, sem grande critério e em que se tenta causar uma impacto no leitor através de algo chocante. Mas o autor é Jodorowsky e, talvez por isso, tudo isto acaba por não surpreender tanto assim.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-

Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim, de Jodorowsky e Ladrönn - Arte de Autor

Ficha técnica
Os Filhos de El Topo #3 - Abelcaim
Autores: Jodorowsky e Ladrönn
Editora: Arte de Autor
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 232 x 310 mm
Lançamento: Outubro de 2022

4 comentários:

  1. Hugo, deixa-me dar-te um apontamento sobre o que escreveste.

    "Em conclusão, posso dizer que certamente eu teria apreciado mais Os Filhos de El Topo se a minha leitura fosse feita durante o consumo de álcool e substâncias estupefacientes ou psicotrópicas."

    Escrever isto sobre uma obra que não se entende é um tanto tolo e um tanto infantil. O Jodo tem um vasto simbolismo nas suas obras e El Topo vive de simbolismo pleno.
    Eu vi o El Topo há uns tempos e não percebi o que estava a ver. No entanto, fui ver o que conseguia encontrar, de malta que percebe mais de religiões pagãs, tarot, ocultismo e acabei por perceber que o Jodo cria algo que não é assim tão feito para estar pedrado. Não é nada acessível, é um facto, mas tem muito sumo para quem tenha cultura suficiente para interpretar o que está lá.

    O El Topo é cinema e dos anos 70. Muito já se escreveu sobre o filme em 50 anos e esta obra de BD nunca terá a oportunidade de que se escreva tanto sobre ela como aconteceu no filme. No entanto, aposto que em França vai haver teses de doutoramento sobre a obra, como fizeram do Incal, Cara de Lua e tantas outras obra do Jodo.

    Confesso que não sou um grande fã do autor, porque normalmente não consigo chegar a tudo o que ele mete. Acho que ele até é um pouco caótico por vezes. Mas se fores ver o Incal, é incrível o que ele e o Moebius conseguir colocar na obra que não se entende mas que a procura do significado faz com que a obra ainda hoje seja relevante.

    Portanto se queremos que a BD faça coisa audazes, capazes de chegar a outros públicos, escrever o que escreveste não é a melhor das coisas, porque apenas se dirige a um público que não está disposto a ver mais do que aquilo que se vê na primeira camada da obra.

    Eu li o primeiro e parei. Estou a aguardar que se comece a produzir material sobre os três livros. Se na altura achar que a leitura mais a informação que recolhi fizer a obra valer, então depois compro o dois e o três.

    Agora, como alguém que divulga BD não escrevas este tipo de coisas. Não ajuda a divulgação.

    Nota: seria muito importante os livros virem com paratextos para ajudar a compreensão da obra, mas isso muitas vezes não é possível. Isso já acontece em muitos sítios - o Incal em inglês tem um livro só para explicar o universo e os conceitos, o Cara de Lua da Norma Editorial tem páginas e páginas a explicar o contexto da obra.

    Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Fernando. Muito obrigado pelo teu comentário, cheio de informação pertinente, e por continuares a seguir o Vinheta 2020.

      Acho que tens bastante legitimidade no que apontas ao Vinheta 2020. Talvez o meu comentário não tenha sido o mais feliz. A ideia não foi denegrir a obra ou os seus múltiplos significados por camadas. Se passei essa ideia, lamento tê-lo feito.

      Não obstante, continua a ser a minha opinião e vale por isso mesmo: por ser a minha opinião. Não por ser "a lei" ou o que está "certo". Não. Apenas a minha opinião. E é isso que os meus leitores - ou a grande maioria - procuram no Vinheta 2020. A minha opinião. E não meras divulgações insonsas e politicamente corretas.

      Dito isto, sublinho que te dou razão no que escreveste. Gosto de críticas construtivas. E foi isso que, desta vez, fizeste.

      Um abraço.

      Eliminar
  2. Lá estão vocês a criticar o crítico no lugar de criticar a obra".Bons críticos" são os que leem uma obra e que quando entrevistam o editor não dizem nim apesar de não gostaram por ter rabo preso pelo "presente dado para só dizer bem" Isso é que é Bom para a bd.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Em Portugal toda a gente o rabo preso. A partir do momento que aceitas um livro de uma editora tens o rabo preso por muito que digas o contrário.

      Eliminar