Análise: E Agora?

E Agora?, de Raquel Sem Interesse

A editora Iguana, uma chancela do grupo Penguin Random House, pode estar timidamente a trilhar o seu caminho na edição da banda desenhada em Portugal – contrariamente ao que foi prometido pelos responsáveis – mas o que é certo é que, depois de um começo algo atribulado, começa a entrar nos eixos. Pelo menos ao nível qualitativo daquilo que é esperado no seu catálogo, tendo em conta, naturalmente, o público-alvo a que o mesmo se destina.

Com este E Agora?, estamos perante a melhor banda desenhada até agora do grupo Iguana. Depois de um primeiro livro da portuguesa Raquel Sem Interesse, Vida de Adulta, que foi lançado pela chancela Suma de Letras (também pertencente ao Grupo Penguin) a autora está de volta com a sua mais recente obra, que se intitula E Agora?. Voltamos a acompanhar as aventuras e desventuras do alter-ego da autora, Kika, mas, neste caso, o tom da história muda substancialmente.

Vida de Adulta resultou da compilação de algumas tiras humorísticas publicadas pela autora na internet, às quais acrescentou algum material inédito. E Agora?, por sua vez, é uma história com mais “cabeça, tronco e membros”, onde a autora, num registo de banda desenhada slice of life, se afirma como mais uma das promessas do talento português na banda desenhada.

Sendo esta uma obra completa e simples, dividida em quatro capítulos, a história é toda ela autobiográfica, contando-nos o percurso pessoal da autora. Primeiro, é-nos dada a conhecer a infância de Kika e a vida dos familiares com quem partilhou os primeiros anos de vida. Depois disso, acompanhamos a sua vida de estudante que procura entrar na universidade, mas que encontra obstáculos a esse objetivo e, mais tarde, mergulhamos nas primeiras experiências profissionais de Kika, ficando claro que essa passagem da vida de estudante para a vida profissional está repleta de desafios e obstáculos. Mas, se existem obstáculos profissionais, a vida pessoal e familiar de Kika também tem a sua dose de momentos difíceis, com a autora a focar-se especialmente na relação conjugal dos seus pais, que já teve melhores dias.

Devo dizer que, se já tinha gostado de Vida de Adulta, com este E Agora? a autora convence-me completamente. Especialmente, no primeiro capítulo da história, que me parece o mais forte e marcante de todo o livro, onde a autora apresenta um registo simples, genuíno e desarmante de contar a sua vida pessoal, que me remeteu, com a devida distância, para algumas das obras de Paco Roca.

Devo dizer que os capítulos seguintes, que versam mais sobre a questão profissional e das dificuldades inerentes aos primeiros empregos, bem como a vida amorosa da autora, embora tenham sido agradáveis de acompanhar, não conseguiram tocar-me tanto como a primeira parte do livro. E apenas e só por um motivo: porque são circunstâncias da vida que todos atravessamos. Mais mundanas, portanto, e menos impactantes. Claro que é sempre bom testemunharmos que todos temos mais em comum uns com os outros do que aquilo que, por vezes, gostamos de admitir. Mesmo assim, é na forma corajosa e honesta como a autora nos apresenta a sua família, que a leitura é mais impactante e pessoal, deixando-nos com um sentimento agridoce na leitura. Se algumas das melhores lembranças que temos na vida são aquelas passadas em família, também é verdade que, geralmente, os momentos mais difíceis de alguém, também são vividos em família.

A história deixa-nos, com efeito, empolgados ao longo da leitura e, ao mesmo tempo, as ilustrações da autora casam que nem uma luva na sua narrativa. Em termos de desenhos, embora o estilo que a autora nos apresentou no seu anterior livro, Vida de Adulta, seja próximo daquele que nos oferece neste segundo livro, há que dizer que em E Agora? alguns dos desenhos me pareceram feitos com maior velocidade. Por um lado, ganha-se na espontaneidade do desenho, por outro lado, o desenho torna-se mais "gatafunhado" e sujo. Mas é uma questão de gosto. Até porque, não esqueçamos, o estilo de desenho nervoso e rabiscado, que me remete um pouco, para o mestre André Franquin, está bem presente em ambas as obras de Raquel Sem Interesse.

Mesmo assim, como esta história é mais séria do que a anterior, as expressões das personagens não são tão exageradas, o que é compreensível, embora, aqui e ali, esse desenho que faz rir, e que a autora domina de forma tão eficaz, se faça sentir, mesmo assim. E que bom isso é para atenuar o tom da narrativa. Seja como for, há uma maior homogeneidade e amadurecimento nos desenhos de Raquel Sem Interesse neste novo livro.

Em termos cromáticos, cada um dos quatro capítulos que compõem E Agora? tem a predominância de uma cor forte: rosa, azul, verde e cinzento. O quarto e último capítulo quase parece a preto e branco, pela opção pela cor cinzenta.

A edição da Iguana apresenta capa mole, com badanas e um bom papel baço. A impressão e a encadernação têm boa qualidade. Mas mais do que uma palavra de apreço pela qualidade de edição – que é “simplesmente” boa – a Iguana merece, sobretudo, as minhas vénias pela aposta no trabalho da autora Raquel Sem Interesse.

Em suma, E Agora? sedimenta Raquel Sem Interesse como uma autora plena de potencial, que nos dá um trabalho honesto, sentimental e que tem o condão de poder servir como carta de apresentação de tantos jovens portugueses que, num país que vai estando ciclicamente em crise após crise, têm que "fazer pela vida" da melhor forma que conseguem. Quanto a mim, esta é a melhor banda desenhada da editora Iguana até agora!

NOTA FINAL (1/10):

8.7

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

E Agora?

Autora: Raquel Sem Interesse

Editora: Iguana (Penguin Random House)

Páginas: 136, a cores

Encadernação: Capa mole

Formato: 170 x 240 mm

Lançamento: Maio de 2023