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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Análise: Neon

Neon, de Rita Alfaiate - Escorpião Azul

Neon, de Rita Alfaiate - Escorpião Azul
Neon, de Rita Alfaiate

A Escorpião Azul lançou no passado Amadora BD o livro Neon, a mais recente obra de Rita Alfaiate, de quem a editora já havia lançado as obras No Caderno da Tangerina e Tangerina, que acabaram reunidas na versão integral da obra, denominada O Caderno da Tangerina, lançada no ano passado.

Por ser claro e indubitável o talento e potencial da autora portuguesa, este Neon era a obra por que muitos estavam à espera. Incluindo a minha pessoa. E digo-vos abertamente: se havia dúvidas (mão minhas!) quanto à capacidade e talento de Rita Alfaiate para a banda desenhada, estas dissipam-se completamente após a leitura deste novo livro que, sem dificuldade, é um dos livros da banda desenhada nacional do ano!

A história foca-se numa rapariga que, acompanhada pelo seu cão androide, percorre as ruas desertas desta cidade futurista, de ambiente distópico e com uma aura muito cyberpunk.

Com uma narrativa quase muda, onde são poucas as falas, um dos feitos mais notáveis de Rita Alfaiate é conseguir embalar-nos ao longo de mais de 100 páginas, onde o que nos é mostrado é mais visual do que textual. A autora opta por nos dar apenas algumas pistas para decifrarmos o que se passa com esta personagem que parece estar completamente só num mundo sem vida - mas, ao mesmo tempo, cheio de luz - onde toda a companhia que lhe resta é o seu cão androide, de nome Neon.

Se Rita Alfaiate opta por deixar a interpretação da história nas mãos do leitor, consegue igualmente o feito de deixar a porta aberta a pertinentes questões que subsistem na nossa mente já depois de finda a leitura: estará a protagonista a viver neste mundo pós-apocalíptico ou será todo este constructo uma mera metáfora para a sociedade atual que é tão pródiga na alienação do indivíduo, fazendo-o sentir-se só e isolado? E quando a personagem principal, nas escadas do seu prédio, não obtém resposta ao seu “bom dia”, por parte da sua vizinha, é porque esta não está mesmo lá ou porque vivemos enclausurados no nosso próprio universo não vendo as outras pessoas à nossa volta? Por fim, sendo nós tão solitários no lufa-lufa diário, será que não depositamos nos poucos seres que (ainda) estão à nossa volta – sejam eles um animal de estimação ou uma pessoa – a razão do nosso ser? Ou poderemos nós, através da tecnologia, recriar aqueles que fomos perdendo ao longo da nossa vida, de forma a atenuar o vácuo que deixaram depois da sua ida? As perguntas são mais que muitas, fazendo com que a leitura de Neon seja algo aliciante em termos intelectuais.

A história funciona perfeitamente em termos narrativos com um final marcante e emotivo que aumenta ainda mais as nossas dúvidas. É um livro para ler pausadamente, com calma, para melhor ser absorvido.

Neon, de Rita Alfaiate - Escorpião Azul
Em termos visuais, o trabalho de Rita é verdadeiramente fabuloso. E se há uma personagem principal nesta história, diria que, para além da protagonista, essa personagem principal é o próprio ambiente visual que a autora nos oferece. Com luzes luxuriantes e plásticas, que relembram as luzes dos centros urbanos carregados de iluminação a néon (daí, imagino, a boa escolha do nome para o cão e para o próprio título da obra), este local é vívido e cheio de cores luxuriantes embora, aparentemente, não pareça povoado por ninguém além da nossa protagonista e do seu cão. A dicotomia é, pois, poética e vibrante. Este universo futurista remeteu-me para os cenários de dois recentes videojogos, que também me agradaram muito, que foram Cyberpunk 2077 ou Stray. E que bom isso é, pois são dois videojogos onde, apesar dos seus defeitos na vertente de jogabilidade, apresentam universos para onde nos apetece mergulhar. Tal como em Neon.

De resto, e centrando-me nos desenhos de Rita Alfaiate, a autora revela cada vez mais todo o seu virtuosismo e talento. Há aqueles autores em que se percebe que já chegaram ao topo da sua evolução. Rita não pertencerá, decerto, a essa estirpe. Porque é notória, inequívoca e gritante a evolução que a autora revela face a trabalhos anteriores. Quer em termos de desenho de expressões, quer em termos de enquadramentos cinematográficos, de planificação dinâmica ou, claro, de cor.

E as cores representam uma grande importância em termos da experiência visual e sensorial que é Neon. Estive na apresentação deste livro no Amadora BD e pude compreender que a formação de Rita Alfaiate também é em pintura. Não admira, portanto, que demonstre tanta qualidade, inspiração e técnica nesta vertente. As cores são tão impactantes, tão belas, tão vívidas e tão ricas que a pergunta que se impõe é: como é que só agora tivemos direito a um álbum a cores por parte de uma autora que as domina tão bem? É preciso que seja eu a começar o movimento com o mote: “Queremos mais álbuns da Rita Alfaiate a cores!”? Acho que não. Pois estou certo que toda a gente saberá apreciar o quão belo é o trabalho de colorização neste Neon.

Neon, de Rita Alfaiate - Escorpião Azul
Já o disse aqui no Vinheta 2020 e digo-o novamente: não se fala muito deste assunto em Portugal, mas na verdade, e olhando para a parte da ilustração, colocando a parte do argumento de fora desta equação, são vários os autores nacionais de renome que são belos ilustradores (em termos de desenho) mas que não conseguem um resultado tão bom ao nível da cor. Dito por outras palavras, é como se a cor fosse o lado menos forte de muitas ilustrações de autores portugueses. Com Rita Alfaiate não será, de todo, esse o problema. A autora é exímia nas cores. Possivelmente até é esta a sua principal valência.

Uma outra coisa que salta muito à vista nesta obra, e que ainda não referi, é a introdução de ilustrações que ocupam duas páginas do livro onde a autora mostra, através de lindos desenhos carregados de meticulosos detalhes, que é um dos grandes talentos nacionais. É difícil não se ficar a olhar embasbacado para estas ilustrações durante largos momentos, tal não é a sua beleza.

Uma palavra de louvor deve ainda ser dada a capa deste Neon que é maravilhosa, não só em termos estéticos e de grafismo, como na questão e audácia da perspetiva utlizada pela autora para o desenho da protagonista da história. E as cores, claro (e mais uma vez) destacam-se pela sua beleza.

A edição da editora Escorpião Azul é em capa mole com badanas. Sendo verdade que parece uma edição em linha com as edições habituais da editora, este Neon, à semelhança de Elviro, de Paulo J. Mendes, apresenta um maior cuidado ao nível da edição. Coisa que merece, aliás, os meus aplausos. O papel é baço e apresenta uma boa gramagem e, no final, há espaço para 10 páginas de extras, onde podemos apreciar os lindos esboços e ilustrações da autora. O rebordo das páginas é feito na cor rosa-choque o que, para além de dar um belo aspeto visual ao livro, ainda se coadenua bem com o título e género da obra. Em termos de legendagem, compreendo que se tenha optado por uma font que remete para o mundo digital, embora talvez não tivesse sido a minha escolha. Mesmo assim, acho que esta é uma edição em que a Escorpião Azul se pode orgulhar do bom trabalho feito.

Em suma, Rita Alfaiate dá-nos neste seu Neon uma obra marcante que é um autêntico festim de luz, cor, desenho e ambiente, num álbum que passa a ser um marco da banda desenhada nacional em termos visuais e, sem dúvida, um dos livros mais obrigatórios da editora Escorpião Azul que, nos últimos tempos, parece ter encontrado um rumo mais certo na bitola qualitativa do seu catálogo – e prova disso é o recente prémio de Melhor Álbum de Autor Nacional conquistado no Amadora BD com Elviro, de Paulo J. Mendes.


NOTA FINAL (1/10):
9.2



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Neon, de Rita Alfaiate - Escorpião Azul

Ficha técnica
Neon
Autora: Rita Alfaiate
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 120, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Outubro de 2023

2 comentários:

  1. A história é algo elíptica, mas a meu ver, a jovem e a idosa do fim do livro são a mesma pessoa. O vaso com a folha aparece em destaque na casa de ambas. A ser verdade, às questões apresentadas ainda poderão haver um paradoxos temporais. Mas excelente obra sem dúvida.

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    1. Comentário interessante, Paulo. Não retirei essa conclusão mas parece-me legítima também! Obrigado pela partilha!

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