quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Análise: Elviro

Elviro, de Paulo J. Mendes - Escorpião Azul

Elviro, de Paulo J. Mendes - Escorpião Azul
Elviro, de Paulo J. Mendes

Agora, vendo bem, talvez tivesse sido fácil de antever que Paulo J. Mendes voltaria a deslumbrar-nos depois de O Penteador.

Já nessa altura, com essa obra, Paulo J. Mendes provou ser um contador de histórias sui generis, sabendo dotá-las de um humor simples – talvez básico, até – mas que é verdadeiramente delicioso e nos remete para alguns momentos dos Monty Python. Tudo isso, enquanto revelava um traço eficaz e que se coadunava bem com a história contada. Essa obra acabou por ser muito bem aceite por público e crítica, a que se juntaram algumas nomeações e prémios de banda desenhada, nomeadamente a vitória no VINHETA D’OURO para Melhor Obra de Humor em 2020.

Mas, se O Penteador foi muito bom, Elviro acaba por o superar em todos os pontos. A história é mais completa, mais lógica, o non-sense não é tão presente em Elviro como em O Penteador, mas isso não significa que esse tipo de humor não esteja presente em toda a obra. Quem gostou da leitura divertida e bem disposta de O Penteador, decerto não se sentirá defraudado com este Elviro. Mas, para além desse humor, há bastante mais neste segundo livro que a Escorpião Azul edita do autor. Há aqui toda uma relevância histórica e um conjunto de personagens memoráveis que ficam connosco, mesmo depois de fecharmos o livro. E se isso não é uma característica comum aos chamados "clássicos da banda desenhada", então o que será?

A história de Elviro é simples. Elviro Bolacho e a sua esposa Ataílde decidem passar uma semana de férias de Verão em Nalgas de Mar, uma vila costeira, com belas praias. Elviro é um entusiasta dos velhos veículos de transporte público e, por esse motivo, escolheu Nalgas de Mar como destino para as suas férias, devido ao velho serviço de elétricos da vila se encontrar prestes a encerrar. Como entusiasta, Elviro quer documentar o momento histórico em que o serviço de elétricos será substituído por um sistema de troleicarros.

Elviro, de Paulo J. Mendes - Escorpião Azul
No entanto, nem tudo são coisas boas neste período estival e a relação entre Elviro e a sua esposa, Ataílde, não parece viver os melhores dias. Brigas constantes entre os dois, essencialmente devido a esta paixão pelo transporte público de Elviro, levam a que haja uma forte zanga entre o casal, que os leva a passar a estadia sozinhos, cada um para seu lado. Ataílde passa a frequentar a praia junto de um amigo esotérico, enquanto que Elviro divide o seu tempo entre o estudo e a tentativa de salvamento dos velhos elétricos de Nalgas de Mar.

Entretanto, Elviro conhece Jaclina, uma bela jovem boleira, por quem parece nutrir uma paixão. Ou um “fraquinho”, vá. A este enredo, juntam-se memoráveis personagens como Parretas, o responsável pelo serviço dos Elétricos; Tângero, o Padre moderno que gosta de música eletrónica; Prendrelico, o Rei das Bolas de Berlim; Nektarina, a russa que ajuda Jaclina e Parretas; Atunésio, também fã de transportes públicos; Arrozinho, que tem jeito para tudo e mais alguma coisa; e, também, o grupo de mirones, adepto de observar à distância o crescente número de mulheres que pratica essa dádiva dos céus chamada topless. São personagens que nos fazem rir, pela sua conduta e forma de estar peculiar e que Paulo J. Mendes esculpe muitíssimo bem.

A história está carregada de humor, mas diga-se em abono da verdade que estamos perante um humor muito próprio. Não parece que Paulo J. Mendes tente fabricar tiradas cómicas ou gags humorísticos, com a habitual punchline. Ao invés, o autor presta-se a dar-nos uma história que justamente por não parecer humorística, mas sim algo sério, é que nos faz rir perante as situações, os nomes das personagens e das localidades, os eventos non-sense que são criados. É aí, nessa aparente tentativa de ser sério, que reside a genialidade do humor do autor, quanto a mim. Daí ser um tipo de humor refinadamente simples, que se torna delicioso e que me remete, muitas vezes, para os Monty Python. É, pois, frequente que, lendo este Elviro (e O Penteador também, já agora) pensemos: “mas este Paulo J. Mendes está a dar-nos uma história séria, está a gozar com a nossa cara ou, simplesmente, é um autêntico "Rei" da comédia, que não tem medo de ser silly ou non-sense (perdoem-me os estrangeirismos), mesmo quando a história tem um lado de sério, também?”. Fico-me pela última hipótese. A trama é divertida e com aquele humor inocente típico dos antigos filmes portugueses, como o A Canção de Lisboa, O Grande Elias ou O Pátio das Cantigas, entre outros. A título de exemplo, refiro que as provocações constantes a Prendrelico me fizeram recordar as provocações constantes a Evaristo, em O Pátio das Cantigas.

E, mesmo admitindo que, por vezes, parece haver um excesso de balões e falas desnecessariamente grandes, acabamos por constatar, mais à frente, que esse diálogo que. inicialmente nos parecia mundano ou dispensável, é inteligentemente aproveitado pelo autor para contribuir para mais uma piada ou mais um momento hilariante. Não obstante, admito que, em alguns casos, me pareceu que Paulo J. Mendes nos dá alguma matéria informativa a mais, em relação aos elétricos e aos troleicarros. Lendo a nota introdutória com que o autor nos brinda logo nas primeiras páginas, percebemos que o mesmo também nutre um especial gosto pelo tema e que, por conseguinte, talvez não se tenha coibido de falar sobre o mesmo. Contudo, pareceu-me que talvez se tenha adensado em demasia no assunto. Não que, sublinhe-se, isso torne a leitura maçuda ou aborrecida.

Elviro, de Paulo J. Mendes - Escorpião Azul
Se, até aqui, tenho estado focado na bela e hilariante história de Elviro há que dizer que, em termos visuais, o trabalho do autor não fica nada atrás. E aqui o salto qualitativo face a O Penteador é verdadeiramente gritante. E tudo isso é potenciado pela enorme beleza com que as cores dotam os desenhos do autor. Este é um daqueles autores que faz um belo uso das cores e que, só por isso, já deixa vontade de querer ler a sua história. Nos ambientes, especialmente, são verdadeiras obras de arte que compõem o livro. Posso até dizer uma coisa: depois deste Elviro já não consigo – nem quero – imaginar um novo livro de Paulo J. Mendes que não seja a cores. Ainda que o tom de pele das personagens me pareça um pouco avermelhado em demasia, acho que as cores potenciam - em muito! - as ilustrações do autor. E mesmo quanto a esse tom avermelhado de pele... como é uma história de verão e de férias na praia, aceita-se que as personagens estejam com escaldões por longos períodos de exposição solar.

Se em termos de desenho de personagens, onde o autor utiliza um traço semi-caricatural simples, não há um grande afastamento face àquilo que o autor nos tinha dado em O Penteador, já em termos de ambientes e do tratamento dos veículos, é notória uma bela evolução. Os desenhos acabam por ser bastante ricos, povoados por imensos detalhes que, não raras vezes, merecem uma observação atenta da parte do leitor. 

Acho que talvez certas vinhetas pudessem "respirar" melhor, se não fossem tão pequenas e tivessem tanto texto, embora isso também me pareça mais "feitio" do que "defeito". É o estilo do autor, apesar de tudo. 

A edição da Escorpião Azul parece ser semelhante aos demais livros da editora, mas, neste caso, há algumas questões que interessa realçar, por melhorarem a qualidade do livro. Como habitual, a capa é mole, com badanas, mas, desta vez, temos um papel com uma gramagem mais espessa do que o costume (120 g) e a extremidade do papel tem a cor amarela. O que faz com que o livro, quando fechado, tenha a cor amarela se olharmos para o conjunto das páginas como um todo. Nota positiva ainda para o generoso caderno de extras que inclui estudos gráficos de Paulo J. Mendes para os locais, as personagens, os veículos, os storyboards e as capas. São extras muito bem-vindos e que dignificam a edição da Escorpião Azul. Como ponto menos positivo, apenas lamentei que alguns balões apresentassem pretos menos carregados, que fez parecer que havia falta de preto na impressão. Mas não é nada muito chocante.

Por fim, é justo dizer que, não só Elviro é uma das melhores BD’s portuguesas do ano, como se assume, com alguma facilidade, diga-se, como um clássico instantâneo da banda desenhada portuguesa! Se O Penteador já foi bom e se já nos apresentou o enorme potencial de Paulo J. Mendes, Elviro é a verdadeira constatação da relevância do autor, que junta uma personalidade muito própria na maneira de contar histórias castiças, carregadas de portugalidade, com um humor bastante raro. E tudo isto num belo registo visual, onde as bonitas cores são as jóias da coroa. Não li todo o catálogo da Escorpião Azul – embora tenha lido a grande parte dos livros da editora – mas arrisco dizer que esta é a obra mais relevante da Escorpião Azul. Absolutamente obrigatória!


NOTA FINAL (1/10):
9.4



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Elviro, de Paulo J. Mendes - Escorpião Azul

Ficha técnica
Elviro
Autor: Paulo J. Mendes
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 208, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Outubro de 2022

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