Depois de ter passado a ser a editora de um dos autores mais aclamados da banda desenhada nacional – falo de Luís Louro – a Ala dos Livros tem vindo, gradualmente, a apostar em novos autores nacionais. Primeiro foram Marco Calhorda e Daniel Maia, com CO.BR.A. – Operação Goa, e, mais recentemente, foi a vez da aposta da editora recair sobre os autores Diogo Campos e Hugo Teixeira.
Este novo livro, que se intitula simplesmente Pássaro, traz consigo toda uma aura de originalidade e frescura que o torna apetecível.
Em primeiro lugar, é uma história muda. Algo que, não sendo caso único – assim de repente, e na minha pilha de leituras relembro Kong The King 2, de Osvaldo Medina, ou Miau!, de Joana Estrela – é, ainda assim, fora do comum. Diogo Campos e Hugo Teixeira trazem-nos, pois, uma história sem diálogos e sem legendas, que convida à interpretação do leitor, deixando no ar um cariz de beleza poética.
Por outro lado, e para além de ser uma banda desenhada muda, Pássaro também se distingue por ser um trabalho com uma identidade muito própria ao nível da planificação da obra, do próprio tipo de ilustração – bem como pela aposta no preto e branco, que oferece uma tónica clássica ao todo.
Em termos de argumento, Diogo Campos inspirou-se em duas obras de diferentes autores: Nankichi Niimi e Hans Christian Andersen. O primeiro – menos célebre – serviu de inspiração primária quando Diogo Campos se deparou com um conto de Niimi ilustrado em aguarela que, imediatamente, o levou a fazer uma associação ao conto de Andersen, A Vendedora de Fósforos. Desenvolveu, então, uma breve banda desenhada em quatro pranchas, que acabaram por se demonstrar curtas para apresentar a história do modo mais claro que o autor procurava. Foi então que Diogo Campos, não deixando cair a sua ideia por terra, começou a trabalhar com o ilustrador Hugo Teixeira.
Eventualmente, o argumentista português decidiu cruzar a inspiração de ambos os contos numa história sua. E fê-lo – e há que salientar isso – não como "mais uma" adaptação de ambas as histórias, mas sim, servindo-se da história original dos contos para construir algo novo, de forma inteligente e com um sentido toque de sensibilidade que levanta questões de moralidade, de justiça social e, até, de ecologia.
Sem palavras, o autor conseguiu pôr-me a pensar e a refletir como muitos textos, carregados de figuras de estilo e palavras dramáticas, não conseguem fazer. E diria que esse será, por ventura, o grande trunfo dos autores e do seu belo Pássaro.
Pássaro esse que protagoniza a história mostrando-nos, através dos seus olhos, o que se desenrola no mundo dos humanos e como estes – voluntária ou involuntariamente – condicionam o mundo e todas as formas de vida que nele habitam.
Arrancando o livro com belas imagens aéreas do voo deste pássaro, depressa vemos, pelos seus olhos – qual drone natural! – que as árvores da floresta estão a ser cortadas. O pássaro segue-as até à serração de madeiras e daí até à cidade. A madeira das árvores é, então, transformada em fósforos e acaba a ser vendida numa mercearia. E é a partir deste ponto que conhecemos a menina que, por circunstâncias da sua vida que nos são apresentadas, se vê forçada a vender fósforos. Depois de humilhada, roubada e desprezada, esta menina vê-se só e abandonada pela sociedade. Tendo frio, fome e apenas alguns fósforos como único bem. Face a um frio gélido, e sem casa e sem calor, a menina não tem outro remédio senão acender os fósforos para encontrar algum calor. Mas os fósforos também têm um fim e, eventualmente, será uma noite demais sombria e triste para esta criança abandonada pela vida.
Um relato visual sensível, provido de uma certa tristeza, que tem nas ilustrações de Hugo Teixeira o seu sustento narrativo.
As ilustrações do autor, a preto e branco, funcionam bastante bem, com Hugo Teixeira a conseguir tornar clara a história que nos é dada. Os desenhos aéreos do pássaro a percorrer os céus são muito belos e poéticos, levando-nos também a nós, leitores, a um breve e memorável voo pelos céus gélidos aonde toma lugar esta história.
Se o desenho das personagens humanas está bem conseguido pelo autor, também há, porém, algumas expressões visuais – especialmente das personagens secundárias e/ou figurantes - onde é notório que o desenho carecia de mais cuidado. Por esse motivo, nem todos os desenhos de Hugo Teixeira estão ao mesmo nível. Nunca são fracos ou mal executados mas é verdade que há algumas ilustrações que são agradáveis, enquanto que outras são verdadeiramente majestosas. Portanto, mesmo podendo, quiçá, ser, aqui e ali, melhor, a verdade é que o trabalho do autor é mais do que positivo. Nota também muito positiva para a forma como Hugo Teixeira conseguiu representar o clima gélido, cheio de nevões, que envolve a história. Faz com que sintamos frio só de observar estes desenhos.
Onde o exercício ilustrativo do autor me agradou especialmente foi na forma como planificou esta banda desenhada. Para além de uma construção gráfica das pranchas de forma bastante dinâmica, com vinhetas de todos os tamanhos e feitios, o nosso olhar depara-se com a forma original como as vinhetas são delineadas. Se estamos em ambiente florestal, os limites das vinhetas assumem contornos que parecem ramos de árvores; se estamos na cidade, os contornos das vinhetas são com as formas de candeeiros de rua; se presenciamos o corte das árvores por parte dos lenhadores, os limites das vinhetas apresentam a forma dentada de uma serra. É uma opção que dá personalidade e conteúdo à narrativa. Num ou noutro caso, talvez esta opção tenha retirado a atenção da própria ilustração que emoldurava – o que não será muito positivo – mas foi algo que senti apenas umas duas ou três vezes. Regra geral, funcionou muito bem.
Tenho ouvido e lido muitos elogios à capa do livro. Achando uma capa competente e com alguma beleza na sua ilustração, julgo que não demonstra todo o potencial de ilustração de Hugo Teixeira. Por exemplo, consigo imaginar uma capa bastante mais bela se se tivesse optado por utilizar a ilustração que vem na contracapa do livro. Mas, claro, são gostos. E lá que a capa do livro é apelativa, lá isso é.
A edição da Ala dos Livros está bem conseguida, com o livro a apresentar capa dura baça, com detalhes a verniz, e papel brilhante. Pergunto-me se a opção por papel baço não teria funcionado melhor, tendo em conta o estilo de ilustração que Hugo Teixeira nos dá. A encadernação e a impressão têm uma qualidade excelente, como é habitual. Destaque para o dossier de extras, denominado “Bastidores”, que reúne 8 páginas que incluem textos explicativos dos autores, esboços, desenvolvimento de pranchas e partes do guião.
Nota honrosa para a última página do livro onde os autores, através de um posfácio e de um QR Code nos convidam a um exercício que achei deveras interessante. Através do QR Code apresentado, é possível aceder-se a um conjunto de balões e legendas que os autores prepararam para que, desta forma, o leitor também se possa tornar um contador de histórias, dotando este Pássaro de texto escrito. Isto é um exercício de apuramento de escrita criativa muito bem-vindo e que ajuda a criar uma relação entre autor, obra e leitor. Merece o meu aplauso e podem crer que, caso eu tenha tempo, tentarei participar nesta iniciativa que decorre até ao final do ano e que me parece muito generosa por parte dos autores e editora.
Em suma, devo dizer que Pássaro é uma bela obra que se soma aos bons lançamentos de banda desenhada portuguesa deste ano 2022, e que merece ser “lida” e observada por todos os amantes de banda desenhada que assumem que, às vezes, é necessário parar um pouco para refletir, para escutar, para observar.
NOTA FINAL (1/10):
8.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Pássaro
Autores: Diogo Campos e Hugo Teixeira
Páginas: 48, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 270 mm
Lançamento: Setembro de 2022
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