Sei agora que este livro já andava a ser preparado há bastante tempo. No entanto, só tive conhecimento dele no Amadora BD, em Outubro, quando o editor da Ala dos Livros, Ricardo M. Pereira, o anunciou entre as várias novidades que a editora tinha em mente para 2022. Da autoria de Marco Calhorda, que se estreia enquanto autor de banda desenhada, e do já bem mais experiente e conhecido, neste meio, Daniel Maia, posso dizer que CO.BR.A. – Operação Goa é uma das belas surpresas do ano!
Este é um livro de cariz histórico-bélico que nos coloca no Portugal dos anos 60, que se aproximava, sem volta a dar, de um processo de descolonização dos seus antigos territórios espalhados pelo mundo. E tudo começou na Índia, alguns anos antes de Portugal iniciar a Guerra do Ultramar. Até então, Portugal tinha estado presente, durante mais de 450 anos, na Índia, com os territórios de Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli. Começo até por dizer que este tema dos militares portugueses na Índia até é um assunto que, com alguma pena minha, poucas vezes é abordado. E não me refiro apenas à banda desenhada. Refiro-me a todos os media, na verdade. Um dos meus tios foi um dos militares que esteve na Índia durante este tempo, vivendo todos estes eventos na primeira pessoa, portanto até posso dizer que, por motivos pessoais, também é um tema relevante para mim.
Ainda sob a égide de Salazar, tornou-se impossível para o governo português assegurar Goa enquanto colónia e isso culminou na invasão deste território por parte do exército indiano. Os militares portugueses acabaram por não ter alternativa senão renderem-se, tendo sido feitos prisioneiros. À margem da atuação oficial do Estado Português, entra em cena Jorge Jardim, um autêntico agente secreto a la 007, ao serviço de sua majestade, Salazar, que teria como objetivo a negociação da repatriação de milhares de prisioneiros portugueses que estavam detidos em condições precárias.
Se o assunto é fresco em banda desenhada, o argumento da autoria de Marco Calhorda prima por conseguir reunir um bom conjunto de eventos que antecedem a Operação Goa. Assim, o autor tenta oferecer-nos uma contextualização dos eventos político-militares que eram vividos por esta altura, em 1961, bem como uma visita à base de operações do CO.BR.A cujo nome, para passar despercebido, tinha o significado de “Comissão Contra a Brutalidade Animal”.
O ritmo da narrativa assume o andamento de um filme de espiões, com bastante política e ação à mistura. Um guisado bem conseguido – e não tão comum assim na banda desenhada nacional. Gostei da forma utilizada embora me pareça que, mantendo este registo, talvez um maior número de páginas tivesse sido benéfico para dosear melhor a informação e os eventos que aqui decorrem. Fica, portanto, a sensação que vemos a ação desfilar apenas diante dos nossos olhos sem que a relação entre leitor e livro se possa estreitar. E como a história está constantemente a saltitar entre inúmeros locais – Luanda, Goa, Vimieiro, Sacavém, Madrasta, Nova Deli, Mumbai, Lisboa, Lourenço Marques, Estoril – por vezes o leitor anda ali, de cabeça à roda, como se estivesse a assistir a uma partida de ténis. Ainda estamos a ambientarmo-nos a um local e Marco Calhorda já está a agarrar em nós e a transportar-nos para outro local, com outros intervenientes.
Não é que a trama esteja mal ligada, mas é um daqueles casos em que acredito que uma voz off, de um qualquer personagem, mesmo que fictício, que pudesse contar-nos a história e o que se passa de um local para o outro, teria feito a narrativa mais fluída e elevado este livro a um nível (ainda) melhor. E não digo isto para puxar a obra para baixo. Pelo contrário, digo-o para puxá-la para cima. Já é um excelente livro mas acredito que com algumas melhorias do ponto de vista do argumento, seria ainda melhor. No entanto, não me espanto se este livro for considerado com uma das obras mais interessantes da banda desenhada portuguesa dos últimos anos.
Até porque não dá para falar deste CO.BR.A. – Operação Goa sem mencionar o mais óbvio e aquilo que está mais presente assim que folheamos o livro: é que os desenhos de Daniel Maia são soberbos e uma verdadeira maravilha para os olhos! Não é, aliás, exagero nenhum afirmar que Daniel Maia se encontra entre os melhores ilustradores de Portugal!
Com um traço realista certeiro, confiante, a tinta, que me fez lembrar, com as devidas distâncias, o igualmente belíssimo trabalho de Sébastien Verdier na obra Orwell, também publicada pela Ala dos Livros, os desenhos de Daniel Maia apresentam-se como belíssimos, da primeira à última vinheta. A caracterização das expressões, da linguagem corporal das personagens, dos cenários, das cenas de ação, dos enquadramentos, do jogo de sombra e luz... enfim tudo... roça a perfeição. São desenhos maravilhosos.
E se a abordagem imagética parece clássica, remetendo-nos para algumas bandas desenhadas dos anos oitenta, a planificação da história, com ilustrações que suplantam os limites das vinhetas; o próprio modo de organização das pranchas, com vinhetas bastante dinâmicas na forma e dimensão; ou, até, a existência das páginas 22 e 23, que são páginas com texto corrido e que até têm um QR code para que melhor possamos pesquisar sobre o assunto em questão, revelam-nos a faceta moderna e cuidada, não só de Daniel Maia como, também, de Marco Calhorda. Ou seja, em termos gráficos parece que este livro nos consegue dar o melhor do clássico e do moderno.
Se me posso queixar de algo nos desenhos desta obra é que, por vezes, tive alguma dificuldade em perceber que personagem era quem. E para isso até contribuem algumas coisas que são alheias ao ilustrador. O facto de ser um livro a preto e branco, que anula logo a cor enquanto elemento diferenciador de personagens; o facto de ter um grande número de personagens; e, especialmente, o facto de ser um livro cujo argumento é, por vezes, algo rápido demais para que possamos estabelecer uma relação prolongada com as personagens.
É verdade que isto não é um grande “problema”, pois o livro continua a ser bastante acessível para acompanhar. E, diga-se em abono da justiça, até me fui dando conta da meticulosa preocupação de Daniel Maia em diferenciar as personagens. Lembro-me que no meio de uma cena de ação me perdi, sem saber quem eram os portugueses e quem eram os indianos. Mas depois percebi que me bastaria ver as diferenças nos capacetes dos militares para perceber quem era quem. Portanto, uma certa dificuldade em diferenciar as personagens será um pequeno ponto fraco, mas nada que abale a fantástica experiência gráfica que é CO.BR.A. – Operação Goa. Porque se não é perfeito, não anda muito longe disso.
A Ala dos Livros está, portanto, de parabéns por esta aposta de qualidade. Depois de passar a editar um autor tão relevante para a banda desenhada nacional como Luís Louro, é com bons olhos que vejo esta segunda aposta em banda desenhada nacional, por parte da editora.
De resto, a edição deste CO.BR.A. – Operação Goa tem uma qualidade acima da média, relativamente às edições de autores portugueses que costumamos encontrar por cá. A capa é dura e coberta por tecido e, para além disso, ainda é guarnecida por uma sobrecapa. Tem, também, papel de excelente gramagem e com boa qualidade na encadernação e nos acabamentos. Há ainda espaço para um prefácio de autor, por parte de Marco Calhorda, quatro páginas com esboços e vinhetas descartadas de Daniel Maia, bem como uma página com testemunhos de homens que viveram de perto os eventos relatados na obra. Há ainda (mais) uma belíssima ilustração com a legenda: “CoBrA regressa em Operação _____” deixando no ar a ideia de que os autores vão voltar a este tema. Que assim seja! E tão depressa quanto possível!
Em suma, CO.BR.A. – Operação Goa é uma autêntica passerelle para o enorme talento de Daniel Maia enquanto ilustrador de banda desenhada. Diria que só pelos seus lindos desenhos, este álbum já merecia ser comprado. Mas há mais do que isso! Há também um tema da história recente de Portugal que muitas vezes parece esquecido e que é oportunamente trazido à tona por Marco Calhorda. Um livro que merece ser apreciado por todos os fãs de banda desenhada em Portugal. E não só. Sem dúvidas de que é uma obra que se recomenda vivamente! Será posta à venda a partir do próximo dia 25 de Abril. Data mais que ajustada pelo seu simbolismo.
NOTA FINAL (1/10):
8.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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CO.BR.A. – Operação Goa
Autores: Marco Calhorda e Daniel Maia
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 72, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Dezembro de 2021
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