A Ala dos Livros lançou recentemente a obra Orwell, uma biografia desenhada do escritor incontornável George Orwell, que se tornou célebre com as obras O Triunfo dos Porcos e 1984. Os autores desta adaptação para banda desenhada são Pierre Christin, no argumento, e Sébastien Verdier, na arte.
Mas não estão sozinhos na conceção desta obra. Aparecem como artistas convidados, nomes importantes da 9ª arte como André Juilard, Butch, Enki Bilal, Juanjo Guarnido, Manu Larcenet ou Olivier Balez.
Depois da obra de Orwell ter entrado em domínio público, têm sido muitas as adaptações dos seus trabalhos para banda desenhada. Só em Portugal, num curto espaço de tempo, já foi lançado 1984, pela editora Alfaguara, e a editora Relógio D' Água, depois de lançar A Quinta dos Animais (também conhecido como O Triunfo dos Porcos), prepara-se para lançar uma outra adaptação para bd da obra 1984 que será, desta vez, assinada por Xavier Coste. Não esquecendo ainda a brilhante série da Arte de Autor, O Castelo dos Animais, que, não sendo uma adaptação direta de O Triunfo dos Porcos é, claramente, uma homenagem e uma reinterpretação dessa obra de Orwell.
No caso da Ala dos Livros temos algo que, tocando nos mesmos pontos, é deveras diferente. Em vez de uma adaptação de um livro do autor britânico temos uma biografia que se preocupa em traçar com consistência aquilo que foi a vida de Orwell, cujo nome real era Eric Blair, e que acabou por se tornar um escritor emblemático da literatura moderna.
Se muitos poderiam achar que esta é uma biografia filosófica sobre os pressupostos, ideias e inspirações que levaram o autor a produzir obras como O Triunfo dos Porcos ou 1984, a verdade é que esta é uma biografia clássica na sua forma, tentando contar-nos a história do autor, desde a sua infância até à sua morte, cobrindo muitos episódios da vida pessoal de Orwell. Se há alguma interpretação sobre o estudo, influência e repercurssão da obra do autor é no epílogo deste livro, no capítulo intitulado Depois de Orwell. Porque, todo o resto do livro é muito mais factual do que interpretativo.
E esta não é uma vida qualquer! Mesmo que a obra do autor não fosse suficientemente relevante – e não hajam dúvidas que os seus dois livros mais famosos são absolutamente obrigatórios e obras-primas inequívocas da literatura mundial – a vida de Orwell já seria uma história muito interessante para contar. É que este foi um homem que nasceu em Bengala, estudou em Eton, que foi polícia na Birmânia, jornalista, cronista, naturalista, anti-estalinista e chegou mesmo a partir de malas e bagagens para combater na Guerra Civil Espanhola, pelo lado das forças milicianas do POUM.
Todos estes eventos são alinhados e montados pelo argumentista Pierre Christin, de quem há uns dias analisei o álbum integral Lena, publicado em Portugal pela Arte de Autor. São claros o respeito e a devoção que Christin nutre por Orwell querendo, acima de tudo, apresentar-nos a vida de Orwell sem grandes interpretações e com um óbvio assento no que é factual. Nos eventos passados. Para se fazer valer de um texto mais interpretativo da pessoa que foi Orwell – e das suas considerações e convicções – Christin utiliza texto escrito por Orwell na primeira pessoa em que o mesmo opina, basicamente, sobre imensas e variadas coisas. Este texto aparece numa font diferente, num estilo de máquina de escrever, para que nós, leitores, possamos compreender facilmente quando é Orwell a falar na primeira pessoa. Parece-me uma excelente iniciativa por parte dos autores que, desta forma, complementam com ainda mais verossimilhança aquilo que nos é contado nesta biografia.
É verdade que, por um lado, gostaria que houvesse, a espaços, uma interpretação das pretenções e sugestões da obra de Orwell. Daquilo que ele queria dizer, daquilo que o levou a escrever determinada coisa em detrimento de outra. Parece-me, pois, que o texto acaba por ser, por vezes, demasiado factual, não dando espaço a uma reflexão mais profunda. Todavia, isso também revela um grande respeito e seriedade de Christin perante Orwell, nesta biografia. Mais do que argumentista, Christin é aqui um historiador.
Porque o verdadeiro “poeta” neste livro é mesmo Sébastien Verdier que nos oferece um trabalho fabuloso no pelouro da ilustração. Este é um livro com desenhos verdadeiramente lindos e detalhados, que roçam a perfeição, dando-nos um trabalho fantástico que sabe explorar o preto e branco da melhor forma possível. Verdier apresenta um traço virtuoso, que dá atenção aos mais ínfimos detalhes de cada vinheta e que contribui para uma experiência sublime de leitura. A representação de Orwell e das restantes persoangens, a ilustração de ambientes, a linguagem corporal das personagens, a ilustração dos veículos, do espaço urbano, do espaço rural, do campo de batalha... enfim, qualquer coisa é representada por Verdier de uma forma absolutamente impressionante. E a utilização com graciosidade do espaço negativo é outra das mais valias aqui presentes. Admito que fiquei rendido à arte de Verdier!
Mas não ficamos por aqui! Se uma arte a preto e branco, com um estilo de ilustração realista, poderia parecer demasiado clássica e old school a alguns leitores mais céticos, devo dizer que os autores foram inteligentes e audazes o suficiente para saberem dar o “passo seguinte” e dotar este livro de elementos mais diruptivos do que aquilo que muitos poderiam antever. Assim, ao longo da leitura da obra, vamos sendo presenteados com vários elementos a cores. Seja uma vinheta totalmente a cores, que nos remete para as leituras que Orwell fazia na infância; seja numa moldura que aparece colorida num cenário a preto e branco; num incêndio na escola que o autor frequentou; na bandeira do Reino Unido; num pássaro a esvoaçar; ou num bonito roseiral... de forma cirúrgica vão sendo colocadas cores na arte de Verdier que conseguem dar à experiência final de leitura uma beleza ímpar, assente num enorme charme e carisma que roçam a poesia. Este Orwell em termos de ilustrações consegue ser clássico e moderno ao mesmo tempo.
E, para além destas cores, também há espaço para a introdução de fotografias históricas ou as splash pages que procuram dar ao conjunto final uma sensação de diversidade e interpretação das obras do autor e de alguns momentos marcantes na sua vida. Que ideia fabulosa! Estas ilustrações avulsas são feitas pelos ilustres convidados que já referi acima e que funcionam como uma autêntica cereja em cima do bolo. Na verdade, e por muito que gostemos destes autores, não é o contributo deles que “salva” esta obra porque, sinceramente, este livro nem sequer precisava de ser “salvo”, tendo em conta a sua enorme qualidade. Não obstante, estes contributos acrescentam (ainda) mais relevância à obra, funcionando como a tal cereja em cima do bolo. O que cada um destes autores faz é uma ou várias ilustrações que ocupam duas páginas e que ilustram determinada obra ou momento da vida de Orwell. Uma ideia simples mas que funcionou muito bem.
Quanto à edição da Ala dos Livros, este é mais um livro soberbo! A capa é dura, revestida a tecido e o livro apresenta um fio marcador de página (que classe que este pequeno elemento atribui a qualquer livro, na minha opinião!) e papel de boa qualidade. O grafismo da edição também está em linha com todo o charme e classe que a obra também emana. Acredito que seja um forte candidato ao VINHETA D’OURO 2021 para melhor edição.
Em conclusão, devo dizer que aqueles que procuravam (mais) um livro sobre 1984 ou O Triunfo dos Porcos poderão ter aqui as suas expetativas defraudadas. E apenas por um motivo: é que esta biografia desenhada de George Orwell até é bem mais do que isso. Centra-se mais na figura que foi o autor e nos principais momentos da sua vida, homenageando e relembrando, ainda assim, as principais obras de Orwell. Não se precisa gostar do autor - ou de algum dos seus livros - para se poder apreciar esta fantástica obra que, em boa hora, a Ala dos Livros decidiu lançar.
Estou certo que, mesmo tendo em conta que 2021 está a ser um ano espetacular no que ao lançamento de boa banda desenhada em Portugal diz respeito, haverá espaço para abarcar este Orwell como um dos melhores livros deste ano em Portugal. Parabéns por mais uma excelente aposta, Ala dos Livros!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Orwell
Autores: Pierre Christin e Sébastien Verdier
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura em tecido
Lançamento: Maio de 2021
O "sub-título" gigantesco estraga o que seria quase um pleno, a nível do design de capas.
ResponderEliminarCaro O Estranho. Não diria que "estraga". Mas concordo que poderia ser melhor. Mas há que ter em conta que a Ala dos Livros se limitou em ser fiel à edição original que também tem o subtítulo desta forma.
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