O início de 2021 arranca com uma obra de peso para a editora Arte de Autor. Trata-se do segundo volume de O Castelo dos Animais. Quando, em Junho do ano passado, a editora lançou esta série em Portugal, fiquei muito surpreendido, pela positiva, com o primeiro volume, intitulado Miss Bengalore, a deixar uma forte marca em mim. Aconselho aliás, uma leitura à análise que fiz a esse volume, antes que prossigam com a leitura deste texto. O Castelo dos Animais 1 - Miss Bengalore foi, aliás, nomeado para 3 categorias dos VINHETAS D'OURO, nomeadamente Melhor Obra Estrangeira, Melhor Edição e Melhor Capa. Agora, depois de lido este segundo volume, que dá pelo nome de As Margaridas do Inverno (excelente nome, já agora), posso dizer que o meu entusiasmo perante esta série de banda desenhada se mantém em altas.
A história, relembro, interpreta, de forma bastante livre, a obra O Triunfo dos Porcos (Animal Farm), de George Orwell. Esse clássico da literatura mundial - e, sem dúvida, uma das minhas obras favoritas de literatura - recebe aqui uma roupagem diferente, embora o núcelo da história se mantenha semelhante. Os anos passarão e o tema da obra original de Orwell continuará atual, demonstrando, de forma quase didática, como se dividem as sociedades constituídas por homens e mulheres. Os fortes tentarão proteger as suas posições privilegiadas e os fracos tentarão ascender a algo melhor do que àquilo a que estão destinados desde a nascença. Em todas as sociedades de homens, de uma forma mais ou menos premente, foi assim no passado, continua a sê-lo nos dias de hoje e, estou certo, sê-lo-á no futuro. Mas, se a obra de literatura de Orwell é perfeita, julgo que a opção dos autores desta banda desenhada em não terem feito uma “mera” adaptação da obra original, foi muito bem conseguida.
Aqui o que temos é um castelo onde o touro Sílvio, sendo o animal fisicamente mais forte da propriedade, que é habitada por um grande número de animais de quinta, exerce o seu poder, oprimindo os mais vulneráveis e sendo ajudado por um pequeno exército de cães caçadores. À semelhança dos infames reis de França, Luís XVI e Maria Antonieta, que viviam à grande e à francesa (daí, a expressão!) enquanto o povo francês sucumbia à morte, também o Touro Sílvio deste Castelo dos Animais tem aposentos quentes e confortáveis, e come e bebe bem, enquanto os animais mais fracos trabalham arduamente e ainda têm que pagar a lenha que, depois da jornada de trabalho, eles próprios apanham. Isto vai gerando indignação perante os animais do castelo, com a gata Miss Bengalore, acompanhada pelo bem humorado César, o coelho gigolô, a liderar o movimento de contestação a estas injustiças sociais.
Esta é uma clara história clássica de luta de classes. Do proletariado a rebelar-se contra a elite que o subjuga. Uma narrativa tão elementar e tão clássica mas sempre tão presente. E depois, sendo a história interpretada por personagens marcantes e muito humanas na sua conceção, por quem é difícil não nutrir uma relação afetuosa, ficamos perante uma obra fantástica, em termos de história.
Mas não só. A arte ilustrativa certamente também não deixa os leitores indiferentes. Delep é dono de um traço bastante original, que consegue ser clássico na execução das personagens e, ao mesmo tempo, moderno e diferente. Há uma certa frescura na sua arte. Uma boa mistura que me faz adorar os desenhos desta série. Um destaque à forma como o autor ilustra o rigoroso inverno, que aqui assume um papel preponderante, também deve ser dado. Mas, claro, não me canso de dizer que numa narrativa deste tipo, “apenas” saber ilustrar bem as personagens e ambientes, não seria suficiente para termos uma banda desenhada deste gabarito. Porquê? Porque esta é uma história sobre as relações humanas, mesmo que, qual ironia!, seja representada por animais. A luta pelo que está certo, pelo que é justo, pelo que é legítimo é uma luta universal e, infelizmente, perpétua e tão humana. E ilustrando as expressões das personagens de uma forma tão humanizante, Delep, aproxima-nos das mesmas. Faz-nos torcer por elas. Abraçar a sua demanda. Isso já tinha sido feito no tomo anterior e volta a ser feito neste As Margaridas do Inverno. É, portanto, fantástica a forma como os desenhos de Delep passam emoções ao leitor.
Ao mesmo tempo, O Castelo dos Animais também é um manual sobre como deve ser encetada uma rebelião. Como devem ser alterados comportamentos e injustiças. Por vezes há que sofrer para conseguir abraçar causas e tocar existências vindouras. E tudo isto é tão real e, por vezes triste, que ao lermos esta história até podemos gostar dos animais que as interpretam, mas acabamos por relembrar igualmente personagens humanas e reais, que tanto fizeram para alterar injustiças. Miss Bengalore e, também o rato Azélar, são personagens universais nos intentos e na fonte de inspiração que em si encerram. E que ficam na nossa memória, muito depois de acabarmos de ler este livro.
Devo dizer também que esta obra tem uma edição magnífica por parte da Arte de Autor. É um daqueles livros lindos para segurar nas mãos. Com textura aveludada na capa e com verniz aplicado nas letras e na figura da contracapa, é um livro soberbo. E, como se não bastasse, o trabalho do ilustrador Delep também é soberbo, com um desenho de capa maravilhoso. Daqueles livros que sabe bem manusear e observar com atenção, ainda antes de o ler. Não me espantaria nada se, daqui a um ano, estivesse nomeado para melhor capa e/ou edição dos prémios de banda desenhada VINHETAS D'OURO. Magnífico!
Em conclusão, O Castelo dos Animais faz um regresso em grande. Se o primeiro volume foi magnífico, este As Margaridas do Inverno, que permite um maior desenvolvimento das personagens e respetivas adversidades que enfrentam, possibilita-nos um mergulho ainda mais intenso na história. A arte continua sensacional e a edição é maravilhosa. Eis o primeiro livro obrigatório de bd do ano 2021!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Castelo dos Animais 2 – As Margaridas do Inverno
Autores: Xavier Dorison e Félix Delep
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Janeiro de 2021
Li no fim-de-semana passado o primeiro volume, e já tenho este encomendado. Soube também que apesar de não terem saido os próximos (nem em Francês), a série está planeada para 4 volumes, o que dá um conforto desta ser uma boa história completamente pensada do inicio.
ResponderEliminarConcordo, Ricardo. Parece haver uma lógica e um planeamento em relação à série. E a editora Arte de Autor foi muito audaz e competente ao ter apostado nesta série. Aguardemos pelos próximos volumes.
EliminarMais que ter apostado, fez justiça ao trabalho original, algo que faz muita falta no mercado nacional. É graças a estes trabalhos que (espero eu) a banda desenhada vai ganhando o seu espaço nas estantes de leitores portugueses. Que a Arte de Autor mantenha este nivel!
EliminarNem mais, caro Ricardo!
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