Para mim, enquanto leitor de banda desenhada, existe a vida antes de Blacksad e existe a vida depois de Blacksad. Nesse sentido, falar neste primeiro Blacksad, que a Ala dos Livros reeditou recentemente, numa edição de luxo verdadeiramente estrondosa, obriga-me a falar, por ventura, mais de mim próprio do que da obra em si. E, por isso, peço desde já as minhas desculpas. Porque, de facto, o Vinheta 2020 é – e procura ser – sobre a banda desenhada que o leitor que há em mim lê e, não tanto, sobre a minha pessoa. Mas, neste caso, talvez isso seja difícil de fazer.
E tudo isto porque, no ano 2000, quando o primeiro volume de Blacksad, Algures entre as Sombras, foi originalmente lançado pela dupla criativa espanhola formada por Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, eu estava um pouco “de costas voltadas” para a banda desenhada no geral. Na altura, tinha 16 anos e, depois de uma infância muito assente na leitura da banda desenhada franco-belga e alguma coisa de comics americanos, eu estava bem mais ocupado com outras paixões que não a banda desenhada: a música, as bandas, a bateria, a guitarra, o piano, os filmes, o desporto, o ténis, o futebol, as paixões da juventude e tudo e mais alguma coisa… exceto a banda desenhada. Não foi um afastamento pensado ou porque, subitamente, eu tinha deixado de gostar de banda desenhada. Ao invés, foi algo que simplesmente foi acontecendo. O tempo, ou a ausência do mesmo, obriga-nos, por vezes, a escolhas e a minha escolha, nessa altura, não era a banda desenhada.
Mas porquê esta revolução em mim? Bem, porque me lembro de como Blacksad parecia diferente e melhor de tudo o que eu já tinha lido até então. Este maravilhoso mundo antropomórfico, em que cada personagem tem um corpo humano mas o rosto de um animal, convenceu-me desde o primeiro momento. A história, dura e adulta, embora igualmente simples e de fácil leitura, deixou-me agarrado à série e a salivar por mais livros. A personagem de John Blacksad, o detetive privado amargo, charmoso e inteligente, que embora não fosse – nem seja - a coisa mais original do mundo, pois todos nós já havíamos visto várias personagens com algumas semelhanças a esta em alguns clássicos do estilo noir, representou, ainda assim, e desde logo, um carisma muito próprio, que automaticamente tornou a personagem emblemática. Tudo parecia funcionar muito bem!
E ainda nem mencionei a qualidade majestosa das ilustrações de Guarnido, com um traço virtuoso, com tiques dos desenhos da Disney – ou não tivesse o autor trabalhado como animador nos Estúdios Disney – e com uma aplicação de cores em aguarela a roçar a perfeição, que me deixaram rendido – e passados mais de 20 anos ainda estou rendido, diga-se.
“Mas que maravilha vem a ser esta?!”, lembro-me de exclamar, por alturas do lançamento de Algures entre as Sombras.
Os desenhos são de deixar qualquer um de boca aberta. Pela sua expressividade, pela sua originalidade, pelas suas cores, pela sua cinematografia, pela sua inspiração. O estilo é bastante “Disney-like”, com os animais a serem desenhados de forma realista, mas com expressões “cartoonizadas” como poderíamos encontrar num filme de animação da Disney. Em jeito de desabafo, até vos digo: tanto que eu gostaria que os estúdios Disney pegassem nesta série e a animassem como só eles sabem fazer, em vez de nos darem tantos remakes, em imagem real, dos seus clássicos de animação, como tem sido a tendência dos últimos anos.
Bem, mas isso já sou eu a divagar. Voltando a este Algures entre as Sombras, e falando um pouco sobre a história, acho que este volume até nos traz a história mais linear e simples de toda a série. É quase como se funcionasse enquanto carta de apresentação para a personagem e para a série.
Tudo começa quando John Blacksad é chamado pelo Comissário Smirnov para reconhecer um cadáver. Trata-se de Natalia Wilford, uma célebre atriz com quem Blacksad tinha vivido uma tórrida paixão no passado e os momentos mais felizes da sua vida. De forma expetável, Smirnov pede a Blacksad para não meter o nariz onde não deve e afastar-se da resolução do caso. Mas, claro, o nosso protagonista não o irá fazer e vai até ao fim do mundo para fazer justiça em nome do seu antigo amor. Nada de muito original, nada de muito diferente, mas, é justo dizer, a história está muito bem ligada e vai sabendo dar ao leitor alguns momentos inesquecíveis: quer quando voltamos ao passado de John Blacksad através de flashbacks, quer na resolução e investigação deste caso. Tudo muito bem feito.
O texto de Canales é, também, muito, muito bom. Se muitas vezes parece que a adoração de Blacksad surge pelas ilustrações imaculadas de Guarnido, acho que também é justo considerar que não só o enredo, mas também o próprio texto, fazem maravilhas pela série. E não digo isto por serem enredos demasiado densos ou tão surpreendentes assim, mas porque são bem pensados. O texto em voz off, com que o protagonista John Blacksad nos vai relatando os eventos, é absolutamente marcante, bem concebido e muito “quotable”. Várias são as frases que continuam a ressoar na nossa mente, já depois de lido o livro. E fazer texto “quotable” não é para todos os autores, como tantas vezes relembro. Canales revela que é exímio nesse atributo.
Voltando, ainda – e como não? – às ilustrações de Guarnido, há que dizer que esta cidade baseada em Nova Iorque, onde se desenrola a trama, está brilhantemente retratada pelo autor. Cada rua, cada beco, cada prédio, estão detalhadamente bem caracterizados. Como estão, igualmente, os cenários de interiores em que a história se desenvolve. Há sempre muitos pormenores, brilhantemente retratados. E também no belo uso de pontos de vista, com perspetivas arriscadas e complexas, ou na planificação dinâmica, Guarnido dá cartas de mestre. Se Algures entre as Sombras não é perfeito, do ponto vista visual, não sei que outra obra o possa ser.
Em termos de edição, tenho que dizer uma coisa: tendo em conta que este primeiro volume de Blacksad, bem como os restantes - que haviam sido originalmente publicados em Portugal pela ASA e, depois, o quinto volume, Amarillo, pela Arcádia, do Grupo Babel - eram cada vez mais difíceis de encontrar à venda, eu acho que a Ala dos Livros já merecia um enorme louvor só por agarrar na série e reeditá-la. Mesmo que o fizesse numa qualidade de edição fraca.
Mas, claro está, não é essa a bitola de edição por parte da Ala dos Livros. Pelo contrário, a qualidade das suas edições parece desafiar-se a ela mesma. E, portanto, este Blacksad também se assume como uma das melhores edições do ano. Com capa dura baça (onde apenas os olhos de Blacksad têm verniz), papel de excelente qualidade, boa impressão e boa encadernação, o livro prima especialmente por duas coisas: a primeira é a lombada em tecido que irá formar um desenho com os restantes livros da coleção – o que representa, também, um compromisso da editora em reeditar a restante série. Acho que este pormenor dá charme à edição e torna-a num objeto de coleção ainda mais apetecível. Além disso, esta edição tem uma outra segunda coisa que é fenomenal: inclui o suplemento A História das Aguarelas, em que Guarnido nos fala, em discurso na primeira pessoa, de como estudou, testou e arriscou as cores, em aguarela, deste livro. Para quem não sabe, este A História das Aguarelas até chegou a ser publicado em livro próprio, em França, mas por cá mantinha-se inédito até esta parte. Ora, reunir este fantástico extra é uma cereja no topo do bolo. No total, são 24 páginas onde ficamos a conhecer com exatidão o processo de aplicação de cores por parte de Guarnido. Fantástico! Parabéns e obrigado, Ala dos Livros!
Concluindo, posso dizer que falar, portanto, de Blacksad obriga-me a revisitar a minha adolescência e a perceber como um livro pode mudar uma vida. Por esse motivo, antes de dizer se o livro é bom ou não (e é magnífico!); antes de dizer se a personagem de Blacksad é marcante ou não (e, depois de a conhecermos, não mais a esquecemos!); antes de dizer se o argumento de Díaz Canales é bom ou não (e é uma história muito bem trabalhada); antes de dizer se este universo antropomórfico funciona bem ou não (e é, para mim, o universo deste tipo que melhor funciona!) … tenho que dizer algo ainda mais marcante: por todas as razões que já apontei, este livro mudou a minha vida. Provavelmente nem existiria Vinheta 2020 se não fosse Blacksad! Figura entre as duas melhores séries de banda desenhada da minha vida. Obrigatório para todos!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Blacksad #1 - Algures Entre as Sombras
Autores: Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura com lombada a tecido
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Junho de 2022
Mais abaixo, deixo o convite para a leitura da análise aos álbum Blacksad #6:
É curioso mencionar a Disney na sua análise desta obra e dizer que gostaria que eles pegassem nesta série e a animassem, porque, se pensarmos bem, o filme Zootopia (2016) da Disney pega exatamente no mesmo conceito de antropomorfismo de animais usado em Blacksad para contar uma história. Coincidência? Fica a dúvida no ar...
ResponderEliminarEm relação a esta edição, parece ser excelente, sem dúvida, mas é pena verificar-se que em Portugal as editoras continuam a "espremer" ao máximo as séries de BD com a republicação de álbuns individuais muitos anos após o lançamento do álbum original e depois de já haver vários volumes da série publicados. Porque não publicar três, quatro ou cinco números num só volume? A editora Norma, em Espanha, numa publicação excelente, publicou num só volume os primeiros cinco números de Blacksad por menos de 50 euros, o dobro do preço deste único volume desta edição. Ou seja, por menos do dobro do preço deste livro, podemos ter não dois, mas cinco números num só volume, numa excelente edição. Queixam-me que em Portugal lê-se pouco, mas os preços dos livros não ajudam a que se leia mais. As publicações inglesas e espanholas são quase sempre (muito) mais baratas que as portuguesas. Felizmente falo inglês e espanhol e posso ler obras que, com os preços a que são publicadas em Portugal, provavelmente nunca leria, mas sei que muita gente não o pode fazer e tem de ficar à espera dos preços exorbitantes praticados em Portugal para ler uma obra que gostaria de ler.
Interessante comentário. Compreendo perfeitamente o que diz e até admito que gosto muito de integrais. Gosto de livros grossos e completos e que, acabam por ocupar menos espaço na estante. Não obstante, e neste caso concreto desta reedição de Blacksad, a verdade é que não se trata mais do mesmo. Esta edição inclui a "História das Aguarelas", o que é algo inédito em termos mundiais (creio) e faz com que fosse impossível ter um integral de vários volumes e ainda esta "História das Aguarelas". É uma opção editorial que não me parece nada mercantilista mas sim com o objetivo de dar aos fãs da série a melhor e mais completa experiência de leitura.
EliminarQuanto à questão do Zootrópolis, de 2016, pode, de facto estar relacionado ou influenciado por Blacksad. São histórias diferentes e para públicos diferentes mas não deixa de ser verdade que, pelo menos visualmente, há ali coisas em comum, sim.