sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Análise: RIO (Série Completa)

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público


RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público
RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge 

RIO é uma mini-série de banda desenhada, constituída por 4 volumes (1. Deus para Todos, 2. Os Olhos da Favela, 3. Carnaval Selvagem e 4. Salve-se Quem Puder), da autoria de Louise Garcia e Corentin Rouge, que foi lançada recentemente pela ASA, em parceria com o jornal Público. Este lançamento, que apanhou muita gente desprevenida foi, sem dúvida, o lançamento do ano, por parte da editora ASA. Mesmo tendo em conta obras relevantes, como os volumes 7 e 8 da série Airborne 44, Lucky Luke – Um Cowboy no Negócio do Algodão, ou uma Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó, a meu ver, a série RIO foi a melhor obra de banda desenhada que a ASA publicou em 2020. Bem, na verdade, apenas os primeiros dois tomos foram ainda publicados em 2020. O terceiro e quarto volumes saíram já no início de Janeiro de 2021. 

Com apenas 3 letras se escreve o título desta série mas a soma dos eventos, subnarrativas e momentos inesquecíveis contidos nestes 4 volumes, é enorme! 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público
Esta é uma saga que nos coloca nas favelas do Rio de Janeiro e que nos demonstra de uma forma bastante realista - embora com uma boa (e positiva) dose de romance - aquilo que é a vida nas pequenas ruelas que compõem a favela Beija-Flor, da “Cidade Maravilhosa”. Ao longo da história acompanhamos a história de Rúben que, juntamente com a sua irmã, Nina, se vêem forçados a viver nas ruas, depois de Rúben testemunhar o assassinato da sua mãe, pelas mãos do polícia corrupto, Jonas. É nessa altura que conhecem Bakar, outra criança de rua, que as introduz a um grupo de crianças a que pertence. A partir daqui, acompanhamos as dificuldades que um grupo de crianças enfrenta para sobreviver. Desde logo, é uma história pesada, comovente e que toca o leitor. Através das peripécias que nos vão sendo demonstradas, ficamos com a clara ideia que é praticamente impossível para estas crianças – as quais simbolizarão as milhares de crianças faveladas brasileiras da vida real – ultrapassarem uma existência que parece previamente condenada a uma vida de pobreza e criminalidade. A menos que algo muito excecional altere em 180 graus a vida destas crianças como, por exemplo, a adoção por parte de uma família rica. E é especificamente isso que acontece a Rúben e a Nina. São adotados por um casal rico americano que os retira das ruas. 

Depois deste bom gesto por parte do casal americano, a vida dos dois irmãos muda drasticamente. E, passados dez anos, Nina parece ter-se adaptado muito bem à sua nova situação de vida. Mas Rúben, por sua vez, parece não se conseguir enquadrar nesta nova vida. É que o trauma com que ficou quando presenciou a morte da sua mãe, a vida nas ruas e a luta pela sobrevivência, dificultada pela perseguição gratuita policial e pela situação de impotência perante a corrupção existente na cidade, deixam marcas pesadas em Rúben. Se, por um lado, deixou de ser uma criança de rua, perdendo contactos e amizades que tinha com os seus semelhantes, por outro lado, na vida luxuosa que o seu pai lhe permite ter, também não encontra redenção nem respostas aos seus traumas. 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público
Eventualmente, Nina acaba por ser raptada e isso leva a que Rúben, numa tentativa desesperada de encontrar a sua irmã, mergulhe nas profundezas da favela e encontre o líder da mesma, Mozar, bem como os seus antigos companheiros de rua, Bakar e Rato. E se Rato ainda mantém uma relação negativa com Rúben, Bakar parece manter a mesma amizade inicial que teve pelo protagonista desta história. A partir deste ponto, há acontecimentos que alteram o rumo da história de forma trágica e, para não estragar a história aos meus leitores, fico-me por aqui. A única coisa que posso, ainda assim, revelar, é que Rúben, ao longo dos quatro volumes, vai-se tornando cada vez mais importante na favela, passando a assumir o controlo da mesma. Para além da dicotomia, já mencionada, que habita a mente de Rúben, sempre preso aos traumas do passado (e do presente?), a história apresenta-nos ainda mais duas vertentes, que merecem ser lembradas: a primeira é a questão da má atuação da polícia brasileira na favela, em que assume mais um papel de “parte do problema” do que, propriamente, de “parte da solução”. E se isso seria o expetável, menos previsível seria a aura mística que envolve parte da história. Confesso que não foi uma parte que tivesse gostado tanto e acho que a mesma história poderia ter sido contada sem o recurso a este misticismo. No entanto, é uma questão de gosto pessoal. Também não é justo dizer que essa parte estraga a história. Não, longe disso! E também não é algo que esteja sempre presente. Diria que a maior parte da história até é muito terra-a-terra e verossímil e que apenas uma outra parte é mais fruto do metafísico. O que será, por ventura, uma homenagem ao culto do negro e do místico que (também) faz parte da cultura brasileira. Não gostei tanto, mas aceita-se sem problemas. Alguns leitores até poderão gostar muito dessa vertente. 

O que é importante referir sobre esta história é que está muito bem pensada e desenvolvida, deixando o leitor sempre ávido de virar a página seguinte e ver qual será o destino dos protagonistas da história. O ritmo de ação é rápido mas não é frenético, o que permite que haja tempo (e páginas) para um bom desenvolvimento das personagens e de algumas cenas marcantes. As personagens são carismáticas e a sua existência perdura na nossa mente, já bem depois de terminada a história. Se Rúben é uma personagem cheia de personalidade e marcante; e se Jonas, o polícia corrupto, também é uma personagem carismática (embora mais clichet); diria que duas das minhas personagens preferidas desta história foram Bakar e Rato onde a autora do argumento, Louise Garcia, soube construir duas “personagens universo” que simbolizam diferentes posturas para uma mesma caminhada de vida. É triste ver como Rato parece ter uma malícia em estado bruto, ainda mesmo quando é criança; mas também é bom ver como Bakar parece ter uma certa alegria de viver, mesmo em condições tão pesadas e negativas. Um representa uma causa perdida, outro representa uma luz ao fundo de túnel. 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público
E sim, esta história é pesada e negativa. São muitos os momentos de violência física e/ou mental a que o leitor é posto em contacto, ao longo da narrativa. Não achei que fosse violento de uma forma gratuita mas sim de uma forma que procura ilustrar a vida, tal como ela é, numa favela: brutal, violenta, pobre, crua, onde a vida do semelhante vale pouco. O retrato é pois magnífico e impactante. Quem viu Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, encontrará muitos pontos em comum com este RIO. Também Tropa de Elite de Jose Padilha, o videojogo Max Payne 3 ou mesmo a banda desenhada Morro da Favela, de André Diniz, que já aqui foi analisado, são obras que me vieram à memória enquanto lia esta série. Confesso que gosto da temática e das histórias impregnadas de violência que as favelas brasileiras costumam trazer consigo. 

Mas, se a história é dinâmica, fluída e marcante, também a ilustração que o jovem autor Corentin Rouge oferece a esta banda desenhada, contribui em grande medida para que seja uma série tão boa. As ilustrações presentes nesta obra, da escola claramente franco-belga, ilustram de forma sublime as favelas, Copacabana, o Pão de Açúcar e o carnaval brasileiro. Os locais são fantásticos e magnificamente bem representados, permitindo-nos uma viagem ao Rio de Janeiro, sem sairmos do sofá. Mas os talentos deste autor não se ficam por uma boa representação cénica dos locais. 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público
As personagens estão muito bem ilustradas e as suas expressões profundas e reais são uma forte ajuda para que o leitor rapidamente crie uma boa relação com as mesmas. Basta, aliás, olhar para a fantástica capa do primeiro livro para, através de uma mera ilustração, percebermos que Rúben é uma personagem dura e emocionalmente destruída; que Nina é ingénua e frágil; que Rato é mau e assustador; e que Bakar é louco mas fiel aos seus. E isso não é um feito para qualquer desenhador. O trabalho de Rouge agradou-me do princípio ao fim. A aplicação de cores também é muito bem conseguida mas é no traço incrível que considero difícil que o autor não impressione a maioria dos fãs de banda desenhada. A dinâmica e diversidade de planos de câmara e a criatividade para ilustrar de forma inteligente várias cenas ao longo dos quatro livros, também merece destaque. 

Fiquei mesmo fã da arte de Corentin Rouge! Se a história é boa... o desenho ainda é melhor! 

E julgo que a ASA acertou em cheio com esta série. Espero que a editora possa apostar em mais mini-séries de estilo franco-belga e com uma qualidade deste nível. Não sendo uma série muito grande em dimensão, lê-se muito bem. Rio foi publicada em parceria com o jornal Público numa periodicidade quinzenal. Coisa que é bastante rara em Portugal, onde este tipo de coleções lançadas com o Público, costumam ser publicadas semanalmente. A edição quinzenal em vez de semanal, não é uma preferência minha, pois desta forma o leitor tem que esperar mais tempo para poder terminar a história. Todavia, também é verdade que é uma aposta mais amigável para a carteira dos leitores, já que, desta forma, podem dividir o investimento num espaço de tempo maior. Seja como for, quinzenal ou semanalmente, o importante é que a ASA mantenha uma aposta nestes moldes. O preço de cada volume é bastante simpático. E tendo em conta a qualidade da série, é mesmo uma proposta irrecusável. 

Em conclusão, esta série merece um carimbo de RECOMENDADA devido ao bom equilíbrio que tem em todos os seus vetores: a história é marcante, as personagens são memoráveis, a arte ilustrativa é magnífica e a edição e a aposta da ASA merecem as minhas vénias. Uma das melhores surpresas da banda desenhada editada em Portugal, durante o ano 2020, que não deve falhar numa boa coleção de bd franco-belga. Recomendada, claro! 

NOTA FINAL (1/10): 
9.3 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público

Fichas técnicas 
RIO - Tomo 1: Deus para Todos 
Autores: Louise Garcia e Corentin Rouge 
Editora: ASA 
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Dezembro de 2020 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público

RIO - Tomo 2: Os Olhos da Favela 
Autores: Louise Garcia e Corentin Rouge 
Editora: ASA 
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Dezembro de 2020 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público

RIO - Tomo 3: Carnaval Selvagem 
Autores: Louise Garcia e Corentin Rouge 
Editora: ASA 
Páginas: 80, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Janeiro de 2021 

RIO (Série Completa), de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA e Jornal Público

RIO - Tomo 4: Salve-se Quem Puder 
Autores: Louise Garcia e Corentin Rouge 
Editora: ASA 
Páginas: 80, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Janeiro de 2021

Lançamento: A Herança das Cores




Já se encontra disponível para compra um dos títulos que me parecem mais interessantes no novo catálogo das Edições FA. Trata-se de A Herança das Cores, da autoria de David Revoy. No À Conversa Com... Edições FA já aqui dei a conhecer o plano editorial da editora para 2021.

Abaixo podem ficar com a nota de imprensa da editora e das imagens promocionais.

A Herança das Cores, de David Revoy

A Herança das Cores conta uma história através da perspectiva de uma criança que nos mostra como o mau ambiente em casa é impactante, transformando a vida num mundo monótono em tons de cinza, mas também como a esperança está sempre lá, nos pequenos aspectos quotidianos da vida, como o afecto de um animal de estimação ou o canto de um pássaro. 

Transformando tudo numa história maravilhosa!

Um livro em banda desenhada com uma narrativa visual, para retratar a maneira como as crianças são afetadas por um ambiente negativo em casa, as dificuldades sociais e como suporta as consequências. 

Uma obra bonita, triste e alegre ao mesmo tempo.

Disponível em edição física e digital em www.fabd.pt, e em várias lojas e plataformas online.


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Ficha técnica
A Herança das Cores
Autor: David Revoy
Editora: Edições FA
Páginas: 50, a tons de cinzento e cores
Encadernação: Capa mole
PVP: 15,20€





quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

É oficial! Armazém Central vai mesmo ser integralmente lançado em Portugal!

Capa da versão original da Casterman

Muito se falou sobre a opção da editora Arte de Autor em começar a editar a série Armazém Central, de Loisel e Tripp, a partir do volume 4, e não a partir do primeiro número da série.

Relembro que os volumes 1, 2 e 3 já tinham sido lançados em Portugal, há uns anos, pela editora ASA.
Na altura, como referi na análise a Armazém Central #4 e #5, disse que compreendi a necessidade da editora portuguesa em auscultar o mercado português. Dado que ainda é uma série com 9 volumes e pressupõe, certamente, uma aposta de alguma relevância para a editora.

Mas ontem, a editora desfez as dúvidas: Armazém Central vai ser integralmente editado em Portugal! E como se isso não fosse já uma notícia formidável para os amantes desta fantástica série de banda desenhada (com um lugar nas minhas 10 séries preferidas de banda desenhada, relembro), a Arte de Autor até apresentou uma cadência de lançamentos que me parece digna de louvor. Assim, o volume Armazém Central 1 – Marie deverá ser publicado já em Março, enquanto que os os volumes duplos 2-3 e 6-7 estão previstos para o 2º semestre de 2021. Ora, se tivermos em conta que a série é composta por 9 álbuns, penso que será legítimo apostar que, na primeira metade do próximo ano, será publicado o último volume duplo da série. A série integral (com 9 números, divididos em 4 álbuns duplos e 1 álbum a solo) ficará publicada pela editora em cerca de 2 anos! Impressionante, de facto!

Para que os leitores compreendam como se divide esta maravilhosa coleção de BD, faço aqui uma esquematização das obras a lançar e do timming para tal:

Armazém Central 1 - Marie - A publicar em Março de 2021
Armazém Central 2 e 3 - Serge e Os Homens - A publicar no segundo semestre de 2021
Armazém Central 6 e 7 - Ernest LatulippeCharleston - A publicar no segundo semestre de 2021
Armazém Central 8 e 9 - As MulheresNotre-Dame-des-lacs - A publicar (suponho, sem confirmação da editora, no primeiro semestre de 2022)



Mas houve mais informações pertinentes a serem partilhadas ontem. Tal como já aqui tinha anunciado, no À Conversa Com: Arte de Autor, o primeiro semestre irá trazer-nos as obras O Castelo dos Animais 2 – As Margaridas do Inverno (já disponível), Duke 5Spaghetti Bros 2 e Apesar de Tudo.

Também ficou esclarecido que a série Léna, de Pierre Cristin e André Juillard, será publicada numa edição integral que reúne os 3 títulos publicados.

Para além do já mencionado lançamento dos dois álbuns duplos Armazém Central 2-3 e 6-7, também as séries Corto Maltese e Verões Felizes deverão ser lançadas no segundo semestre de 2021. 

Se a editora não lançasse nem mais uma obra do que estas que se propõe lançar, eu já diria, olhando para todos estes títulos, que era o ano mais forte da editora desde a sua criação. Mas claro, poderão aparecer novidades, especialmente no segundo semestre de 2021. É uma questão de ficarmos atentos.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Hoje é lançado um primeiro vídeo sobre os VINHETAS D'OURO...


Hoje foi lançado o primeiro vídeo sobre os VINHETAS D'OURO, sim!

Já viste?  


Caso o vídeo não abra, em cima, clica aqui.

Mas não diz muita coisa... ou dará algumas pistas? "Gala"? Mas não estávamos todos confinados?

O que estará para vir?

Fiquem atentos às próximas novidades...

Até lá, podem rever os nomeados para as diferentes categorias, aqui.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Análise: Oliver Twist

Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira - Levoir

Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira - Levoir
Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira 

Oliver Twist é o 4º álbum da Coleção Clássicos da Literatura em BD que a editora Levoir lançou recentemente em parceria com a RTP. 

Esta é uma coleção de banda desenhada que foi pensada e direcionada, não para o habitual leitor de banda desenhada, mas antes para um público mais jovem e com menos hábitos de consumo de bd. E isso é, tal como já referi na análise à obra A Volta do Mundo em 80 Dias, que abriu esta coleção, algo que merece todas as minhas vénias. Penso que todas e quaisquer formas de levar a banda desenhada a mais gente são sempre bem-vindas. 

E por esse motivo, de ser uma banda desenhada algo "simples", os cinco livros que já saíram até agora apresentam uma qualidade mediana. Quer no texto, quer na adaptação das obras originais, quer na arte ilustrativa não temos aqui uma grande produção. Parece que todos os elementos se alinham para (apenas) nos contar a história original de forma eficiente. 

Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira - Levoir
E, este Oliver Twist, adaptado para banda desenhada por Phillipe Chanoinat e David Cerqueira, é um claro exemplo disso. Se me perguntarem se este livro cumpre os seus pressupostos básicos de contar convenientemente a obra original de Charles Dickens em banda desenhada, a minha resposta será: “Sim, cumpre”. Mas devo dizê-lo que o faz de uma forma bastante medíocre. 

A história já é muito bem conhecida, julgo, mas faço aqui uma brevíssima sinopse. Oliver Twist não tem pai nem mãe e, por isso, foi criado num orfanato. Quando, na altura da refeição, tem a ousadia de pedir mais ração do que aquela que lhe é dada, causa choque em todo o orfanato e isso faz com que a sua aventura arranque. Primeiro, fica a cargo de um dono de uma agência funerária. Mas aí é vítima de maus tratos e, eventualmente, acaba por fugir e rumar a Londres, onde conhece o velho Fagin e o seu bando de rapazes que vivem dos assaltos que fazem na cidade. Mas é quando acidentalmente conhece o Sr. Brownlow, que a sua vida começa a melhorar - ainda que tenha os seus sobressaltos. Uma história triste e simples onde parece haver uma redenção para aqueles que, mesmo perante situações adversas, conseguerm não ceder a uma vida criminosa. 

O trabalho de Phillipe Chanoinat, que adaptou a obra original para banda desenhada, é razoável. Dividiu satisfatoriamente a história e soube contar o mais importante. No entanto, é verdade que alguns textos utilizados são “mais do mesmo” e tornam redundante a leitura. Fico com a ideia que foi feito um resumo da história e depois, quando se estava a planificá-la, surgiu a questão: “Então e o que é que colocamos nesta vinheta?”. E que foi nessa altura que Chanoinat decidiu enrolar um pouco o que havia sido dito na vinheta anterior. Não é algo que esteja constante em toda a obra, mas é algo que acontece várias vezes. E isto também acaba por fazer com que, por vezes, haja texto a mais. Seria possível contar a mesma história com menos palavras. Ainda assim, tenho que dar mérito à forma como o discurso é proferido. Fico com a ideia que ou são utilizadas passagens da obra original ou, então, Chanoinat soube utilizar aquele tipo de discurso clássico, que hoje em dia parece bastante desfasado do tempo, mas que destila humor e mensagens subliminares nas entrelinhas, típico de Dickens. 

Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira - Levoir
Com efeito, é na arte ilustrativa que este livro mais desilude. David Cerqueira - que tem origens portuguesas - até parece demonstrar, por vezes, talento enquanto ilustrador. De vez em quando, de forma muito espaçada, infelizmente, até há um desenho, uma expressão, uma utilização de perspetiva mais arrojada neste Oliver Twist que me levam a crer que o autor tem talento. Contudo, ao longo de quase toda a obra, o desenho é muito pobre. Os cenários são muito simplórios e despidos, as expressões faciais parecem demasiado esbatidas, a fisionimia das personagens é atabalhoada e os detalhes parecem ter sido feitos à pressa. Numa vinheta em que Oliver Twist aparece descalço, o autor apenas desenhou o dedo grande e os restantes dedos são meros rabiscos. E exemplos como este, acontecem ao longo de toda a obra. O que causa um resultado insuficiente. Ou o traço do autor era mais abstracto ou, não o sendo, este tipo de pormenores deveria ter recebido melhor tratamento. E depois, as cores aplicadas por Siel e o próprio trabalho de arte final, também deixam muito a desejar. As cores têm pouquíssima profundidade e a aplicação de sombras também não faz convientemente o seu trabalho. Até o espaço entre vinhetas a preto, em detrimento da cor branca, sugere uma tentativa (vã) de dar alguma sofisticação à obra. Parece uma banda desenhada que foi feita com um deadline apertado ou, então, uma obra que é fruto de desinspiração dos autores. 

Quanto à edição da Levoir, mantém a qualidade dos restantes livros da coleção: capa dura, papel de boa qualidade e um dossier de extras que permite ao leitor aprofundar os seus conhecimentos sobre a obra original e sobre o seu autor. Tudo bem feito e nada a objetar. 

Concluindo, posso dizer que embora o anterior número desta coleção, Odisseia, também não me tenha deixado muito satisfeito, este Oliver Twist é, até à data, o título mais fraco desta coleção. E, no final, fico com a ideia que ou olhamos para este livro como um trabalho amador e, nesse caso, sentimos afinidade com algumas coisas que aqui são bem feitas; ou olhamos para este trabalho reconhecendo-o como um trabalho de profissionais e aí, a opinião não pode, creio eu, ser muito positiva. Podem dizer-me: “Ah, mas, como bem sabes, isto não se destina a um público batido em BD. Isto é para miúdos”. Claro que sim. Mas caramba, mesmo assim, deixa muito a desejar. 


NOTA FINAL
6.2 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Oliver Twist, de Phillipe Chanoinat e David Cerqueira - Levoir

Ficha técnica
 
Oliver Twist
Autores: Philippe Chanoinat e David Cerqueira 
Adaptado a partir da obra original de: Charles Dickens 
Editora: Levoir 
Páginas: 64, a cores 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Novembro de 2020

O Vinheta 2020 faz um ano!!!

 
Spirou, por Osvaldo Medina

E já recebi uma bela surpresa! Esta fantástica ilustração foi feita pelo talentoso autor português - do qual eu sou confesso fã - Osvaldo Medina (autor de Kong the King, A Fórmula da FelicidadeFranco: Caos e Ordem, Mucha, Hawk, entre muitos outros).

Partiu de mim o desafio ao autor. E ele, pronta e generosamente, concordou, presenteando-me com esta bonita ilustração de Spirou. Muito obrigado, caro Osvaldo!

De agora em diante, e para que a imagem do Vinheta 2020 vá tendo alguma dinâmica com o passar do tempo, desafiarei ilustradores portugueses a contribuirem para este espaço com uma ilustração sua de um herói de BD. Desta forma, o banner do blog vai sendo alterado de ano a ano... ou de seis em seis meses. Logo decidirei.

E, quem sabe, no espaço de alguns anos terei uma bela galeria de imagens. Porque a verdade é que há muitos ilustradores talentosos em Portugal.

"Joker", por Telmo Estrelado
Já agora, permitam-me informar que a ilustração do Joker que, durante um ano, foi a imagem do banner do Vinheta 2020 foi desenhada pelo meu bom amigo Telmo Estrelado.

Falando agora deste primeiro ano do Vinheta 2020, e olhando para trás, permitam-me ainda agradecer pelas milhares de visitas que os meus leitores me proporcionaram. 

Agradeço também aos editores que acreditaram neste projeto e me foram fornecendo livros, fazendo com que as análises aqui publicadas fossem muito atuais e abrangentes. 

Agradeço também aos outros bloggers que escrevem sobre BD em Portugal. A postura deles sempre foi positiva e inclusiva para comigo. 

Um abraço a todos e que este seja o primeiro de muitos anos. 

Vida longa à banda desenhada em Portugal!



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Lançamento: RIO #4 - Salve-se Quem Puder

RIO #4 - Salve-se Quem Puder, de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA


RIO #4 - Salve-se Quem Puder, de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA
E chega ao fim a mini-série RIO, que a ASA lançou em parceria com o jornal Público.

Hoje já está nas bancas o 4º e último volume, denominado Salve-se Quem Puder.

Brevemente será feita uma análise à série integral no Vinheta 2020.

Para já, fiquem com a sinopse e imagens do 4º volume.


RIO #4 - Salve-se Quem Puder, de Louise Garcia e Corentin Rouge

Um jornalista fortemente escoltado sobe a escadaria da favela Beija-Flor para entrevistar o chefe local, que não é senão… Rúben! 

RIO #4 - Salve-se Quem Puder, de Louise Garcia e Corentin Rouge - ASA
Com efeito, o jovem tornou-se popular ao criar mercados de alimentação e de medicamentos a preço reduzido para os desfavorecidos. 

Desde então é o líder de uma comunidade quase independente, para a qual mandou construir uma clínica gratuita e várias escolas, e estabeleceu um imposto baseado na redistribuição em massa dos lucros. Um verdadeiro êxito, que todavia não é tolerado à margem do sistema… 

O governo sente que vai progressivamente perdendo o controlo e prepara então uma verdadeira guerra de pacificação com o objectivo de se reapropriar das favelas. 

Beija-Flor servirá de exemplo.

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Ficha técnica
RIO #4 - Salve-se Quem Puder
Autores: Louise Garcia e Corentin Rouge
Editora: ASA
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
PVP: 10,90 €

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Análise: O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias


O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, de Paulo Monteiro 

Uma vez li uma entrevista em que um escritor português – julgo, sem certeza, que era José Luís Peixoto – dizia que quando via algum desconhecido, na rua, a ler um livro seu, se sentia nu. Exposto. E é compreensível tal afimação. Pelo menos, se for um autor que coloca o seu coração, a sua sensibilidade, as suas vivências, os seus medos e a sua vida naquilo que escreve. Depois de ler O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, a sensação com que fiquei foi exatamente essa. De ter visto, com absoluta transparência, a pessoa de Paulo Monteiro, o autor desta obra. 

Esta é uma obra de sobeja importância na banda desenhada portuguesa, tendo ganhado vários prémios e sido aclamada no estrangeiro. É o livro português de banda desenhada mais traduzido de sempre. E quando, há uns meses, fiz o meu TOP das 15 melhores BD portuguesas de sempre, várias foram as vozes que me aconselharam a ler esta obra de Paulo Monteiro. E finalmente, passadas umas semanas, tive a oportunidade de o fazer. O meu obrigado ao editor Rui Brito, da Polvo, pois sei que se trata de um livro já muito difícil de encontrar no mercado. 

Feita a leitura, posso dizer que mais do que me sentir maravilhado pela mesma... me sinto tocado. Sensibilizado. É esse o grande trunfo do autor. E, na verdade, nem sequer me parece que Paulo Monteiro o utilize conscientemente como um “trunfo”. Ele utiliza-o assim, pois transpira sensibilidade no que escreve e, ainda mais importante, na forma como escreve. As emoções aqui tratadas não são fabricadas artificialmente, tentando despoletar sensações fáceis. Ao invés, são colhidas dessa coisa a que chamamos experiência de vida, vivências passadas, memórias que perduram, dor que não cessa, beijos por dar, palavras por dizer. Ou as vezes em que o adeus não foi feito no doce e amargo embalo da vida. Paulo Monteiro oferece-nos tudo isso - e muito mais - nas 10 histórias que compõem este álbum de pequenos contos. 

E foi quando cheguei à nona história desta obra que Paulo Monteiro conseguiu o prodígio de causar-me algo que já não acontecia há longos anos. E muito menos em banda desenhada. Fazer-me chorar. Sim, leram bem. Não foi um choro de "baba e ranho" mas fiquei com as lágrimas nos olhos. Todos nós temos o nosso percurso, a nossa história. E todos esses percursos e essas histórias são diferentes entre si. Não obstante, esses mesmos percursos têm paragens e sobressaltos comuns. Bem como essas histórias têm personagens e acontecimentos semelhantes em algum momento. Quando li Porque É Este O Meu Ofício, a tal nona história do livro, e que é uma homenagem ao pai de Paulo Monteiro, não pude deixar de me rever na relação que tive com o meu pai que, lamentavalmente, partiu muito antes do seu tempo. Mas não foi só o meu pai que eu vi nesta história. Também me vim a mim mesmo enquanto pai. Será possivel? É algo intenso e que não acontece todos os dias na banda desenhada, certo? 


É isso que Paulo Monteiro consegue. Transportar-nos ao sabor das suas doces palavras que, sendo suaves, são acutilantes e vão ao âmago da nossa sensibilidade. Uma das histórias homenageia o seu avô; outras são dirigidas à sua amada; outra é um tributo aos soldados e à guerra; e as restantes são pensamentos sobre a forma como o autor se percepciona a si e ao mundo. Admito que algumas histórias são mais latas do que as outras, parecendo meras divagações, como um comentário que nos sai da boca e fica a bailar numa fração de minutos. Outras são mais diretas e acabam por ser as que, na minha opinião, funcionam melhor. Para além da fantástica Porque é Este o Meu Ofício, destaco Para Lá dos Montes, A Canção do Soldado, A Tua Guerra Acabou e O Enforcado

Como ponto menos positivo, diria que o livro é bastante pequeno em dimensão. A grande maioria das 10 histórias tem entre 3 e 4 páginas. Há até uma história com duas páginas apenas. Isso leva a que, por vezes, não seja permitido – ou facilitado - ao leitor a total imersão na narrativa. Algumas vezes li uma história e voltei ao início para a ler mais uma vez, de forma a ter outra oportunidade de, verdadeiramente, “entrar nela”. E, se calhar, também foi por isso, que a história Porque É Este O Meu Ofício, que é a maior do livro, contabilizando 8 páginas, tenha sido aquela que mais me marcou. Se é tão bom navegar ao sabor das palavras de Paulo Monteiro, muitas vezes parece que ainda mal saímos do porto e o barco já tem de voltar, terminando abruptamente a nossa navegação. “Vale mais pouco e bom, do que muito e mau”. Sem dúvida que sim. Esta minha “queixa”, se é que assim se pode chamar, não é tanto em relação ao que Paulo Monteiro nos dá em O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias, mas antes naquilo que ele não nos dá. E que talvez pudesse dar. 

Este é, no fundo, um livro de poemas ilustrados. Mais isso do que histórias. E, nesse ponto, é sincero, audaz e sublime. Não é Eça de Queiroz que por aqui vagueia. É Fernando Pessoa. E poder absorver uma delicadeza no tom e nas palavras assim, é um privilégio. 

Quanto à arte, o estilo de Paulo Monteiro não será do agrado de toda a gente, estou certo. Com um estilo que aparecenta derivar do cartoon, o autor parece depois depositar nas suas ilustrações vários elementos evocativos, que rápida e ferozmente transformam os seus desenhos - que até são simples na conceção - em algo mais intenso, mais onírico, mais pesado, mais triste, mais artístico e com algumas ilustrações a fazerem lembrar o expressionismo. A história de O Enforcado será, por ventura, o melhor exemplo deste expressionismo onírico. Outra coisa que pode não ser do agrado de alguns leitores é que o estilo de ilustração muda bastante, de história para história, o que leva a que não haja uma grande unidade ilustrativa entre os contos aqui presentes. Ainda assim, não me chocou pois não considero que, pelo menos o ambiente gráfico, seja tão heterogéneo assim. No final, parece-me que há uma certa harmonia entre histórias mesmo admitindo que, entre umas e outras, o estilo gráfico vá mudando. 

Também não é um estilo clássico de banda desenhada. Aliás, eu diria que a escola do autor parece ser mais a da ilustração do que a da banda desenhada. Com efeito, muitas vezes este livro pareceu-me mais um livro de histórias ilustradas do que um livro de banda desenhada. E dizer isto não é referi-lo nem como positivo, nem como negativo. É o que é. Não existe aquela sequência direta entre imagens e vinhetas. O que está a unir as ilustrações é o texto. Texto esse que é delicado no uso das palavras e sensível no ritmo que imprime. É no texto que as imagens se sustentam. E não o contrário. 

Em termos de edição, aquela que me chegou às mãos já é a terceira edição da obra. Tendo em conta que a obra é bastante difícil de arranjar em loja, diria que seria interessante a reedição da mesma num futuro próximo. Se possível em capa dura. E com mais extras ainda. Ou mais algumas histórias. Esta terceira edição é complementada com excertos do diário de trabalho do autor. Achei um extra muito pertinente e interessante, uma vez que mostra aos leitores a demanda difícil e complexa que é elaborar um livro de banda desenhada. Há ainda um pequeníssimo álbum de fotografias onde ficamos a conhecer a família do autor. 

Em conclusão, O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias é um livro sublime. E sim, não sei em que lugar colocaria esta obra, se fosse hoje o dia em que faria o tal TOP 15 das Melhores Bandas Desenhadas Portuguesas de sempre, mas estou certo que teria um lugar nesse grupo restrito. 

Paulo Monteiro faz-nos sorrir enquanto o coração chora. Esta é uma obra singular que pode ser apreciada em qualquer momento e em qualquer lugar. Numa fatigante tarde chuvosa em confinamento ou numa duna aquecida pelos raios solares do verão. Um livro para guardar e voltar a ler amiúde. Todos nós precisamos, de tempos a tempos, algo que nos aqueça a alma. E O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias é essa braseira de almas desencontradas. É dispensável dizer que é indispensável para um fã de bd. 


NOTA FINAL (1/10): 
9.1 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
 
O Amor Infinito Que Te Tenho e Outras Histórias 
Autor: Paulo Monteiro 
Editora: Polvo 
Páginas: 64, a preto e branco 
Encadernação: Capa mole 
Lançamento: Novembro de 2010 (3ª Edição: Maio de 2014)

Lançamento: Holy #2 - Um Anjo Caído


A série Holy, da dupla de criadores portugueses Rafael Marques e Katiurna, está de volta! 

Trata-se do segundo álbum, que se chama Um Anjo Caído. 

Desta vez, o novo número é em português, o que me parece que pode ser uma boa iniciativa para que a série chegue a mais leitores portugueses de BD. Assim espero.

O primeiro número, que deixou referências interessantes, já aqui foi analisado.

Abaixo fiquem com as imagens promocionais, com a sinopse e com as formas de comprar esta bd portuguesa.


Holy #2 - Um Anjo Caído, de Rafael Marques e Katiurna

Após ter baleado o seu próprio cliente, Cartwright terá de encarar as consequências da sua ação. 

Neste número, conhecerá pela primeira vez um dos seus implacáveis chefes e de certeza que a coisa não vai acabar bem para si...

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Ficha técnica
Holy #2 - Um Anjo Caído
Autores: Rafael Marques e Katiurna
Editora: RKComics
Idioma: Português
Páginas: 22, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
PVP: 5€ + portes de envio
Para adquirir basta contactar através do mail: rk22comics@gmail.com






terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Análise: A Morte Viva

A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros

A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros
A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda 

A Morte Viva absorveu-me totalmente para o seu universo muito próprio e muito especial, que é maravilhosa e intricadamente ilustrado pelo autor português Alberto Varanda. Um trabalho cujo fulgor estético-gráfico é de verdadeiro mestre e que recomendo vivamente. 

Claro que não é só Alberto Varanda o responsável por A Morte Viva. Na verdade, o argumento até é elaborado por Olivier Vatine, que nesta obra faz uma adaptação do romance original La Mort Vivant, da autoria de Stefan Wul. Também foi Vatine que projetou a própria arte ao nível do planeamento de pranchas e do storyboard e até foi ele que coloriu a obra, com o auxílio de Isabelle Rabarot. E o que Varanda fez, na maioria das vezes, foi desenhar por cima do storyboard original. Mas, sendo justo, há que admitir que a verdadeira estrela da companhia nesta obra é Alberto Varanda. 

Mas já lá irei. 

A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros

A Morte Viva
é uma banda desenhada que junta dois universos algo diferentes. Por um lado, temos uma componente totalmente futurista, que parece retirada de um filme de ficção científica, onde a ação decorre no planeta Marte, que é povoado pela raça humana, e onde a vertente cénica da obra nos permite um breve vislumbre a edifícios futuristas e naves espaciais. Por outro lado, temos um lado de horror gótico, que se desenrola no planeta Terra e onde somos convidados a entrar num cenário clássico do passado, remetendo para um ambiente soturno e sombrio, com um aura ideal para um filme de terror. 

Esta mistura, sendo rara, acaba por funcionar bem embora, na minha opinião, a grande força visual - e mesmo narrativa - que marca verdadeiramente este A Morte Viva, diga respeito à parte da história que se desenrola na Terra. Diria que os primeiros momentos do livro, que sucedem em Marte, não são mais do que um mero pretexto para que o mundo, tal como ele aqui é, nos seja apresentado e para que os autores tenham algo diferente para explorar em termos de localizações físicas. Sinceramente, acho que a história passaria muito bem sem os momentos em Marte. E não digo isso por serem mal conseguidos. Digo isso porque o grande appeal da história está na parte que se desenrola no castelo de Martha, clara e abertamente inspirado no castelo bávaro, Neuschwanstein. É arrepiante e entusiasmante deixarmo-nos perder nesse imponente e sombrio castelo. 

A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros
Quanto à história em si, acompanhamos Joachim, que é um jovem e brilhante cientista que, no passado, fez pesquisas científicas que eram proibidas. Isso fez com que despertasse o interesse de Martha que o mandou raptar em Marte e trazê-lo para o seu castelo, na Terra. O objetivo de Martha é simples: quer que o cientista ressuscite a sua filha que falece nas primeiras páginas do álbum. E para fazê-lo, Joachim terá que clonar a filha de Martha. Primeiro contrariado, mas depois entusiasmado, Joachim começa então a sua pesquisa. Mas, como seria de prever, as coisas não correm da melhor forma e, como sempre, essa dificuldade em lidar com a morte, que tem assolado a humanidade desde que a mesma existe, acaba por levar os homens a tentativas desesperadas que, invariavelmente, acabam por sair fora do controlo dos mesmos. Como se houvesse um castigo de uma entidade superior devido à insasatez da raça humana, que quer subverter as causas naturais da vida e da morte. E é o que se passa aqui. O próprio nome pressupõe algo de errado. “A Morte Viva” assume um pressuposto de impossibilidade. Se a morte está viva... quer dizer que demos vida a algo que estava morto ou quer dizer que isso nos levou a um cenário de mais morte por temos, nós mesmos, ativado a morte? 

Não querendo alongar-me muito mais sobre a história, sob pena de a poder estragar aos que me lêem, diria que em A Morte Viva há pois uma reflexão sobre a ética na ciência, que nos faz pensar, e que é muito bem-vinda. Há depois uma vertente de filme de terror, muito bem explanada, assim que Joachim chega à terra. Parece um filme clássico de horror: temos a personagem Martha que, no seu estilo vitoriano, se mostra sensual e misteriosa; temos um ajudante denominado Ugo, que é um andróide mutilado que também assume funções de mordomo, e que terá como funções ajudar o protagonista na sua demanda; temos aranhas gigantes que se escondem e passeiam pelo castelo; e temos Lisa que, estando morta, é mantida numa câmara de água para que possa servir de base de estudo à sua própria clonagem. Já para não falar em criaturas monstruosas que terão um papel preponderante na história. E, como se já não tivéssemos camadas narrativas suficientes, ainda temos um relacionamento carnal que Joachim passa a ter com a sua patroa, a misteriosa Martha. Tudo junto, faz com que tenhamos uma história interessante, com um ritmo não muito rápido mas que acaba por ser equilibrado. 

E se há algo de que me possa queixar enquanto leitor é que o fim me pareceu algo forçado e artificialmente megalómano. Se bem que tenho que admitir que não conhecia a história original. E portanto, havendo fidelidade ao original, talvez este final, que a mim deixou algo a desejar, não deva ser reclamado perante os autores desta banda desenhada, mas sim, perante o autor da obra original. 

Seja como for, acho que a história em si, vale bem pelo clima pesado e misterioso que imprime e pela tal questão da ética na ciência que levanta, e que já mencionei acima. A semelhança com Frankenstein de Mary Shelley, não só na pretensão do herói como, possivelmente, na conclusão da mesma, é óbvia. Todavia, A Morte Viva tem as suas próprias ideias e originalidade. 

E depois temos aquele que é o grande feito desta obra, tal como já referido no início desta minha análise. A fantástica, exuberante, minuciosa e maravilhosa arte visual com que Alberto Varanda nos brinda. Com uma técnica que, em muitas alturas, me remeteu para o igualmente impressionante trabalho de François Schuiten, cada vinheta – seja ela pequena ou grande – está pontuada por um grau de minúcia e por uma execução espantosa. 

É um livro cuja arte enche o olho a qualquer um. O talento de Varanda é ridículo, de tão incrível e bom que é. Um daqueles livros que me leva a dizer: “mesmo que a história não valesse nada... com uma arte destas, já merecia a compra do livro”. Mas a verdade é que a história, não sendo perfeita, também vale muito a pena. 

A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros
A qualidade da ilustração da obra é tremenda. Quer ilustrando uma história sombria, com um ambiente cénico clássico de um filme de terror clássico, quer ilustrando momentos de erotismo ou de variadas expressões faciais; quer na utilização dos planos, das cores, das sombras, da luz... o trabalho de Varanda continou a surpreender-me à medida que ia avançando no livro. No final, considero o seu trabalho perfeito e fiquei rendido. Como não? 

A edição da Ala dos Livros é de excelente qualidade nos materiais, com a sua capa dura e um papel brilhante de boa gramagem. E vale também pelo muito bem conseguido caderno gráfico no final da obra. Neste dossier, é-nos revelado por Alberto Varanda, em formato de entrevista, o processo de criação da obra e as técnicas utilizadas, enquanto também são partilhados diversos estudos de personagem e ilustrações impactantes. A editora optou por publicar esta obra na sua versão a cores. Pelo que já pude ver, ler e pesquisar, a versão a preto e branco da obra consegue superar a versão a cores, em termos de espetacularidade. É provável. Mas devo dizer que gostei bastante desta versão e que o trabalho de cores me deixou francamente satisfeito. 

No final, julgo ser justo dizer que a fantástica arte de Varanda faz desta narrativa gótica de ficção científica, uma obra altamente recomendável a fãs de banda desenhada. Mesmo aqueles que não gostam de histórias de ficção científica ou de horror. É uma enorme falha deixar passar este álbum. Recomendado, certamente! 


NOTA FINAL (1/10): 
9.2 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Morte Viva, de Olivier Vatine e Alberto Varanda - Ala dos Livros

Ficha técnica 
A Morte Viva
Autores: Olivier Vatine e Alberto Varanda 
Editora: Ala dos Livros 
Páginas: 96, a cores 
Encadernação: capa dura 
Lançamento: Abril de 2019

Lançamento: O Castelo dos Animais 2 - As Margaridas do Inverno

 


Ainda vamos no início do ano, com tempos incertos no horizonte para as editoras de banda desenhada em Portugal, mas a Arte de Autor, acaba de nos dar a primeira boa surpresa de lançamentos de bd. Pode ser comprado no site da editora e, a partir de 25 de Janeiro, deverá chegar a algumas livrarias do país.

Trata-se do segundo volume de O Castelo dos Animais, intitulado As Margaridas do Inverno. Relembro que o primeiro título da série já aqui foi analisado e que esse livro até é o álbum estrangeiro mais nomeado para os VINHETAS D'OURO, contando com nomeações para Melhor Álbum Estrangeiro, Melhor Edição e Melhor Capa.

Esta é uma história inspirada livremente no clássico da literatura de George Orwell, O Triunfo dos Porcos (Animal Farm) e que recomendo vivamente.

Abaixo, fiquem com a nota da editora e respetivas imagens promocionais.


O Castelo dos Animais 2 - As Margaridas do Inverno, de Dorison e Delep

O inverno conquistou o castelo. 

O clima é severo para os seus habitantes... 

Mas Miss B. e os seus amigos, o coelho César e o rato Azélar, não disseram a última palavra.

Baptizado de "as Margaridas", o seu movimento continua. 

Para Miss B, derrotar a ditadura só pode ser feito evitando a mais terrível das armadilhas: a tentação da violência. 

Ela será capaz de convencer os seus amigos a resistirem pacificamente? 

O desafio parece muito difícil...

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Ficha técnica
O Castelo dos Animais 2 - As Margaridas do Inverno
Autores: Xavier Dorison e Félix Delep
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
PVP: 20,50€