A Ala dos Livros publicou recentemente aquele que é um dos melhores livros de banda desenhada alguma vez feitos. Uma ode ao género e a prova (com)provada que aqueles que ainda consideram a banda desenhada como uma “coisa de miúdos”, pura e simplesmente, não sabem do que falam. A esses, bastaria colocar-lhes este livro em cima do colo e pedir-lhes para o lê-lo. Estou certo que só por teimosia, manteriam a sua opinião de que a banda desenhada é uma arte menor. Não o é e este O Relatório de Brodeck, da autoria de Manu Larcenet, é apenas mais uma prova do quão profunda, inspirada, maravilhosa e impactante pode ser uma obra de banda desenhada. Tal como uma música, tal como um filme, tal como uma pintura, tal como um romance literário.
Por falar nisso, e em boa verdade, este livro até se trata de uma adaptação do romance literário de Philippe Claudel. Sendo sincero, devo dizer que não li a obra original. Não opinarei, pois, sobre se a adaptação faz jus - ou não - à obra original. Isso, não sei. Mas sei bem como esta obra funciona per si, contando de forma maravilhosa e pujante uma história que fica connosco nas nossas mentes, após fecharmos o livro, durante dias, meses, anos. Já tinha tido a oportunidade de ler este livro em formato digital e, já por essa altura, fiquei maravilhado. Mas agora que terminei de ler esta fantástica edição integral que a Ala dos Livros - digna de todos os louvores pela aposta – editou há umas semanas, posso sublinhar ainda mais veementemente que O Relatório de Brodeck é uma obra-prima da banda desenhada e indispensável para qualquer amante da 9ª arte. Por ventura, até mesmo para os que não são leitores de bd é uma obra que merece ser lida!
Há vários pontos que merecem destaque e que tentarei abordar, não sendo demasiado exaustivo. Vou tentar fazê-lo, mas não prometo.
Em primeiro lugar, a história. Esta é uma história negra, pesada, violenta, marcante e que toca bem no âmago do nosso ser, ao revelar o quão negativa, pecaminosa, rude e violenta pode ser a natureza humana. Esta é, aliás, uma história sobre o pior da humanidade. O pior que há nos homens. A mentalidade e comportamento da sociedade postos a nu. O relato bem que pode parecer demasiado deprimente e negativo, mas, na verdade, isso não faz dele inverosímil. Especialmente, se tivermos em conta que há uma componente histórico-política neste conto.
Tudo começa quando Brodeck, recém-saído de um campo de concentração após o fim da Segunda Guerra Mundial, regressa à sua aldeia, para estupefação de muitos que não acreditavam que fosse possível regressar. Numa outra noite, Brodeck desloca-se à taberna da aldeia, logo após ter ali sido perpetrado um violento crime. Como é um escriba, acaba por ser incumbido de escrever o relatório do que ali se tinha passado. Mas, claro, a ideia daqueles que lhe pedem esta tarefa, é que o relatório ilibe, naturalmente, aqueles que cometeram o crime. E à medida que vai investigando, Brodeck vai fazendo perigosas e dramáticas descobertas, contando-nos o que aquele povo da aldeia esconde, à medida que também nos vai revelando o que foi feito pelo exército invasor sobre a população local. Um duplo drama, por assim dizer. E mais, não conto. Tem que ser lido. É uma experiência que deve ser tida por todos os que gostam de uma boa história intensa e marcante, que nos toca profundamente.
Há, depois, uma outra dicotomia interessante neste livro. É que, se, por um lado, devido às fantásticas ilustrações de Manu Larcenet, de que falarei um pouco mais à frente, é um livro belo para observar, por outro lado, é uma obra de difícil digestão, pesada nos assuntos que aborda - e como os aborda - tendo em conta toda a negritude da narrativa. Se estiverem felizes e lerem este livro, é bem provável que fiquem automaticamente deprimidos. Se já estiverem deprimidos quando pegarem no livro, bem, só espero que não tenham armas de fogo em casa, se é que me entendem!
Mas, se a história e a própria narração, lenta, comedida e a saber causar momentos de ansiedade no leitor, é absolutamente magistral, que dizer das ilustrações com que Larcenet nos brinda? A experiência visual nesta obra é totalmente imersiva, com o autor a conseguir transportar-nos para um lugar inóspito, que tem tanto de belo como de sombrio. Se as paisagens, cheias de montes, vales e florestas cobertas de neve são de cortar a respiração, as personagens, a aldeia em si e o ambiente que paira no ar é verdadeiramente aterrorizante. Um terror que acaba por ser mais do espectro psicológico e vai-nos sendo dado a conta-gotas, através de uma narrativa que sabe prender o leitor, deixando-o, até, com um gradual sentimento de ansiedade. Não se admirem que, nas primeiras 50/100 páginas andem um pouco à deriva. Mas, eventualmente, tudo começa a fazer sentido e as respostas começam a ser dadas. A narrativa é, por isso, magistral e é doseada na melhor das formas pelo autor.
O desenho que Larcenet nos dá neste livro, em formato horizontal (ou “italiano”, para muitos), é pleno de virtuosismo, com um traço a preto e branco elegante e rude, ao mesmo tempo, que sabe granjear as ilustrações de uma beleza ímpar, assente num magnífico jogo de branco e preto, sombra e luz, elegância e rudeza. As ilustrações são carregadas de inspiração e cada pequena emoção das personagens, cada detalhe na natureza, tudo é feito com exímio aprumo por parte do autor. Sem falhas. Uma autêntica obra de arte da ilustração. Cada vinheta, cada personagem, cada animal, casa paisagem, cada enquadramento… é tudo feito ao mais ínfimo detalhe e perfeição.
Se posso referir um único “problema” é que, por vezes, tem-se dificuldade em distinguir algumas personagens entre si. Claro que se compreende que isso acontece por causa das indumentárias semelhantes e da própria tez carregada de homens do campo, das personagens, mas, de facto, é uma das poucas coisas que posso apontar à obra.
Outra coisa que também é digna de comentário é a fantástica capacidade de Manu Larcenet para alterar drasticamente o seu traço. Estão a ver aquele traço caricatural e simplista que o autor utiliza em O Combate Quotidiano, recentemente publicado em Portugal pel’ A Seita e pela Arte de Autor? Aqui, o seu desenho não se compara minimamente! É totalmente diferente e de um género altamente realista! Como é possível um autor ser tão camaleónico na forma como ilustra e, além disso, ter tanta fluidez e à-vontade em ambos os traços? É uma coisa que me ultrapassa, sinceramente. Mas que só me deixa embasbacado e com vontade de aplaudir os dotes do autor para a ilustração. Fantástico!
Quanto à edição, acho que posso dizer que é uma clara candidata a melhor edição do ano, também. Estamos perante um enorme livro com mais de 300 páginas em papel de gramagem generosa. O que faz com que se pareça uma autêntica "lista telefónica", pois é robusto e bastante pesado. Há também um fio de tecido marcador, o que atribui uma dose de classe à edição. A capa é dura e há ainda uma manga – uma sobrecapa, vá – que envolve o livro e que tem impressas as ilustrações de capa dos dois tomos. Nota positiva para o facto de a lombada desta sobrecapa ter sido pensada para que o leitor possa optar por arrumar o livro na sua estante em formato vertical ou horizontal. Que detalhe fantástico!
Resta-me ainda dizer que a edição integral funciona muito bem num só volume. Mesmo que a obra tenha sido originalmente lançada em dois livros, acho que é uma história demasiado fechada em si e intensa, que deve ser lida desta forma. Um autêntico luxo. Portanto, parabéns, Ala dos Livros, pela escolha e aposta.
Em suma, O Relatório de Brodeck é muito mais do que uma simples história. Muito mais do que um conjunto de boas ilustrações. Magistral na ilustração, no argumento e na narrativa. Negro, pesado, sombrio, frio, assustador e que nos deixa a alma em pedaços. A paisagem é repleta do branco da neve, mas este livro é dos mais negros que alguma vez podemos ler. Uma obra de arte. E, tudo isso somado, faz com que seja, sem grande problema, um dos melhores livros de banda desenhada de sempre. Perfeito naquilo que procura ser!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
O Relatório de Brodeck
Autor: Manu Larcenet
Adaptado a partir da obra original de: Philippe Claudel
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 328, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2021
Este livro é, sem dúvida, um acontecimento excepcional, no pequeno mercado de BD nacional, não só pela sua invulgar dimensão e volume, como, acima de tudo, pelo registo gráfico único e extremamente pessoal dado pelo autor, bastante longe das "tradicionais" linhas franco-belgas exploradas por cá. Apenas lamento o facto de não vir com a "embalagem" que lhe faria justiça - uma caixa arquivadora (atenção Hugo que voltou a referi-la na ficha técnica quando ela não existe...). A manga é um recurso para acomodar o volume da obra e de alguma forma minorar a oscilação da mesma, reduzindo a pressão sobre a lombada, mas não substitui um verdadeiro arquivador (por alguma razão a edição brasileira contempla este "extra...). Boa obra e venham mais como esta...
ResponderEliminarCaro António,o lançamento desta obra é, de facto, um acontecimento excepcional! Obrigado, também, pelo reparo em relação à "caixa arquivadora". Tinha copiado a ficha técnica do álbum de outro artigo que também ainda não estava atualizado. Mas agora já está. Sim, concordo que a tal caixa arquivadora faria a edição ainda melhor. Mas, provavelmente, também aumentaria o preço, que já é elevado para algumas carteiras. Portanto, talvez tenha sido a opção certa da editora em termos de edição.
EliminarAinda não acabei de o ler... para o digerir bem, prefiro ir fazendo pausas na sua leitura e voltar a ele, por exemplo, no dia seguinte.
ResponderEliminarO que dizer até agora??? Prefiro dizer pouco, mas com muita emoção, BRUTAL.
Parabéns aos editores. Obrigado.
Caro João, obrigado pelo comentário. E sim, diria que "BRUTAL" é um adjetivo que encaixa bem nesta obra ímpar!
Eliminar