Depois do fantástico Shanghai Dream nos ter levado ao passado, através de um drama ambientado na Segunda Guerra Mundial, o autor português Jorge Miguel, que muitas cartas dá no universo da banda desenhada franco-belga vê, num curto espaço de tempo, um segundo livro seu publicado em Portugal pelas editoras Arte de Autor e A Seita. Mas, se o álbum anterior foi histórico, este Sapiens Imperium não poderia ser mais futurista. E, desta vez, no lugar de Philippe Thirault, o autor português aparece acompanhado pelo americano Sam Timel.
Há que dizer que Sapiens Imperium se apresenta como uma obra de ficção científica cheia de potencial e uma forte ambição. E embora seja publicada como um one-shot, uma história auto-contida em si mesma, a verdade é que há aqui espaço para muito mais. E quando falo em “muito mais” refiro-me a uma maior e mais complexa exploração narrativa das boas ideias que Sam Timel congeminou. E, talvez por isso, não seja de admirar que a última legenda do livro seja “Fim do Primeiro Ciclo”. O que traz consigo a promessa de que, mesmo tendo em conta que este livro se fecha a si mesmo, há (haveria!) espaço para muito mais.
E essa característica, podendo ser extremamente positiva, e bem apetecível para o nosso imaginário, também acaba por ser o calcanhar de Aquiles da obra, a meu ver. É que, esta sensação de subaproveitamento, de demasiadas coisas para poucas páginas (embora sejam 120, ainda assim) e de alguma aleatoriedade de ideias, está presente ao longo de toda a leitura.
A história leva-nos, como já referi, para uma distopia futurista, passada num local e num tempo longínquos. O universo é governado, de forma autoritária, pelo chefe dos Kerkans. Quanto à dinastia dos Khelek, depois de deposta, foi aprisionada em Tazma, uma lua abandonada, onde o seu povo passou a viver no subsolo. Entretanto, passou-se muito tempo e começa a surgir uma onda de revolta por parte dos Khelek, que têm que fazer trabalhos forçados para a produção de algas, que são indispensáveis à vida do Império. No fundo, a clássica situação de um povo que é escravizado em prole de um outro.
E da revolta que se vai sentindo junto dos Khelek, começa a sobressair a jovem Xinthia, que protagoniza este Sapiens Imperium, numa luta pela revolução e pelo direito à liberdade. Entretanto, Xinthia acaba por se apaixonar pelo filho do imperador que, contrariamente à sua família, até consegue nutrir simpatia e respeito pelo povo Khelek.
Desta forma, estamos perante uma narrativa carregada de alguns lugares comuns e uma certa sensação de déjà vu. Nesse sentido, e ainda que tudo seja ambientado num universo muito particular e original, fica-se com a sensação de que já se viu, leu ou ouviu esta mesma história noutro(s) lugar(es).
Há também uma coisa muito interessante que são os Metalnautas, uma espécie de robots de guerra, que são controlados à distância por humanos. Essa premissa destes soldados de guerra mecânicos é, por si só, muito interessante e merecia, por ventura, uma maior e mais complexa exploração por parte de Timel. Como também o merecia a boa dose de criaturas e locais imaginados por Timel e ilustrados por Jorge Miguel.
É, pois, por isso, que considero que, em termos narrativos, Timel parece munir a história de muitas pontas soltas. Há imensas boas ideias, aqui e ali, mas parece que são "atiradas" para a história de uma forma algo aleatória.
Quanto ao trabalho de ilustração, do português Jorge Miguel, devo dizer que o autor continua a dar mostras das suas enormes capacidades enquanto bom desenhador. Apresentando um traço rápido, mas elegante, que até me remete para alguns autores clássicos da literatura franco-belga, a forma como ilustra expressões faciais, a linguagem corporal das personagens, as naves espaciais e até algumas figuras alienígenas, é praticamente sempre muito bem conseguida. Por vezes, passamos por uma ou outra vinheta que parece ter sido desenhada um pouco mais "à pressa" e que talvez tivesse merecido a colocação de mais detalhes por parte do autor, mas, logo a seguir, deparamo-nos com uma ilustração muito apelativa, que nos faz esquecer a anterior ilustração. E sim, no final, Jorge Miguel consegue encher o olho de um admirador de boas ilustrações.
Sendo clássico no estilo, mas, neste caso, desenhando uma história futurista, diria que o autor arriscou bastante e a coisa até podia ter saído mal. Mas não. O seu trabalho é deveras interessante, merecendo ainda um destaque pela sua versatilidade para histórias de cariz bem diferente. Shanghai Dream não tem nada a ver com Sapiens Imperium e em ambas as obras, Jorge Miguel, nos dá ilustrações muito cativantes e soluções narrativas eficazes para bem nos contar ambas as histórias.
A edição que a Arte de Autor e A Seita prepararam para esta obra, mantém os padrões de qualidade que poderíamos antever: capa dura, bom papel brilhante e um bom trabalho ao nível da impressão e encadernação. Saliente-se ainda o dossier de 8 páginas, no final da obra, que permite um mergulho mais profundo neste universo, através de uma cronologia e de algumas imagens preparatórias relativamente ao visual da obra.
Sobre o objeto físico, há uma coisa, que importa dar conta, que diz respeito ao excesso de texto que aparece na capa e contracapa. Senão, vejamos: há uma síntese logo na capa(!), há um pequeno resumo na contracapa num texto maior em dimensão e depois ainda há um terceiro resumo da obra. O texto não se repete mas complementa-se, é certo, mas acho que todo este texto, para lá de excessivo, tira muita beleza ao livro em si. Bem sei que na versão original, sucedeu o mesmo, portanto não é algo que deva ser imputado às editoras portuguesas, mas, presumivelmente, aos autores.
A ilustração escolhida para a capa também não é a melhor, quanto a mim, se tivermos em conta a enorme capacidade de ilustração de Jorge Miguel. Não é que seja uma capa feia. Quantas dezenas de livros com capas mais feias não haverão, mas, lá está, conhecendo a capacidade do autor português, acho que a capa poderia ser melhor e mais cativante.
Em suma, este é um daqueles livros que me deixa com sentimentos mistos. A ideia, o potencial da mesma, as ilustrações fantásticas de Jorge Miguel… tudo isso está a um nível de excelência. Mas depois, há a tal sensação de déjà vu e de ideias recicladas de outras obras, bem como a introdução de muitas coisas, que tendo potencial, poderiam ser mais bem aproveitadas. Seja como for, é um bom livro, ainda assim, especialmente recomendado aos adeptos da ficção científica.
NOTA FINAL (1/10):
8.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Sapiens Imperium
Autores: Sam Timel e Jorge Miguel
Editora: Arte de Autor e A Seita
Páginas: 120, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Setembro de 2021
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