Estão a ver aquelas coisas boas da vida que são fora de série até nos mais ínfimos pormenores? Que nos fazem ficar com um sorriso na face, que não é mais do que um misto de admiração e respeito pela arte e engenho de outrem? O Burlão nas Índias é tudo isso e muito mais! Uma verdadeira obra-prima da banda desenhada, singular nos seus intentos e nos seus feitos, é difícil ficar-se insatisfeito perante este banquete de 9ª arte! Assume-se como uma das melhores obras de banda desenhada dos últimos anos.
Esta obra da autoria de Guarnido e Ayroles, que a Ala dos Livros publica em tão boa hora, conta-nos a jornada épica e mirabolante de Don Pablos de Segóvia. Um dos maiores tratantes, trapaceiros e charlatões da história. A personagem, especialmente famosa em Espanha, foi criada por Francisco de Quevedo na sua obra universal El Buscón. E como no último parágrafo dessa obra original é relatado que, no final da sua vida, Pablos viajou até às Índias em busca de fortuna, sem que, depois, tivesse havido um relato de tais aventuras, os autores desta banda desenhada decidiram pegar na história nesse ponto, imaginando como teriam sido essas aventuras nas Índias ou, melhor dizendo, no continente americano.
Assim, a história que aqui temos é o relato de como Pablos, uma das personagens eticamente mais incorretas de sempre, mas maravilhosamente perspicaz e adorável, consegue desafiar a sociedade e aquilo que a mesma tinha destinado para si. Com o tema do El Dorado como pano de fundo, ele consegue enganar tudo e todos – incluindo o próprio leitor – e dar a volta por cima. Uma personagem inesquecível e maravilhosa, que nos traz à memória Dom Quixote de La Mancha, que enfrenta adversidades, perigos, soldados, dramas, guerras, ameaças de morte, fome, uma infância infeliz, tortura e muito mais. E tudo isto em busca de um sonho: o de alcançar fortuna e o de contrariar o destino pré-programado duma sociedade totalmente hierarquizada. E este último ponto também me remeteu, em certa maneira, para a enorme demanda que Edmond Dantès tem pela frente, em O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Não quero falar muito mais da história. O argumento é tão delicioso que, certamente, quanto mais falar do mesmo, mais prazer retirarei aos meus leitores quando puderem ler esta obra. E não é, obviamente, esse o meu intuito. E sim, caros leitores, este é daqueles que têm mesmo que comprar! O preço da obra até pode ser “puxadote”, reconheço, mas quando finalmente terminamos a leitura da obra percebemos que vale cada cêntimo – e muito mais!
Há tanto que enaltecer nesta obra incrível e obrigatória! Mas vamos por partes.
Em primeiro lugar, desta vez, comecemos pela arte ilustrativa. Juanjo Guarnido é o aclamado autor da série Blacksad, que assina em parceria com Juan Diáz Canales e que, até à presente data, conta com 5 volumes – estando, neste momento, os autores a trabalhar na próxima aventura do detetive-gato que será um álbum duplo. Eu teria páginas e páginas para escrever sobre Blacksad pois, afinal de contas, esta série ocupa um lugar muito relevante na minha bedeteca, sendo uma das minhas bandas desenhadas favoritas de sempre. Está, certamente, no top 10 das bandas desenhadas da minha vida. E, por ventura, nos três lugares cimeiros dessa lista. E embora houvesse muito para escrever sobre Blacksad, vou-me ficar apenas com o relevante para esta análise a O Burlão nas Índias: é que, a meu ver, Guarnido é bem capaz de ser o melhor ilustrador da banda desenhada atual. E sim, bem sei que isto de ser-se “o melhor”, é bastante relativo e, em boa parte, subjetivo. Ainda assim, a capacidade de ilustração do autor é de tal forma impressionante que considero o seu trabalho perfeito. Já o era em Blacksad. É-o, também, em O Burlão nas Índias.
O traço hábil do autor tem a capacidade de saber ser realista mas, também, conseguir dotar as suas personagens de uma familiaridade rara, com que adultos e crianças facilmente se identificam. Há uma componente da escola Disney nas personagens de Guarnido que nos obriga a mergulhar nas histórias com o mesmo gosto com que mergulhámos nos filmes clássicos de animação do estúdio de animação americano. A isso dever-se-á certamente, para além do talento nato do autor, a sua passagem pelos estúdios Disney onde trabalhou em filmes como O Corcunda de Notre Dame, Hércules ou Tarzan.
Mas não são apenas personagens maravilhosas que Guarnido nos oferece nas suas bandas desenhadas. Os enquadramentos com forte influência no cinema, as expressões inequívocas dos sentimentos das personagens, os ambientes, os cenários, os objetos, os estados do tempo, os pormenores, as nuances, a diversidade ilustrativa, o que fica subentendido... tudo roça a perfeição! Cada vinheta é um pequeno quadro, um frame que nos torna cativos na perfeição do talento do autor. Também por isso, o detalhe que o autor oferece aos seus desenhos é fora do comum. Cada vinheta merece que pousemos o nosso olhar atento e sereno nela durante largos momentos.
E não ficamos por aqui! Também nas cores, e na forma sublime, acutilante e ténue como o autor utiliza as aguarelas na sua arte, estamos perante um gaúdio para os olhos. Uma maravilha que faz com que os seus painéis merecessem figurar no museu do Louvre. Na verdade, e para que não considerem que me estou a perder em exageros, lembro-me de ver no Louvre obras de arte que me entusiasmaram (bem) menos do que a arte de Guarnido. Talvez até a própria capa de O Burlão nas Índias seja um statement do autor quanto a isso. Se repararem bem, é um claro exemplo de quadro a óleo que tantas vezes habita as paredes de museus por todo o mundo. Já agora, e porque falei na capa da obra, confesso que nem acho que tenha um cariz comercial muito forte. No entanto, e após o término da leitura, compreende-se que é, sem tirar nem pôr, a capa certa para esta obra.
Ainda no cômputo da ilustração, outra coisa que me faz achar Guarnido único é que a sua ilustração parece encontrar uma simbiose perfeita entre um estilo que é comercial (a expressividade das personagens a la Disney) e, ao mesmo tempo, artístico (com o uso subtil das aguarelas, a capacidade de ilustrar décors que são autênticas obras de arte). Se fosse uma banda de rock, acho que Guarnido seria os Queen, podendo fazer músicas grandiosas e épicas como Bohemian Rhapsody, The Show Must Go On, Who Wants to Live Forever ou Innuendo e, ao mesmo tempo, fazer músicas mais comerciais como Another One Bites The Dust, I Want To Break Free, We Will Rock You ou Don't Stop Me Know. E isto, não é muito frequente em criadores de bd, que me parecem mais propensos a adoptar um ou outro estilo (o comercial OU o artístico) mas, muito raramente os dois estilos. Guarnido é comercial mas também é artístico. Enquanto lia este livro, a minha filha, de 6 anos, observou algumas páginas e comentou, “Uau, pai. Que desenhos giros!”. Mas também estou certo que um apreciador de pintura clássica pode ficar maravilhado com o trabalho de Guarnido.
Há muitos desenhadores de bd franco-belga ainda no ativo que são excecionais: Loisel, Gibrat, Yslaire, Miguelanxo Prado, Jordi Lafebre, Marini, Boucq, Manara, Bourgeon, Hermann, Schuiten, Chabouté, Ralph Meyer... enfim, podia estar aqui o dia todo. E mesmo não sendo eu uma pessoa que gosta de considerar um artista em detrimento dos outros, igualmente geniais, eu tenho que dizer que Guarnido é bem capaz de ser o meu preferido. Pondo as coisas com dramatismo... se eu fosse num avião em vias de se despenhar com todos os ilustradores geniais que menciono acima, e eu só tivesse um pára-quedas para salvar um deles... acho que o daria a Guarnido. Sim, atualmente, talvez seja o meu número um.
E neste O Burlão nas Índias, convém dizer que Guarnido não se poupou a esforços e não se deixou adormecer à sombra do seu aclamado trabalho em Blacksad. Pelo contrário, até tentou ir mais longe na sua demanda artística por algo sublime e inesquecível que figurará na história da banda desenhada para sempre.
Mas se a qualidade do ilustrador Guarnido é óbvia e uma garantia, a verdade é que o nome Alain Ayroles era praticamente desconhecido para mim. E residia nele a capacidade – ou não – de fazer deste livro uma obra medíocre extremamente bem ilustrada ou uma obra-prima. Felizmente aconteceu o segundo caso e Ayroles vence e convence na maneira como nos entrega a história. É verdade que o autor já tinha uma certa base em que se apoiar – a obra original de Francisco de Quevedo – mas, ainda assim, há que reconhecer que o seu trabalho é formidável.
A opção por contar a história na primeira pessoa é logo uma decisão inteligente pois, como costumo dizer, isso já é meio caminho andado para que se crie automatica e sistematicamente uma relação entre narrador e leitor. Mas depois, esta é uma daquelas histórias bigger than life, com a qual facilmente nos identificamos em certos pontos, mesmo que, noutras situações, a conduta de Pablos nos possa chocar. Seja como for, há em todos nós um pouco de Don Pablos e damos por nós a torcer pelo seu sucesso, apesar de todas as más ações que a personagem protagoniza. A maneira como a personagem está tratada é excelente. E mesmo as personagens secundárias também têm influência no bom andamento e conceção da trama.
O texto é rico no vocabulário e, por vezes, certas vinhetas carecem de uma segunda leitura para que não percamos o fio à meada. Além disso, ainda temos momentos cómicos e satíricos, bem como momentos tristes, com frases marcantes, que nos obrigam a parar um pouco para pensar. Está lá tudo! Nada fica a faltar.
E, por fim, onde reside a verdadeira mestria de Ayroles é no facto do próprio autor, assumir o papel de Pablos ao conseguir baralhar tão bem o leitor. Estão a ver como se sentiam todas as pessoas que Pablos enganava? Ayroles brinca com o leitor e, não raras vezes, fiquei com este pensamento: “Sacana do Ayroles, deu-me bem a volta”. Isto, meus amigos, é uma jogada de mestre. Várias vezes nos é narrado um evento para, mais tarde, voltarmos a esse mesmo evento e vermos que, afinal, talvez as coisas não tenham mesmo acontecido como nos pareceu à primeira.
Sempre gostei deste tipo de exercícios narrativos que aumentam a possibilidade de retirarmos significados complementares das obras e que são uma clara prova da sagacidade e diversão que um autor aparenta ter na criação da obra. Um exemplo cinematográfico: lembram-se quando em o Lobo de Wall Street, Leonardo DiCaprio, interpretando Jordan Belfort, conta à sua mulher a história de como conseguiu chegar a casa, conduzindo sob o efeito de pesadas drogas? E que, mais tarde, percebemos que, afinal de contas, não foi bem como ele contou e somos brindados com a verdade dos factos? Que as coisas não correram como o narrador contou ao espetador? E somos surpreendidos? Nessa altura pensei, “Uau, Scorsese... deste-te ao trabalho de filmar, editar e produzir duas versões da mesma cena, só para brincares com o espetador? Genial!” Pois bem, em O Burlão nas Índias isso acontece vezes sem conta. E o meu sentimento foi semelhante: “Uau, Ayroles e Guarnido... vocês planearam, desenharam, trabalharam em tantas páginas que depois, mais à frente, seriam recontadas? Tudo em prole de uma narração audaz? Genial!”. É mesmo um trabalho de narração genial e Ayroles demonstra ser um exímio contador de histórias que sabe dar e tirar, encantar e ludibriar. Tal como o protagonista da obra, Don Pablos.
A minha análise já vai longa mas não a posso terminar sem falar da edição da obra. O trabalho de argumentista e ilustrador já era perfeito e faltava apenas que a editora Ala dos Livros pudesse estar ao nível dos autores. E, meus caros, a qualidade desta edição é um marco no lançamento de banda desenhada em Portugal. O formato de 235 x 310 mm é gigante e faz com que este livro seja o maior livro de banda desenhada da minha extensa coleção de bd. E mesmo fora de bd só tenho um Atlas da Vida Selvagem que consegue ser maior em formato do que O Burlão. Espantoso! E claro, relembrando a qualidade da arte de Guarnido e os detalhes das suas ilustrações, um formato deste tamanho permite uma imersão total na obra. O livro conta com papel de ótima qualidade, capa dura, com o título da obra debruado a tinta dourada e em relevo. A edição traz ainda uma elegante fita vermelha que serve como marcador de livro. Um objeto magnífico de se ter. Lembram-se do que eu escrevia acima sobre o preço “puxadote”? O preço do livro até pode ser “puxadote” mas quando olhamos para a qualidade do argumento, para a qualidade da ilustração e para a qualidade da edição... a relação qualidade/preço permite-nos ver que esta obra de cara não tem nada. Se o barato por vezes sai caro, aqui é caso para dizer que o caro sai barato.
E como se tudo isto já não fosse suficiente, a editora à semelhança do que fez em Alice – Edição Especial 25 Anos, de Luís Louro, optou por lançar uma edição especial e bastante restrita de 100 exemplares. Nesta edição restrita de O Burlão nas Índias, o livro vem com selo branco, é numerado e é acompanhado por uma tela que reproduz a capa do livro e que pode servir como caixa para arrumar o livro. Embora me pareça que a função de “caixa” não seja tão bem conseguida como a de tela. Os fãs e colecionadores de banda desenhada apreciam este tipo de brindes e acho que faz cada vez mais sentido dar a possibilidade a um número pequeno de fãs para poderem adquirir relíquias adjacentes à obra.
O Burlão nas Índias não é apenas um livro perfeito. É um livro que tem que fazer história. Já nem eu nem aqueles que me lêem no Vinheta 2020 estarão neste mundo e esta obra continuará a ser um marco para a banda desenhada. Daqui a 10, 50, 100 anos. É esta a marca da universalidade que traz consigo este O Burlão nas Índias. Da mesma forma que Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes é uma obra ímpar e universal, O Burlão nas Índias também o é. Guarnido dá show em cada vinheta, oferecendo-nos uma autêntica masterclass, um verdadeiro banquete daquilo que a ilustração em banda desenhada (também) pode ser. E Ayroles é igualmente genial, audaz e inteligente ao construir um argumento tão bem articulado, tão bem doseado, tão bem conseguido.
Sabem o que me está a apetecer fazer depois de ter escrito este texto? Reler esta obra-prima da banda desenhada outra vez!
Caros leitores, já compraram? Então estão à espera de quê? Se esta banda desenhada não esgotar, algo está errado com os leitores portugueses de (boa) banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Burlão nas Índias
Autores: Juanjo Guarnido e de Alain Ayroles
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2021
Ainda não tive a a oportunidade de ler ou ver parcialmente a obra, mas apenas pela capa dou os parabéns à editora pela excelente acabamento gráfico. Pergunto-me se a versão limitada valerá a diferença em valor?... Gostaria de ver a " Peregrinação" numa obra desta dimensão artística - quem sabe um dia...
ResponderEliminarCaro António, é uma edição maravilhosa por parte da Ala dos Livros, sim. Quanto à diferença de valor na edição limitada... acho que será uma questão subjetiva face à relevância de ter em tela a capa de um livro tão fenomenal e cuja própria ilustração também funciona tão bem enquanto "quadro".
EliminarAinda não tive a a oportunidade de ler ou ver parcialmente a obra, mas apenas pela capa dou os parabéns à editora pela excelente acabamento gráfico. Pergunto-me se a versão limitada valerá a diferença em valor?... Gostaria de ver a " Peregrinação" numa obra desta dimensão artística - quem sabe um dia...
ResponderEliminarAinda não tive a a oportunidade de ler ou ver parcialmente a obra, mas apenas pela capa dou os parabéns à editora pela excelente acabamento gráfico. Pergunto-me se a versão limitada valerá a diferença em valor?... Gostaria de ver a " Peregrinação" numa obra desta dimensão artística - quem sabe um dia...
ResponderEliminarApenas um comentário: tenho um livro de BD publicado pela Meribérica/Liber em 1993 que é de dimensão maior que este; o fantástico "A Lenda do Pai Natal", de Michael G. Ploog, que tem uns incomuns 272x360. Para quem não conhece, aconselho vivamente, pois é também uma obra prima.
ResponderEliminarLembrei-me agora de outro ainda maior, "Os meninos Kin-Der", de Lyonel Feininger, editado pelo Manuel Caldas em 2010... são 330x445. Também cá está na coleção (deitado, pois não há prateleiras com altura suficiente).
EliminarCaro Cravo! Pois... o meu Burlão também tem que ficar deitado! Se o colocasse de pé, teria que subir as prateleiras e isso roubar-me-ia espaço precioso para outros livros! Mas é fantástico ler-se um livro de dimensões tão generosas!
EliminarAcabei mesmo agora de adquirir , preço fantástico 23 euros , agora é so começar
ResponderEliminarExcelente preço para uma excelente obra! Boas leituras!
EliminarMoro no Brasil, como faço para comprar as bandas desenhadas que vocês publicam ?
ResponderEliminarExperimente contactar diretamente a editora ala dos livros por aqui:
Eliminarhttps://www.aladoslivros.com/index.php/contactos
De certeza que as dimensões são 235 x 310 mm? Todos os sites de revenda, incluindo o da Ala dos Livros, indicam 258 x 340 mm. Pergunto para saber se caberia na minha estante...
ResponderEliminarBoas. Se está no site da Ala dos Livros, então eles saberão melhor as dimensões do que eu. Aliás... mal seria se assim fosse. Vou corrigir o meu artigo. Obrigado.
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