sexta-feira, 9 de abril de 2021

Análise: Espíritos dos Mortos



Espíritos dos Mortos, de Richard Corben

Não deixa de ser surpreendente que este Espírito dos Mortos, seja o primeiro álbum que a G. Floy lança neste ano de 2021. Desde já aviso: é uma obra com uma personalidade muito própria. E não é certamente para todos. Mas para muitos será como que uma bíblia sagrada do mórbido e do horror, uma obra-prima obrigatória para amantes destas três componentes: Edgar Allan Poe, Richard Corben e, claro, o género do horror na banda desenhada.

O que aqui temos é uma reunião de 16 contos da autoria de Edgar Allan Poe, que Richard Corben adapta – por vezes livremente – ao seu próprio estilo. Para referência, os contos em questão são: Espíritos dos Mortos, Sozinho, A Cidade no Mar, A Adormecida, O Encontro Marcado, Berenice, Morella, A Sombra, A Queda da Casa de Usher, Os Crimes da Rua Morgue, A Máscara da Morte Vermelha, O Verme Triunfante, O Enterro Prematuro, O Corvo, O Barril do Amontillado e O Homem da Multidão, que é a nova história que esta edição inclui.

Como conhecedor e adepto do trabalho de Edgar Allen Poe, recomendo que os mais desconhecedores possam ler os textos originais do autor para terem um ponto de partida, antes de iniciarem a leitura deste Espíritos dos Mortos, de Richard Corben. Não obstante, também considero esta uma boa forma de mergulhar na obra de Poe. É certo que Corben por vezes subverte alguns significados ou reinventa algumas coisas com base na sua intepretação do texto original. Mas, ainda assim, considero que as adaptações estão muito bem feitas. E mesmo quando não são tão fiéis às originais é porque Corben apenas pretende ir mais longe nos significados subjacentes nos textos originais.

A leitura desta obra vai-nos deixando inquietos. Não é que sejam histórias que nos façam medo... simplesmente nos deixam desconfortáveis. Por vezes, temos nudez gratuita, algumas cenas gore, criaturas do submundo e imagens grotescas que impressionam, mantendo-se na nossa retina. Mas diria que a grande valência da obra – e no próprio trabalho de Corben - é na caracterização das personagens. Corben dá-nos personagens cuja aparência visual já é, por si só, desconfortável de se observar. Parece que, a qualquer momento, as personagens vão saltar das páginas e invadirem-nos com toda a sua maldade e intenções maquiavélicas. É também por isto que considero que muitas pessoas poderão não gostar da arte e da própria obra em si. Por vezes, algumas personagens podem parecer exageradas. E são-no, de facto, pois Corben desenha-as com um traço caricatural. Mas magnífico, a meu ver. E muito, muito original.

Se há coisa, porém, que não me agradou tanto foi que a grande maioria dos contos fosse muito curta. Por muito que o argumento e arte sejam interessantes, os contos mais curtos acabam por ser menos memoráveis. Quando cheguei ao fim do livro não me lembrava de alguns dos primeiros contos. Tive que os reler para poder escrever este texto. No entanto, há uma história que sobressai totalmente em relação às restantes: A Queda da Casa de Usher.

Esta história é o que de melhor aqui podemos encontrar. E, a meu ver, vale o livro por si só. Aliás, se fosse lançada isoladamente, era um livro obrigatório e perfeito, no seu género, sem dúvida. Merece, por esse motivo, que eu particularize um pouco em relação às restantes.

A Queda da Casa de Usher é também o maior conto em número de páginas, contabilizando 42. Conta-nos a história de Roderick Usher que se encontra doente e convida um amigo para o visitar e fazer companhia. O amigo, ao chegar à casa, encontra Usher que também é pintor, num estado de loucura latente. A irmã, Madeline, vive com o irmão, sendo a sua modelo para as pinturas que ele desenvolve. Mas a relação que Usher tem com a irmã vai-se revelando cada vez mais macabra e contra-natural, à medida que também a casa parece acompanhar a degradação e catarse final.

A história em si, as personagens e a maneira como Corben ilustra este magnífico conto, são fenomenais e verdadeiramente impactantes. Do melhor que já li em termos de horror em banda desenhada. Já estava a ler os contos seguintes da obra e a minha mente ainda voltava à casa dos Usher. Até neste momento em que vos escrevo, e mesmo sendo dos contos mais famosos de Poe, esta adaptação de Corben ainda me está na memória.

A sua arte ilustrativa, quer neste conto quer nos restantes 15, é cheia de personalidade apresentando-nos ilustrações que por vezes divergem entre si mesmas. Às vezes, são extremamente detalhadas, noutros casos parecem ser demasiado arrastadas e feitas com um traço grotesco. Seja como for, o estilo artístico único do autor atribui às histórias de Poe uma outra camada de macabro e desconcertante com o seu look assustador, particularmente com as personagens e suas proporções grotescas e expressões caricaturais.

O trabalho de cores por parte de Richard Corben e de Beth Corben Reed também é digno de destaque, realçando-se a presença de cores saturadas que oferecem à obra uma personalidade muito própria. O jogo de sombras e luz, bem como a utilização do espaço negativo para criar ambientes soturnos, que trazem tensão para a leitura, estão muito bem conseguidos também.

Parece-me óbvio que o autor investiu mais tempo e engenho numas histórias do que noutras. E, expetavelmente, aquelas mais detalhadas, com mais atenção ao pormenor, são as mais impressionantes. Mas, infelizmente, isto faz com que, depois, também se fique com uma certa sensação de heterogeneidade ao longo do livro. Umas histórias são nota máxima. Outras, nem por isso.

Uma nota ainda para a capa que está fantástica e que funciona, por si só, como uma excelente homenagem a Edgar Allen Poe e ao processo criativo do autor. Fantástica!

Quanto à edição da G. Floy, posso dizer que está fantástica. Capa dura – com uma espessura bem grossa – papel brilhante de boa qualidade, um bom trabalho gráfico, capas adicionais como extras e ainda uma introdução à obra por M. Thomas Inge.

Em conclusão, esta é uma obra de excelente qualidade. E mesmo não sendo uma banda desenhada para todos, é uma obra obrigatória para quem gosta de boas histórias de terror em formato de banda desenhada.


NOTA FINAL (1/10):
8.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Espíritos dos Mortos, de Edgar Allan Poe
Autor: Richard Corben
Editora: G. Floy Studio Portugal
Páginas: 224, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Janeiro de 2021

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