Procura-se Lucky Luke assinala o regresso do autor Matthieu Bonhomme que já nos tinha dado o fantástico livro O Homem que matou Lucky Luke – obra aclamada pela crítica e pelos leitores. Desta vez, Bonhomme volta a surpreender-nos na forma como aborda o universo do cowboy que dispara mais depressa do que a própria sombra.
Se em O Homem que matou Lucky Luke, Bonhomme propunha-nos a ideia, a priori impossível(?), de Lucky Luke poder ser assassinado por alguém, neste Procura-se Lucky Luke, o autor propõe-nos não uma, mas duas ideias aparentemente impensáveis também. A primeira é que Lucky Luke passe a ser um homem procurado com a sua cabeça a prémio; a segunda é que seja desejado por três maravilhosas mulheres ao mesmo tempo. Como irá o herói escapar-se deste double trouble?
Para os leitores menos avisados que venham dar a este meu texto, convém desde já dizer-vos que este não é um Lucky Luke habitual. Daqueles a que o autor original da série, Morris, nos habituou. Este é um Lucky Luke que pertence à coleção Lucky Luke visto por... que é editado em Portugal pela A Seita e que conta, no momento, com 3 álbuns: O Homem que matou Lucky Luke e Procura-se Lucky Luke, de Matthieu Bonhomme, e Lucky Luke Muda de Sela, de Mawil. Ainda durante 2021 é esperado que nos chegue o quarto álbum da série intitulado Jolly Jumper não Responde, de Guillaume Bouzard. Os livros desta coleção consistem em abordagens diferentes – mas não necessariamente divergentes – das aventuras clássicas de Lucky Luke. Como se fossem versões reimaginadas e revamped da série clássica.
Calculo que muitos leitores da velha guarda de Lucky Luke, mais puristas, não apreciem tanto estas novas abordagens. Ainda assim, também é verdade que esta cara lavada dos heróis clássicos – e que não acontece apenas com Lucky Luke mas, também, por exemplo, nos novos Spirou ou Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó, de Schuiten – parece estar a ser um sucesso de vendas no mercado europeu. Da minha parte, posso dizer que vejo com muito bons olhos estas novas abordagens de séries mais antigas, pois considero que permitem um ângulo diferente de observação e tratamento das personagens que todos conhecemos e, simultaneamente, também permitem que se possam conquistar novos fãs e interessados neste tipo de álbuns, quiçá mais refrescantes.
Mas voltando a este Procura-se Lucky Luke, Bonhomme é exímio na maneira como consegue desconstruir Lucky Luke. Acho que é esse o seu grande trunfo e que é isso que faz com que a sua abordagem seja original e refrescante. O autor poderia limitar-se a imaginar novos vilões e aventuras em que Lucky Luke pudesse entrar. Mas, em vez disso, opta por analisar com espírito crítico o herói, pegar em algo característico da série e partir desse vector para a sua construção do argumento. No primeiro livro pegou na questão de “se este é o homem que dispara mais rápido do que a própria sombra, seria interessante que alguém o conseguisse matar”. Neste segundo livro, opta pela tal questão dupla que já referi: “se Lucky Luke está sempre do lado do bem, seria interessante colocá-lo como procurado” e “se ele é solitário, seria interessante introduzir mulheres na trama”. São pontos de partida aliciantes desde a sua génese. Para além disso, ainda volta a brincar com a questão de Lucky Luke não fumar.
A história coloca Lucky Luke a ajudar três beldades femininas quando estas estão em perigo. Beldades essas que se apaixonarão pelo protagonista. E esta será a primeira instância que faz Lucky Luke ser wanted (desejado). Mas, além disso, o cowboy acaba por também ser wanted (procurado) pelo simples facto da sua cabeça estar a prémio, com uma recompensa de 50.000$. Isto coloca bandidos, índios e até a própria cavalaria no seu encalce. O que leva a que aumentem as situações divertidas impostas pela narrativa, bastante bem estruturada.
Bonhomme também demonstra desenvoltura na introdução das quantidades certas de texto. Se sabe construir bons diálogos, também sabe “calar” o texto, quando é necessário, e dar-nos bastantes vinhetas silenciosas que comunicam muito bem aquilo que importa comunicar. As 3 mulheres que habitam a história são todas muito bonitas, carismáticas e suficientemente diferentes entre si. Há também espaço para a introdução de alguns personagens que já tinham aparecido na série clássica de Morris, nomeadamente Joss Jamon, o chefe apache Patronimo, o Coronel O'Hallan, entre vários outros.
Teria sido benéfico um maior desenvolvimento do romance entre Lucky Luke e as personagens femininas, nomeadamente Cherry. Claro que conhecendo Lucky Luke e a sua necessidade ou desejo de ser um herói solitário – como diz a canção que acompanha sempre a última vinheta das suas histórias e que, oportunamente, Bonhomme decide utilizar na primeira vinheta desta obra – é natural que Lucky Luke não se queira prender com relações amorosas. Mas acho que a tentação de Lucky Luke poderia ter sido mais explorada pelo autor. Assim, pareceu-me que Lucky Luke passa por uma personagem mais assexuada do que propriamente por um homem que, mesmo tendo os seus desejos e tentações, opte por estar sozinho. Bonhomme explora isto nas últimas páginas mas de forma pouco convicta, a meu ver. Compreendo que sendo uma personagem clássica e do universo infanto-juvenil, o autor se tenha refreado de arriscar mais. Mas acredito que uma maior audácia – ainda que ligeira - teria beneficiado a história e as camadas de valores e humanidade que habitam no herói.
Embora até aqui eu tenha estado a fazer várias referências ao álbum anterior e como é expetável que quem gostou do primeiro possa gostar deste segundo intento do autor, a verdade é que há diferenças substanciais, quer na história, quer em termos gráficos entre O Homem que matou Lucky Luke e Procura-se Lucky Luke. O que é, aliás, positivo e reforça o compromisso do autor perante Lucky Luke, não fazendo mais um livro com o mote “vira o disco e toca o mesmo”. O Homem que matou Lucky Luke é um álbum mais pesado, mais denso e mais dramático do que este Procura-se Lucky Luke que, em termos de história, é mais leve e mais suave. E mesmo em termos de grafismo, a primeira história passa-se em ambientes mais citadinos ou florestais, e com bastante chuva a tornar as cenas mais inverneiras e escuras. Em Procura-se Lucky Luke, a maior parte da história desenrola-se no quente deserto que clama por luzes quentes e fortes. Os amarelos e os vermelhos. São dois álbuns diferentes mas que, ainda assim, têm muitos pontos em comum entre si.
Nesse sentido, em termos visuais Bonhomme persegue com o universo visual já criado por si no álbum anterior. E uma coisa é certa: para aqueles que gostaram do álbum anterior em termos visuais, posso garantir que esta obra procura dar todos esses mesmos ingredientes. Procura-se Lucky Luke é um álbum extremamente bonito e bem desenhado pelo autor. Os enquadramentos são fantásticos e a maneira eficaz e, por vezes, até bastante simplista dos desenhos de Bonhomme torna-os muito gratificantes de observar. Os momentos de ação – embora não sejam muitos – também estão bastante bem desenhados e ritmados. Destaque para as poses e linguagem corporal das personagens que estão fantásticas.
Ora, se a história é simples mas bem construída, com a introdução de boas personagens – especialmente as femininas – e com um Lucky Luke carismático, também o desenho de Bonhomme, cheio de personalidade e confiança, se apresenta muito do meu agrado. Há apenas algo que, na minha opinião, não funciona tão bem. E antes de avançar neste assunto, aproveito para sublinhar que esta é uma questão meramente subjetiva. De opção estética. Primeiramente do autor. E, depois, dos leitores, consoante os seus próprios gostos.
Assim, o que não me deixa totalmente satisfeito neste álbum é a opção de colorir tantas(!) páginas com manchas monocromáticas. Isso já tinha sido feito no álbum anterior mas neste Procura-se Lucky Luke, Bonhomme ainda abusou mais desta opção estética. Na verdade, dei-me ao trabalho de contar que a personagem de Lucky Luke é desenhada 227 vezes neste álbum. E dessas 227 vezes, o herói só é colorido com as suas cores clássicas – as botas castanhas, os jeans azuis, o cinto castanho, a camisa amarela, o colete preto, o lenço vermelho e o chapéu branco – 39 vezes. Ou seja, na grande maioria de planos em que Lucky Luke aparece na história, está colorido com uma simples mancha monocromática.
Sei que isso já era algo que Morris fazia por vezes nos seus livros mas creio que Bonhomme abusa em demasia desta característica. E como o seu traço é menos caricatural do que o de Morris, acho que é um efeito que se torna mais artificial. Também admito que o autor sabe usar bem esta técnica e que há páginas lindíssimas mesmo com essa vertente monocromática – especialmente as imagens que retratam a aridez do deserto ou certos ambientes dramáticos da narrativa. Insisto que isto é uma questão meramente subjetiva. Se eu não gosto muito, concebo perfeitamente que muitos leitores possam adorar. Não é que esteja mal feito. Longe disso. Só acho que torna a obra demasiado estilizada. Se fosse um outro western qualquer eu até poderia estar aqui a escrever que tinha adorado esta opção estética. Mas como se trata de Lucky Luke, tenho que dizer que é uma coisa que me faz alguma “comichão”. Demasiado popart para o meu gosto num álbum de Lucky Luke. Mas, lá está, são gostos. Se calhar até estou sozinho em relação a este ponto.
Em termos de edição, o trabalho da editora A Seita é, novamente, digno de destaque. Em primeiro lugar porque coloca o livro no mercado português durante a mesma altura em que o mesmo é lançado mundialmente. E depois, em termos de edição, propriamente dita, o livro tem uma encadernação de qualidade, com capa dura, papel baço de generosa gramagem e um caderno de extras exemplar, que contém uma entrevista a Bonhomme, o processo de ilustração de uma prancha, estudos de capa e de personagens e um bom texto de João Miguel Lameiras que complementa a leitura com informações pertinentes. Tudo fantástico!
Há apenas duas coisas que considero que poderiam ter sido feitas de outra maneira. A primeira é a capa do álbum feita com acabamento brilhante. Ora, a capa d' O Homem Que Matou Lucky Luke foi feita com acabamento baço. Sendo dois álbuns da mesma coleção – e do mesmo autor – acho que teria sido mais congruente se este Procura-se Lucky Luke tivesse sido lançado com capa baça. Bem sei que, muito provavelmente, nem foi uma decisão da editora portuguesa e talvez até tenha sido uma escolha do autor. Realço que esta capa com acabamento brilhante funciona muito bem. A razão da minha observação é mais pela ausência de ligação à capa do anterior álbum de Bonhomme. E o segundo ponto menos positivo também está relacionado com uma ausência de continuidade com o O Homem que Matou Lucky Luke. Quando colocados ao lado um do outro, o novo livro é ligeiramente maior do que o anterior. A diferença não é muita e isto, naturalmente, não é um grande “problema”. Mas confesso que gostaria de ter visto uma maior uniformização entre os dois álbuns. As histórias são independentes entre si, sim, mas pertencem ao mesmo autor, à mesma coleção e à mesma editora portanto acho que faria sentido. Mas é como digo: pequenas coisas numa edição fantástica.
Edição essa que conta, mais uma vez, com uma capa exclusiva para as lojas FNAC. Acho esta iniciativa uma coisa muito bem conseguida por parte da editora. Pois permite uma certa liberdade de escolha para que o leitor escolha a capa de que mais gosta e, ao mesmo tempo, aumenta o caráter de colecionismo aliado à obra. E contariamente à capa exclusiva de O Homem que matou Lucky Luke que, não sendo feia, estava a anos luz da fantástica e maravilhosa capa original – que ganhou, até o prémio VINHETA D'OURO para melhor capa de 2020 – em Procura-se Lucky Luke, a capa exclusiva da FNAC é lindíssima. Para o meu gosto, talvez até mais bonita do que a capa original da obra. Embora esta também seja muito bonita, diga-se. Enfim, é certo e sabido que Bonhomme sabe produzir capas bonitas e impactantes. Ficará ao gosto do leitor a capa que mais lhe agrada. Seja como for, assinalo que é positivo e de louvar que existam duas capas diferentes.
Em conclusão, estou certo que esta será mais uma aposta ganha da editora A Seita. Procura-se Lucky Luke é um álbum coeso, bem estrutrado e bem pensado. É refinado com a dose certa de uma boa história e de uma arte personalizada e bem conseguida de Bonhomme. Se O Homem que matou Lucky Luke se revelou um sucesso, não vejo como Procura-se Lucky Luke não vá pelo mesmo caminho. Pese embora, este segundo álbum seja mais leve na história e nos ambientes retratados. Recomendado, sem dúvida.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Procura-se Lucky Luke
Autor: Matthieu Bonhomme
Editora: A Seita
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2021
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