Se, tal como eu, ficaram céticos quanto a um livro que subverte algumas coisas no clássico Lucky Luke, apresentando o cowboy mais famoso do mundo a deslocar-se numa bicicleta, em vez de no seu célebre e fiel cavalo Jolly Jumper, devo dizer que não há razões para alarme! Não é o Lucky Luke típico – desenganem-se os que acham ou esperam que seja – mas é uma bonita, sentida e, acima de tudo, divertidíssima homenagem a essa figura inesquecível da banda desenhada - e até mesmo da cultura popular -, que é Lucky Luke. Portanto, ponham de lado o ceticismo pois este é um livro que não vão querer deixar de ler!
Mawil, autor alemão que julgo ser inédito em Portugal, mergulhou bem fundo, nas profundezas da sua memória, para aí encontrar as características singulares que fizeram desta série incontornável da banda desenhada franco-belga, aquilo que ela é. E essas características, e de forma muito sucinta, são estas: 1) Lucky Luke é um cowboy solitário; 2) que dispara mais depressa do que a própria sombra; 3) que se mete em diversas aventuras mirabolantes; 4) mas com uma narrativa que sempre se apoia em factos reais. Isto é, há sempre algo histórico, algo real em que a série se baseia para narrar as suas histórias. 5) Por último, todos os livros têm uma vertente muito divertida, com personagens carismáticas e cómicas que ficam célebres junto dos leitores.
Agarrando nestas 5 características, Mawil soube (re)criar um excelente álbum de Lucky Luke, que assenta bem nas tais características nucleares que apontei. Senão vejamos: em Lucky Luke Muda de Sela, 1) o cowboy tem uma aventura bastante solitária em grande parte do livro; 2) são-nos mostradas situações em que relembramos porque é que Luke é o cowboy mais ágil e rápido com a sua pistola; 3) somos introduzidos numa aventura muito louca que atravessa os Estados Unidos da América (ainda por cima, com o protagonista montado numa bicicleta); 4) não esquecendo de introduzir os factos reais na história, ao nível do desenvolvimento das bicicletas, bem como, utilizando duas personagens reais. Finalmente, 5) as novas personagens que aparecem nesta história, são divertidíssimas e bem carismáticas. Et voilà, temos os ingredientes certos para uma boa história de Lucky Luke.
Nesta aventura, conhecemos o inventor Albert Overman que acaba de inventar uma nova bicicleta, muito diferente das que existiam então – que tinham uma grande roda à frente e outra, bem pequena, atrás – e que decide rumar até São Francisco, onde se realizava a maior corrida de bicicletas de todos os tempos. Com a sua nova bicicleta, que passa a usar uma corrente ente pedais e roda traseira, Overman acredita ter uma invenção que irá mudar para sempre a forma como a sociedade utiliza estes veículos de duas rodas. Eventualmente, o inventor conhece Lucky Luke, que o decide ajudar na sua demanda, mas que, invariavelmente, acaba metido numa grande confusão. Quando dá por ele, o cowboy solitário encontra-se a atravessar a América montado numa bicicleta(!). Se a ideia parece um pouco sem sentido, tendo em conta que, afinal de contas, se trata de um western, devo dizer que Mawil soube arquitetar muito bem o argumento de forma a que, mesmo parecendo absurdo, o leitor aceite e acabe por mergulhar com gosto na história.
E o grande trunfo desta obra é, sem dúvida, a forma divertida como nos é contada. São inúmeras as situações engraçadas em que Lucky Luke se irá meter e estou certo que muitas delas arrancarão uma boa dose de risadas a muitos leitores. Não esquecendo também a introdução do Sr. Smith e a Sra. Wesson, que são dois vilões hilariantes, que certamente não serão esquecidos por quem ler este livro.
Para além de ser divertida, esta história também está bem ritmada, havendo espaço para que muita coisa aconteça. Desde uma viagem atribulada no comboio, a um encontro de Lucky Luke quase fatal com uma tribo de índios, a uma acidentada viagem de bicicleta pelo meio do deserto (e respetivas impossibilidades que isso acarreta), ou a própria corrida de bicicletas que sucede num espaço totalmente urbanizado como a cidade de São Francisco, tudo isso oferece ao álbum um certo dinamismo, que faz com que o livro possa ser lido de um só trago, pois não há espaço para repetições. A leitura é escorreita e fácil.
Em termos de argumento, a única coisa que me pareceu não tão bem conseguida é que a personalidade deste Lucky Luke me pareceu algo descaracterizada. E não o digo pelo aspeto visual da personagem. Digo-o porque o achei um pouco mais "desmiolado", mais perdido, menos hábil e menos "senhor da situação", como normalmente costuma ser. Claro que a introdução de uma bicicleta, que era um objeto que, naquele tempo, parecia vindo de um outro planeta, pode justificar a reação algo insegura de Lucky Luke. Mas, mesmo assim, acho que o autor talvez pudesse ter introduzido algumas características clássicas do comportamento da personagem pois a verdade é que esta história continuaria a funcionar exatamente da mesma forma se, em vez de Lucky Luke, tivéssemos um qualquer outro cowboy inventado por Mawil.
Quanto à arte ilustrativa, penso que há um caminho certo e errado para conseguir aproveitar da melhor forma o trabalho de Mawil. Se olharmos para estes desenhos, comparando-os automaticamente com o trabalho de Morris, a desilusão é quase um dado adquirido. No entanto, se olharmos para esta arte, tendo em conta de que se trata de uma hommage ao Lucky Luke original, então aí, certamente, conseguiremos aproveitar e bem-dizer a forma como o autor alemão soube recriar estas personagens. Esta é, aliás, uma regra base para que os leitores consigam mergulhar verdadeiramente neste tipo de obras, que procuram prestar homenagens aos autores e/ou personagens originais. Este não é o Lucky Luke de Morris. Este é o Lucky Luke de Mawil que, é verdade, presta uma justa e bem conseguida homenagem ao herói original. Mas cabe ao leitor saber abrir a sua cabeça, para melhor aproveitar novas abordagens em séries clássicas.
As ilustrações de Mawil são extremamente cartoonizadas, com um estilo naïf e simplista no traço, e com as caras das personagens e dos cavalos a parecerem, por vezes, desenhadas por crianças. A forma algo arcaica como desenha as caras, bem "abonecadas", das personagens remete-me também para um estilo de desenhos animados que hoje em dia, passa muito na televisão. No entanto, é igualmente de salientar que na caracterização de algumas paisagens, Mawil revela ter uma boa capacidade ilustrativa que ajuda a obra a "respirar" melhor, para que não sejam (só) as personagens a monopolizar as vinhetas desta banda desenhada.
Esta edição portuguesa – que faz o feito mais do que respeitável de anteceder a própria publicação da obra no mercado franco-belga! - está um autêntico mimo e segue aquilo que A Seita já nos deu, com o anterior O Homem que Matou Lucky Luke. Boa encadernação, com papel baço de primeira qualidade (que até cheira bem!) e que atribui o charme adequado à obra. E a capa dura baça também funciona muito bem. Um detalhe que merece nota é a lombada, por ter recebido da editora portuguesa o cuidado de ser igual à edição d’ O Homem que Matou Lucky Luke, o que será uma mais valia extra para os que compraram esse volume. Agora, juntando esse primeiro álbum a este Lucky Luke Muda de Sela, esses leitores poderão colocar ambos os livros, lado a lado, na estante, para um bom efeito visual.
A obra tem ainda uma capa alternativa que é exclusiva para a FNAC e que está, para o meu gosto, espetacular. Finalmente, há ainda um caderno de extras no final do livro onde vemos o processo de conceção da capa e de algumas pranchas e personagens. Se sou o primeiro a apontar problemas no design dos livros ou na qualidade da edição de certas obras de bd, também sou o primeiro a enaltecer as editoras e autores, quando fazem um magnífico trabalho. Como é o caso. Faço ainda um destaque para a tradução que me pareceu muito feliz, com a utilização de algumas expressões bem portuguesas, que tornam a história mais "nossa" sem, naturalmente, corromper ou alterar o texto original.
A obra tem ainda uma capa alternativa que é exclusiva para a FNAC e que está, para o meu gosto, espetacular. Finalmente, há ainda um caderno de extras no final do livro onde vemos o processo de conceção da capa e de algumas pranchas e personagens. Se sou o primeiro a apontar problemas no design dos livros ou na qualidade da edição de certas obras de bd, também sou o primeiro a enaltecer as editoras e autores, quando fazem um magnífico trabalho. Como é o caso. Faço ainda um destaque para a tradução que me pareceu muito feliz, com a utilização de algumas expressões bem portuguesas, que tornam a história mais "nossa" sem, naturalmente, corromper ou alterar o texto original.
Em conclusão, este é um livro adequado para miúdos e jovens mas que também vai agradar a muitos adultos, pela oportunidade de mergulhar num universo western tão querido e amado por tantos amantes de banda desenhada. Lucky Luke Muda de Sela é muitíssimo divertido, funciona extremamente bem e é uma agradável surpresa. Todos os fãs do cowboy mais célebre da banda desenhada deverão dar-lhe uma oportunidade. Há fortes probabilidades de não se arrependerem!
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Lucky Luke muda de Sela
Autor: Mawil
Editora: A Seita
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2020
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