Há algo na arte de Véte, e especialmente neste Haverá Um Amanhã?!, que nos remete automaticamente para o tempo dos fanzines, das edições independentes de banda desenhada, do gosto puro, sincero, juvenil e descomplexado de querer produzir e ler uma banda desenhada. Dito isto, quase que diria que esta obra é mais direcionada para aqueles que, em miúdos ou em idade adulta, sempre sonharam em produzir a sua banda desenhada, ou que iam acompanhando os novos fanzines que emergiam, aqui e ali, do que, propriamente, para o público mais generalista da banda desenhada.
Véte mostra como se faz, sendo uma prova viva, um rosto concreto, do amor pela criação de banda desenhada independente. Ou não fosse ele um autor bastante maduro nestas lides. E, certamente, podemos olhar para Véte como um exemplo de que é possível criar banda desenhada. Para si mesmo, em primeiro lugar, e, só depois, para os outros.
E isto sim, acredito, é ser-se verdadeiramente independente. Este livro parece feito mais para o próprio autor do que para os outros, não havendo mais glória em criar algo do que a necessidade, pura e dura, dessa mesma criação. O artista deve fazer algo para si mesmo em primeiro lugar. E é isso que Véte faz em Haverá Um Amanhã?!.
Ao ler, aliás, a introdução à obra por parte do autor, denota-se a sinceridade e humildade do mesmo, ao afirmar, despretensiosamente, que este é um trabalho que tinha ficado em standby durante muitos anos, devido a outros projetos prioritários necessitarem da sua atenção e foco. Também nos permite logo perceber, que este álbum é mais um escape criativo, um exercício a solo e uma prova de superação pessoal, do que outra coisa qualquer.
Admito que o cariz comercial da obra pode não ser muito grande, pois, ser-se indie no género, tem destas coisas: parece que o foco passa a ser, automaticamente, para aqueles que gostam e acompanham os autores independentes.
Haverá Um Amanhã?! é contado na primeira pessoa pelo protagonista da história, cuja missão e ocupação é ser transportador especial, servindo como intermediário em trocas de bens, serviços, informação e qualquer coisa mais. Ambientada num universo alternativo futurista, com naves espaciais à mistura e a presença de seres alienígenas e outras criaturas monstruosas, esta é uma aventura que leva o protagonista a recuperar um objecto antigo e misterioso.
Onde o autor me parece muito consistente é na clareza do seu discurso. Apresenta-nos um texto bem criativo e ritmado. E mesmo sendo um livro onde não existe qualquer diálogo entre as personagens, isto acaba por ser bastante bem conseguido, pois o protagonista parece estar sempre a dirigir-se aos leitores, apresentando as suas teorias e o seu pensamento perspicaz, sobre aquilo que o rodeia, em forma de monólogo. Foi um prazer ler este texto e pareceu-me que o protagonista é carismático e bem construído. Infelizmente, ao longo da obra, a demanda do herói vai ficando um pouco mais difusa de acompanhar e, progressivamente, parece-me que o autor acabou por perder um certo fio condutor da narrativa, deixando o argumento com alguns "tropeções". É pena, porque a história até ia muito bem encaminhada. Mas talvez uma coisa que possa justificar isto, é o facto desta ser uma obra feita em duas alturas diferentes, separadas por vários anos, como o autor refere na introdução à obra.
O estilo de ilustração de Véte, bastante digital no aspeto, apresenta influências orientais que acabam mescladas com o estilo de concepção de personagens de algumas obras franco-belgas, nomeadamente da escola de Hergé. Se olharmos com atenção, o estilo simples na caracterização das personagens, faz com que as mesmas pudessem figurar facilmente num álbum de Tintim. O que, no final, nos oferece uma mistura muito interessante. Nos planos de ação – e há muita ação neste Haverá Um Amanhã?! – por vezes a ilustração das personagens parece carecer de sentido de movimento, levando a que as posturas dos intervenientes pareçam estáticas em situações de movimento. Em termos de planificação, há um esforço do autor em não se repetir, apresentado-nos vinhetas de diferentes tamanhos, que possibilitam diversidade à obra.
Em conclusão, pode-se dizer que tudo nesta obra respira "banda desenhada independente". E aqui a edição da Escorpião Azul, não foge à regra. Normalmente, sou defensor que quase tudo o que é banda desenhada deve ser lançado, se possível, em capa dura. Neste caso, e tendo em conta tudo aquilo que já referi sobre Haverá Um Amanhã?! ser uma obra destinada, não tanto ao grande público mas a uma franja de mercado mais pequena - os fiéis amantes e seguidores do género indie -, parece-me que a edição em capa mole, bem como o formato da obra, é a escolha acertada.
NOTA FINAL (1/10):
6.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Haverá um Amanhã?
Autor: Véte
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 78, a preto e branco
Encadernação: capa mole
Lançamento: Julho de 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário