terça-feira, 1 de setembro de 2020

Análise: O Expresso do Amanhã I e II





O Expresso do Amanhã I e II, de Jacques Lob, Jean-Marc Rochette e Benjamin Legrand

O Expresso do Amanhã, dividido em 2 livros que reúnem os primeiros 3 capítulos lançados, foi a obra escolhida pela Levoir para inaugurar a sua sexta edição da Coleção Novelas Gráficas, que a editora lança em parceria com o jornal Público.

A meu ver, diria que iniciar uma série com uma obra dividida em dois volumes, pode não ter sido a opção mais acertada por parte da editora. Pese embora, seja uma obra que tenha chegado ao grande público através do filme Snowpiercer, de Bong Joon-Ho, e da série televisiva da Netflix - com o mesmo nome e protagonizada por Jennifer Connelly – e que, possivelmente traga consigo um acréscimo de interesse por parte do potencial público desta coleção de banda desenhada. Seja como for, é inegável que O Expresso do Amanhã, criado por Jacques Lob e Jean-Marc Rochette, é uma obra de referência no banda desenhada de ficção científica. 

Outra coisa tem que ser referida por mim: penso que seria completamente possível a edição das três histórias aqui presentes num livro apenas. A partir do momento em que a Levoir editou, numa das suas coleções de Novelas Gráficas, O Idiota, de André Diniz, que chegou às 400 páginas, em preto e branco, a editora abriu um precedente que deveria manter, em abono da coerência. Se tivesse lançado estes dois volumes num só livro, ficaríamos com um livro de 285 páginas a preto e branco, o que seria muito mais benéfico para os leitores de banda desenhada. Obviamente, sei que a tentação de lucro ao dividir a obra em dois volumes é grande para uma editora. Mas pensando enquanto leitor, não posso deixar de referir que seria um livro muito mais apetecível – e nesse caso, mais recomendável para abrir a sexta coleção de novelas gráficas – se em vez de termos dois livros, tivéssemos um volume mais completo.


Denominada originalmente Le Transperceneige, esta obra foi lançada originalmente em 1982, na revista A Suivre. A série foi ainda continuada em dois volumes – O Explorador (1999) e A Travessia (2000) - por Benjamin Legrand, que substituiu Jacques Lob no argumento, e por Rochette, que se manteve nas ilustrações. Em 2015, foi ainda publicado o quarto e último volume da série – Terminus, com Olivier Bocquet no argumento, que não aparece contemplado nestes dois livros da Levoir. Neste momento, está a ser feita uma prequela denominada Extintions, que Rochette produz com argumento de Matz.

O Expresso do Amanhã trata-se de uma história pós-apocalíptica, ambientada num universo desolado e vazio, que tem origem numa catástrofe ambiental que deixou o planeta na idade do gelo. As temperaturas são demasiado baixas para que a vida humana possa subsistir no exterior, e a única forma de sobrevivência da mesma é dentro do comboio Snowpiercer, composto por 1001 carruagens. As primeiras carruagens são ocupadas pelas classes altas, sendo que, escusado será dizer, as últimas carruagens estão repletas das gentes oriundas das classes mais baixas, onde a vida é desumana e as condições de higiene, de alimentação, de descanso e de sociabilização estão a níveis nefastos. Como se as pessoas que ocupam as últimas carruagens deste comboio tivessem que estar presas, numa horripilante prisão, para não morrer.

A história do primeiro livro começa quando o protagonista Proloff consegue escapar das últimas carruagens, juntando-se à atraente Adeline Belleau que embarca na sua luta. Entretanto são chamados pelo Coronel Krimson, o que os leva a uma longa caminhada pelas muitas carruagens de distância que os separam. Ao longo dessa caminhada, observam que há carruagens onde são produzidas frutas e vegetais frescos, carne, peixe e outros “luxos”, que eles achavam que estavam extintos. Isto, naturalmente, incrementa a sensação de injustiça e falta de igualdade que impera no comboio. E como o mesmo parece estar a perder velocidade, Krimson pede ao protagonista Proloff para o ajudar a fazer avançar os ocupantes das últimas carruagens para as carruagens seguintes, de forma a que possam desconectar-se dessas carruagens e ganhar velocidade. Claro que nem tudo é o que parece e as intenções de quem tem o poder, não estão muito preocupadas com a vida dos mais desprotegidos.


No segundo livro o ambiente é o mesmo da história seminal mas os protagonistas vão a bordo de um outro comboio. Neste caso, há equipas de exploradores que são enviadas ao exterior do comboio, com uns grossos fatos protetores, que nos lembram os fatos dos astronautas, para explorar o ambiente gélido que paira no planeta. O protagonista neste livro é Puig Vallès, que pertence a este grupo de exploradores mas que acaba a ser acusado de traição e colocado num pequeno avião para uma missão de reconhecimento suicida. Entretanto os acontecimentos fazem-no ser considerado pela população do comboio como herói e Puig acaba por ser admitido no Conselho que dita as ordens no comboio. É então feita uma revelação incrível ao protagonista – que, logicamente, não vou revelar. Além disso, é ainda detetado um sinal de rádio que capta música algures, o que faz os tripulantes do comboio acharem que há vida noutro sítio, para além do comboio onde vivem. Decidem então rumar em busca dessa música.

Convém dizer que o segundo livro não é exatamente uma continuação do primeiro volume pois a primeira história acaba por ficar concluída e fechada. Mas claro, o ambiente é o mesmo e a premissa de toda a humanidade a bordo de um comboio mantém-se. Não é necessário ler-se o segundo livro para se conhecer toda a história do primeiro volume, mas recomenda-se que, para se ler o segundo tomo, se tenha lido o primeiro volume para melhor entendimento de toda a história e ambiente que rodeia as personagens.

O que, a meu ver, esta saga tem de muito interessante é o conceito imaginado por Lob. Ao colocar toda a vida da humanidade dentro de um comboio, abriu espaço para a invenção de um novo mundo, adaptável às dimensões reduzidas de um veículo, mas com tudo aquilo que caracteriza o planeta em que vivemos. Todo o livro é uma enorme alegoria: estão cá as desigualdades sociais, a luta de classes, a força do clero, o governo propagandista, a utilização da forte presença militar, os segredos de estado, a especulação mediática, os "escapes" e sonhos oferecidos às classes baixas, e tudo aquilo que habitualmente caracteriza um Estado Totalitário. Se tivermos em conta a data da primeira publicação da obra, estávamos temporalmente mais próximos destas tendências políticas, com destaque para o clima de Guerra Fria que reinava nessa altura. E talvez por isso, seja uma narrativa que apela a algumas distopias célebres da literatura, tais como 1984, de George Orwell; Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley ou Nós, de Zamyatin. Os adeptos destas obras seguramente encontrarão em O Expresso do Amanhã, uma leitura de banda desenhada que lhes vai agradar muitíssimo.


Mas também a arte tem um papel muito importante nesta história. E em ambos os livros – embora de forma algo diferente- essa arte tem uma beleza própria que se coaduna perfeitamente com a história. No primeiro volume - lançado em 1982, relembro - o estilo de desenho de Rochette é mais clássico, a fazer lembrar algum do trabalho do mestre da banda desenhada Will Eisner. Desenhos realistas e expressivos, com a conceção das personagens a remeterem-nos para a aura cinzenta, triste e desolada que impera na própria narrativa de O Expresso do Amanhã. Nas histórias do segundo livro, lançadas quase 20 anos depois da história original, temos uma ilustração que, na minha opinião, ainda consegue melhorar o já excelente trabalho do livro anterior. Aqui, o ambiente ainda se torna mais sombrio e denso, com um estilo de ilustração menos realista e mais difuso do que o original. A utilização das sombras e dos tons de cinzento é verdadeiramente magnífica. Temos menos detalhe nas expressões das personagens mas mais emoção, teatralidade e força artística. O trabalho é empolgante em ambos os livros mas destaca-se ainda mais no segundo livro.

Até agora, tudo o que escrevi sobre O Expresso do Amanhã, parecem rosas mas há algo que me faz não adorar assim tanto este clássico da banda desenhada. E é facilmente explicável: se dividirmos esta obra em três vetores base que a compõem, encontraremos: 1) a componente gráfica, 2) a premissa da história (o conceito, o ambiente) e 3) a própria história. A narrativa em si. 


E se é verdade que a componente gráfica está muito bem conseguida e que a premissa deste mundo criado por Lob é verdadeiramente interessante e original, tenho que admitir que a própria narrativa podia ser bem melhor. As personagens – mesmo as principais - não são tão memoráveis assim, os diálogos por vezes são demasiado latos e pouco realistas e aquilo que vamos lendo não é tão inesquecível, com a demanda do protagonista a parecer "burocrática", até. No fundo, parece-me que um universo tão rico e original, ilustrado tão bem por Rochette, merecia, no fim de contas, uma história melhor. Que prendesse mais o leitor. O que é certo é que dei por mim, em determinadas vezes, algo sonolento e a fazer algum esforço para acompanhar a história. Parece-me que os esforços do autor para construir (bem) este mundo distópico ofuscaram a criação da própria narrativa. Se repararmos bem, aquilo que acontece no primeiro livro, por exemplo, é a mera transição das personagens principais de um extremo do comboio para o outro, sem que acontecimentos pertinentes – ou memoráveis - vão acontecendo ao longo do caminho. No segundo livro, Legrand também não faz muito melhor do que Lob. O que é uma pena. 

Passados anos, o que os leitores se lembrarão desta obra não será a história certamente, mas sim o conceito. É inegável, repito, a importância desta obra para o género da ficção científica na banda desenhada e também é verdade que a arte de Rochette dá a O Expresso do Amanhã uma tónica e um ambiente, mais que bem conseguidos. Mas a história em si, não consegue ser mais do que mediana. 

Não deixa, porém, de ser um livro que vale a pena conhecer. Especialmente, para os amantes de ficção científica – ou do filme e/ou série Snowpiercer


NOTA FINAL (1/10)
8.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Fichas técnicas
O Expresso do Amanhã I – Os Sobreviventes
Autores: Jacques Lob e Jean-Marc Rochette
Editora: Levoir
Páginas: 118, a preto e branco
Encadernamento: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2020


O Expresso do Amanhã II – O Explorador e A Travessia
Autores: Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette
Editora: Levoir
Páginas: 170, a preto e branco
Encadernamento: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2020

Sem comentários:

Enviar um comentário