quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Análise: Toutinegra



Toutinegra, de André Oliveira e Bernardo Majer

Toutinegra é uma banda desenhada publicada pela editora Polvo e oferece-nos uma história verdadeiramente madura, maravilhosamente escrita por André Oliveira e curiosamente ilustrada por Bernando Majer. E à qual os leitores portugueses de banda desenhada – e não só – deviam dar uma oportunidade. Certamente, a grande maioria desses leitores ficaria maravilhada com esta obra. 

A necessidade de pertença de alguém que, sem saber a sua origem, consegue, ainda assim, arriscar que não faz parte daquele lugar nem daquelas gentes, é o mote inicial com que Toutinegra nos brinda. E se, aparentemente, ao folhearmos desprendidamente o livro, ficamos com a ideia de que se trata de uma história sobre crianças, diria que, na verdade, após lermos o livro com atenção, percebemos que é uma história sobre adultos, que já foram crianças e que cujas vivências não mais os largaram. Não é, contudo, um livro saudosista no sentido positivo e alegre da palavra, que remete para os dias belos passados na infância. Sem querer revelar muito da trama aqui presente, diria que o tipo de saudosismo que emana desta obra é aquele referente à perda de algo bom na infância e a forma como isso nos molda e confina o modo de ser, na vida adulta. Não mais somos a mesma coisa depois de perdermos algo que fazia (tanto) parte de nós. Isto já foi dito muitas vezes, por muitas pessoas, em muitos livros, filmes e canções mas há formas e formas de o dizer e Toutinegra, dá-nos a sua própria visão. Profunda, triste mas que, no derradeiro final, deixa entrar uma luz de esperança. Uma redenção.

Toutinegra
reveste-se de uma sensibilidade que, infelizmente, não é tão comum assim em banda desenhada. Uma sensibilidade que nos toca lá no fundo, que nos tira o sorriso superficial que temos na cara, deixando-nos com um nó na garganta. André Oliveira é exímio no uso da palavra, dando-nos um texto simples e profundo, que nos faz pensar e refletir sobre a vida, sobre os sonhos, sobre as vivências passadas, as raízes, as memórias e a ausência de um tempo que já não volta a ser.

A história apresenta-nos duas crianças, Pedro e Adelaide que vivem em Moinho, uma isolada e desabitada aldeia do interior do país. São as únicas crianças que frequentam a escola e, também por isso, são amigos inseparáveis. Mas claro, mesmo estando confinadas a um local tão recôndito e particular, ambas têm origens e famílias muito diferentes. Pedro apenas tem mãe – Dona Luz, a mulher maluca da aldeia – e Adelaide, mesmo tendo um pai com grave doença, tem uma família dita mais normal e abastada. Pedro é como que o enigma, uma pergunta sem resposta, da qual apenas se pode especular. Já Adelaide é um milagre da vida – pois nasceu de pais já algo idosos. Ela é, portanto, uma luz para eles e para a própria aldeia onde vivem.

A história assume depois, uma dimensão do universo fantástico, com o aparecimento de uma criatura, com quem as personagens começam a esgrimir argumentos e questões sem resposta. Esta figura apresenta-se como que uma consciência carregada de negritude que as crianças começam a ganhar da vida que as rodeia.

O que é maravilhoso neste livro é a forma inteligente e sensível como André Oliveira nos embala, ao sabor e ritmo das suas palavras, construindo uma história que parece levar a um sítio, mas que, à medida que a vamos desvendando, nos leva a um outro caminho. Quiçá menos fantasioso, mas com uma violência emocional cortante. 

O estilo de ilustração aqui presente encaixa bem na narrativa, sendo bastante bem conseguido. Com um traço pueril e linear, Bernando Majer apresenta-se em grande estilo na banda desenhada portuguesa. E embora o seu estilo seja  naïf e infantil na ilustração, com as personagens a fazerem lembrar-me a saudosa série infantil televisiva de Tom Sawyer, o autor soube munir as suas ilustrações de um processo de colorização graciosa que em muito contribui para um resultado bonito de se observar. Diria até, que o seu desenho sem estas cores não seria tão cativante, nem as suas cores utilizadas num estilo de ilustração mais detalhado e desenvolvido, teriam, presumivelmente, um resultado tão agradável. O seu signature style, acaba mesmo por depender em muito das cores que são utilizadas de forma leve e bonita, através da aplicação de aguarelas em tons muito suaves. É um livro bonito e com uma identidade muito própria na parte das ilustrações. Talvez este tipo de ilustração não agrade a toda a gente mas, pelo menos para mim, funciona muito bem, quando aplicado à narrativa construída por André Oliveira.

Em termos de edição, a Polvo oferece-nos um bom produto, com uma (bonita) capa dura. A meu ver, talvez o tipo de papel brilhante que aqui foi utilizado não fosse o mais indicado. Olhando para a arte de Bernardo Majer e para o próprio cariz poético da obra, diria que um papel baço funcionaria melhor. Mas isso é um detalhe porque a edição da Polvo, repito, está bem conseguida.

Em conclusão e em poucas palavras: Toutinegra é uma obra fantástica que merece ser conhecida e que consolida, ainda mais, André Oliveira como um dos melhores argumentistas de banda desenhada em Portugal.


NOTA FINAL (1/10):
8.9


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Toutinegra
Autores: André Oliveira e Bernardo Majer
Editora: Polvo
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2019

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