E cá está ele! Depois de anos e anos em que exasperei por uma edição portuguesa de Sambre, eis que a Arte de Autor me fez a vontade - a mim e a tantos outros, estou certo, que se deslumbraram com os primeiros 4 tomos de uma maravilhosa série assinada por Yslaire.
Esses primeiros quatro volumes foram originalmente lançados por cá pelas extintas editoras Baleia Azul – que apenas editou o primeiro tomo – e Witloof que publicou os volumes 2, 3 e 4.
Agora, e conforme já aqui referi várias vezes, a Arte de Autor resgata esta série para deleite dos seus fãs. Sambre é composta por 9 álbuns (sendo que o último volume ainda não foi originalmente publicado) e a aposta da Arte de Autor começa por publicar os primeiros álbuns que se encontravam inéditos em Portugal até agora, ou seja, os volumes 5 e 6. A editora optou por esta mesma tática, tal como fez com a série Armazém Central.
Sei que é algo que incomoda alguns leitores pois queriam, compreensivelmente, começar a ler a série a partir do primeiro número. Sobre esta questão, e para dissipar dúvidas, posso dizer que questionei a editora, Vanda Rodrigues, e que a mesma me disse que esta forma de atuar se deve à preocupação da editora em ajustar tiragens face à resposta do mercado. Para que não se produzam livros a menos, nem a mais. Por mim, considero ser algo bastante aceitável. Até porque, tendo em conta o histórico da editora em terminar as séries que começa, creio que até os leitores mais céticos poderão contar com a integral publicação desta série. Além de que, convém não esquecer, a editora tem nos seus planos a edição do primeiro volume (tomos 1 e 2) já no primeiro semestre de 2023 e a publicação do segundo volume (tomos 3 e 4) até final do ano.
Ora, a leitura deste Sambre #5 e #6 fez-me pegar na série do princípio e reler tudo do primeiro ao sexto volume. E que bom isso foi!
Já aqui o disse – e volto a dizer – mas, de facto, Sambre está entre as minhas séries preferidas de banda desenhada. Talvez só atrás de Blacksad e da já referida Armazém Central. Estas três são, sem dúvida, as três séries que eu salvaria se a minha casa estivesse em chamas e eu só pudesse levar três séries comigo. A afirmação é subjetiva, claro. Tentando justificar o porquê desta minha paixão por Sambre, posso dizer que esta série me dá algo, que muito aprecio em banda desenhada, mas que não é assim tão comum: um romance de época onde o drama amoroso das personagens é trágico e impactante.
Sim, Sambre está impregnado de dramatismo e romance. Alguns acharão, possivelmente, que é romance a mais. Eu, no meu caso, adoro isto e até gostaria de o ver mais presente na banda desenhada. Pelo menos, naquela que é editada em Portugal. Sim, diria que livros como o recentíssimo Menina Baudelaire, do mesmo autor, ou A Vingança do conde Skarbek, de Sente e Rosinski, encaixam nesta vertente do drama de época desavergonhadamente romântico, mas, lá está, não são muitas as obras deste fôlego lançadas em Portugal. Até porque me parece que há espaço para a conquista de novos leitores (que normalmente não lêem bd) com este tipo de obras.
Ler os primeiros 6 tomos da série também me permitiu constatar que Sambre não é uma obra estanque entre volumes. É claro que acompanhamos uma história que, de um volume para outro, vai tendo continuidade. Todavia, posso dizer que há, para já, três ritmos e abordagens presentes na série: o primeiro volume; os volumes 2,3 e 4. E os volumes 5 e 6. No primeiro volume, talvez pela razão de Yslaire ter trabalhado conjuntamente com Balac no argumento, temos um ritmo deveras diferente. Quase rápido demais, diria. Em poucas páginas conhecemos as personagens, que marcarão toda a saga, e desenvolve-se – de forma algo abrupta, concedo – a enorme e Shakespeariana história de Bernard e Julie. Tudo acontece a um ritmo veloz. Depois, entre os tomos 2,3 e 4, há uma tentativa de dotar a série de uma maior ambiência política, já que a ação decorre durante o período da Segunda Revolução Francesa, na cidade de Paris, em 1848. Se a ação do primeiro tomo era rápida em demasia, a ação dos três volumes seguintes abranda de forma muito premente. Certos momentos são, quanto a mim, esticados um pouco em demasia pelo autor. Mas nestes tomos 5 e 6 a série volta a respirar melhor. O ritmo mantém-se lento – só mesmo o ritmo do primeiro tomo é que é acelerado – mas de uma forma mais coesa e pertinente. É dado tempo ao leitor – e às novas personagens – para melhor serem exploradas pela narrativa da história.
Diria que é, especificamente, nestes quinto e sexto volumes da série, que o autor Yslaire melhor doseia a história, em termos de ritmo e cadência de enredo.
Sintetizando a história de Sambre num único parágrafo, esta série conta-nos a história da família Sambre e da maldição que, aparentemente, parece acontecer aos homens da família que, invariavelmente, se apaixonam por mulheres de olhos vermelhos. Ora, Hugo Sambre, o pai do protagonista Bernard, até começou por escrever o livro A Guerra dos Olhos onde separava a proveniência social e relevância do caráter de uma pessoa com base numa característica física – já viram isto em algum lado? No caso desta saga, para Hugo Sambre, aqueles que nasceram com olhos vermelhos são a escória da sociedade e não deverão, de forma alguma, ter contactos com a aristocracia, na qual se insere a família Sambre. Ora, como não podia deixar de ser, o jovem Bernardo apaixona-se, de forma fulminante, pela bela Julie que - adivinhem lá! - é portadora de uns belos e sedutores olhos vermelhos. A partir daqui, este romance proibido depressa dá lugar a uma dor dilacerante para ambos os amantes e as suas vidas acabam por percorrer caminhos trágicos, que parecem feitos para os afastar, mas que, de uma forma ou de outra, acabam, caprichosamente, por aproximá-los. É um amor de perdição à antiga, daquelas histórias de amor que, em vez de deixarem os amantes próximos do céu, deixam-nos próximos do inferno.
Depois de todos os eventos decorridos no final do 4º livro – e que tentarei não divulgar aqui, Julie consegue sobreviver. Embora convenhamos que o facto de ter sido condenada à pena de morte não abone muito a favor da sua felicidade. Por ironia do destino, e mesmo que Julie anseie pela sua própria morte, as circunstâncias do momento retiram o seu pescoço da guilhotina e a bela mulher é transportada para a Guiana Francesa, com o objetivo de passar a viver nessa Colónia francesa, longe do fulgor cosmopolita parisiense. Enquanto isto, o filho de Julie e de Bernard, Bernard-Marie, é educado em Bastide, pela sua tia Sarah, enquanto lhe é dada uma educação baseada no intuito de negar a mãe do rapaz e prestar o devido culto ao pai de Bernard-Marie.
Enquanto é transportada, juntamente com outras reclusas, para a Guiana Francesa, há um violento naufrágio que leva Julie a uma pequena ilha da Irlanda. A partir deste ponto, o irritante e persistente comissário Guizot - que é primo dos Sambre - não desiste de procurar Julie pois é ela, segundo se crê, a causa da tragédia da família Sambre. Julie refugia-se nesta pequena ilha e encontra algumas novas personagens marcantes, mas a presença de Bernard, bem como a busca pelo seu filho Bernard-Marie, nunca deixa Julie encontrar a redenção e paz de espírito que almeja.
Bem, se a história nos deixa cativados e mergulhados neste enredo onde coabitam as personagens, Sambre também é uma série assinalável pela sua beleza visual. Os desenhos com que Yslaire nos brinda são verdadeiras obras de arte! Há uma poesia, uma sensualidade, uma beleza nestas ilustrações que, só por si, já valeriam a compra de toda a série. Não só as personagens apresentam um carisma tal cuja presença perdura na nossa memória, assim que mergulhamos em Sambre, como os cenários - quer interiores, quer exteriores, quer rurais, quer citadinos - apresentam uma beleza eloquente. Um verdadeiro deleite para os olhos. Poesia em forma de desenho. Teatralidade em forma de pranchas de banda desenhada.
A paleta de cores também é mais outra das "armas" desta série. Com um belo uso do preto e das sombras, que ajudam a que haja um estilo quase gótico, muitas vezes sombrio, nos ambientes criados, é também na utilização do vermelho vivo e nos ocres que o autor consegue demarcar-se de restantes obras. O seu ponto de originalidade, vá. Como Frank Miller fez no seu Sin City, mas com as devidas – e demarcadas – distâncias, claro está.
Mais do que um ilustrador de primeira linha em termos técnicos, Yslaire é um criador de imagens acústicas que se alojam na nossa memória. E diga-se que este volume está cheio dessas imagens emblemáticas: a espera de Julie para a sua vez na guilhotina, o embarque para o navio com destino à Guiana Francesa, Rosine a empurrar Bernard-Marie no baloiço, a visão do purgatório, o naufrágio sob a luz vermelha do farol, as cenas do funeral… meus caros, são imagens potentes, que nos marcam, e que são ilustradas com um virtuosismo singular. Maravilhoso da primeira à última página!
E, já agora, permitam-me dizer algo que me surpreendeu pela positiva. O próprio Yslaire parece ter melhorado os seus dotes de desenho ao longo da série. Os primeiros volumes de Sambre já tinham muita beleza, sim, mas, quando se lê a série de forma seguida, como eu fiz, é bastante detetável que a arte melhorou substancialmente. Os primeiros desenhos já eram marcantes e belos, mas não eram executados com tanta mestria técnica.
Outra das coisas que muito me agrada nesta série são as fantásticas capas, com belas ilustrações e com o habitual fundo a vermelho. Por acaso, até acho que a capa escolhida pela Arte de Autor para esta edição – que pertence ao sexto tomo – sendo bonita, até nem é das capas que melhor exemplifica o que acabo de dizer e talvez a opção pela capa do quinto volume - que aqui aparece na contracapa - tivesse sido mais feliz. Mas será uma questão de gosto. A verdade é que todas as outras capas de todos os outros volumes são, a meu ver, lindas.
A edição da Arte de Autor apresenta ótima qualidade. O livro tem capa dura, com textura aveludada, e com o título da série a verniz. O papel é brilhante e tem uma boa espessura, enquanto que a impressão e encadernação do livro, apresentam boa qualidade. A opção pela edição da série em álbuns duplos parece-me ajustada e bem-vinda.
Em suma, Sambre é uma banda desenhada de qualidade superior, magistralmente ilustrada por Yslaire, que nos oferece uma história que retrata um amor impossível e condenável, bem ao jeito dos grandes clássicos da literatura. Impactante, tumultuosa e incomensuravelmente bela, esta é uma banda desenhada que todos devem ler!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Sambre #5 e #6 - Maldito seja o fruto do seu ventre... | O mar visto do Purgatório…
Autor: Yslaire
Editora: Arte de Autor
Páginas: 104, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 cm
Lançamento: Janeiro de 2023
Vou adquirir esta obra e já agora excelente análise, só não li a parte da história para não receber spoiler :-) Quanto ao facto de a Arte de Autor começar pelo fim eu entendo que é uma estratégia de marketing, alias no caso do Armazem Central, acabei por comprar toda a série (ainda não tive tempo para ler :-( mas irei fazê-lo obviamente).
ResponderEliminarCaro Arpricardo, muito obrigado pelo comentário e pelas palavras! Tento sempre não dar spoilers no que escrevo. E sim, Armazém Central é uma série linda. Tal como é Sambre.
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