Se quando anunciei o lançamento desta obra há umas semanas, referi que Monstros, de Barry Windsor-Smith, publicado em Portugal pela G. Floy Studio, se assume como o "peso-pesado" da editora em termos de obras editadas em 2022, é porque, mesmo sem ainda ter ligo a obra, já conhecia bem a sua reputação e, até, grande parte das suas ilustrações. Por isso, eu já “namorava” este livro, na sua versão em inglês, há vários meses, só não tendo cedido à compra dessa edição quando soube que a obra seria editada por cá.
E, meus amigos leitores, este é um daqueles livros que podem comprar “às cegas” pois, garanto-vos eu, facilmente vos deixará maravilhados!
Barry Windsor-Smith demorou 37 anos a fazer esta obra. Não foi um ano, nem dois, nem três. Nem sequer 10 anos. Este livro demorou exatamente a minha idade desde a conceção até ao produto final! Estávamos em 1984 quando o autor planeou fazer uma banda desenhada sobre o célebre Hulk, da Marvel. O projeto acabou por não vingar – por motivos vários, estou certo – mas Windsor-Smith não desistiu da ideia e continuou, ao longo dos anos, a planear, a desenhar, a escrever esta obra-prima da banda desenhada mundial.
Custa a acreditar que a conceção de um livro de banda desenhada demore tanto tempo, mas posso dizer-vos que o resultado mais do que valeu a pena e é notória a forma como, dá para perceber, cada vinheta, cada nuance da história, cada pormenor, teve tempo de ser maturado. O intuito? É claro! Fazer a melhor obra possível que Windsor-Smith conseguisse fazer. E, claramente, e mesmo tendo em conta o enorme contributo do autor para a banda desenhada, é este Monstros que o define e eterniza enquanto autor. A sua obra-prima.
Monstros tem um enredo bastante intrincado que nos dá muita coisa. Um pouco de história e política, até ao tempo da Segunda Guerra Mundial e respetivas atividades macabras dos Nazis; um pouco de drama familiar; um pouco de ficção científica e, até mesmo, um pouco de uma realidade algo metafísica. Dito assim, pode parecer “too much”, mas devo dizer que o autor conseguiu embrulhar muito bem todas estes subgéneros numa só obra que acaba por ser coesa, muito bem construída e nada forçada. Quer dizer, só talvez na parte mais metafísica deste enorme conto é que poderei considerar o intuito do autor como mais forçado. Mas já lá irei.
A história é passada em dois tempos. O tempo presente, nos anos sessenta, quando o protagonista Bobby Bailey é um jovem adulto e o tempo passado, vinte anos antes, quando Bobby é apenas uma criança.
Quando, em 1964, Bobby se alista nas forças armadas americanas, está longe de imaginar que vai ser introduzido, enquanto cobaia, no projeto Prometheus. Este projeto é baseado nos estudos e desenvolvimentos levados a cabo pelos nazis 20 anos antes, e consiste na alteração genética dos humanos, com o objetivo de os tornar “super-humanos”. Super-soldados, portanto. Isto parece-vos familiar? E é. O que já não será tão familiar é toda a envolvente, carregada de mistério, que deixa o leitor sem respostas, à medida que vai avançando na leitura e conhecendo as personagens que habitam esta história.
Conhecemos o sargento McFarland e a sua família bem como, mais à frente, começamos a conhecer o passado de Bobby Bailey e de como ele e a sua mãe foram vítimas de violência física e psicológica por parte do seu pai. O seu pai que era um homem carinhoso e bondoso antes de ser convocado para a Segunda Guerra Mundial. Quando regressa a casa, volta outra pessoa, completamente modificada. O que terá acontecido no processo? Barry Windsor-Smith vai levantando o véu com muita subtileza, à medida que nos afunda, sem volta a dar, numa trama profunda que nos leva a não "desgrudarmos" os olhos das páginas da obra.
O autor revela-se, nesta obra, enquanto argumentista de exceção. Constrói a história em várias camadas que, mesmo parecendo independentes ao início, se unem todas ao longo da narrativa, deixando-nos de “papo cheio” em relação a uma boa história.
Outra coisa que muito gostei foi de que as tais 360 páginas permitem que a história seja convenientemente desenvolvida. Se esta história se poderia contar em 120/150 páginas? Talvez. Mas aí não teríamos certamente o fantástico desenvolvimento - com carinho, com cuidado - que permite que cada momento, cada situação, cada diálogo, seja convenientemente explanado de forma a criar momentos inesquecíveis. E sim, este é um livro cheio de momentos inesquecíveis. Cenas fortes que nos marcam já bem depois de finalizada a leitura. Estão a ver aquele filme que tem tantas cenas que ficam na nossa memória? Este é um livro que tem esse tipo de momentos.
E, desses momentos, os que mais me marcaram foram, sem sombra de dúvida, os dramas familiares que são vividos pelas personagens que aqui desfilam. Verdadeiramente impactantes e, quase sempre, tristes, com o poder de nos porem a refletir sobre o sentido da vida.
No final as interpretações são várias. Quem são, afinal de contas, os Monstros? As pessoas que foram geneticamente modificadas de tal forma que perdem as suas componentes humanas e passam a ser monstros hediondos? Ou estaremos a falar de homens abusadores? Que maltratam as suas próprias famílias e que são consumidos pelos seus próprios demónios? Os Homens que criam a guerra que traz consigo a criação de seres povoados por monstros mentais que os atormentam até ao fim das suas vidas? Os nazis, que tinham planos científicos verdadeiramente maquiavélicos? Ou, no final de tudo isto, os verdadeiros monstros somos todos nós enquanto sociedade que, de uma forma ou de outra, somos, simultaneamente, os culpados e as vítimas dos nossos próprios atos?
O autor explora todos os tipos de dor: a dor sentimental nas relações humanas, sejam elas relações entre pai e filho, entre marido e mulher, entre amantes que não o podem ser, entre irmãos e entre família. Mas, igualmente, a dor implementada pelo Estado – pelo todo – no indivíduo – no uno. E como é desigual essa mesma relação. Ou, também, e também, a dor de, aos olhos de todos os outros, uma pessoa não passar de um monstro e, por essa diferença do foro físico apenas, ser excluído e ostracizado. Quantas minorias da nossa sociedade não verão em Bobby Bailey um espelho para as suas amarguras da vida real? Há ainda a dor histórico-política, não só dos crimes horripilantes perpetrados pelos alemães na Segunda Guerra Mundial, mas também pelos americanos que, vendendo o seu sonho americano de justiça e de "luta pelo bem", são, também eles, autênticos perseguidores de qualquer coisa que se oponha ao seu próprio ideal.
Enfim, poderia estar aqui a escrever sobre Monstros durante horas. E talvez seja essa a magia desta obra magnânima: a de nos pôr a pensar, a de nos fazer questionar, a de nos fazer refletir. Sempre com uma ligeira amargura na mente. Mas também a vida é, tantas, tantas vezes, amarga, não?
O ponto mais relevante será este: no final da leitura deste livro ganhamos, certamente, algo. Mesmo sendo uma leitura densa e pesada que pressupõe um certo estado de espírito para que seja bem absorvida. E nesse ponto até me lembrou, com as devidas diferenças, o igualmente genial O Relatório de Brodeck, de Manu Larcenet.
Não querendo dar mais pistas sobre a história do livro, gostaria apenas de dizer que acho que o argumento viveria bem sem a questão metafísica. Essa questão é dada pelo Sargento McFarland e a sua filha. Compreendo que sabendo o autor, de antemão, que esta seria a obra da sua vida, tenha tentado dar tudo de si (e deu mesmo!) na execução da mesma. Tal como quando se está a fazer um cozinhado e se tenta adicionar o máximo de coisas boas com o propósito de um bom resultado final. Ainda assim, é a única coisa mais forçada da história, quanto a mim. Não a estraga, nem nada que se pareça, e até é nesse ponto que, no final, o livro encontra o silver lining possível, mas, na minha opinião, está um pouco a mais. Entre a ficção científica, os eventos históricos, os crimes, as relações humanas e familiares e o lado metafísico… considero este último como a parte menos forte da obra. Mas é uma questão subjetiva, reconheço.
Mas se até aqui, e o texto já vai longo, ainda não falei sobre as ilustrações desta obra não é porque as mesmas não estejam ao nível da fantástica história e narrativa de Monstros. Porque estão.
Os desenhos a preto e branco, com um traço realista que vai beber à banda desenhada mais clássica as suas influências, mas que, paralelamente, também consegue ser moderno nas opções narrativas que nos dá, é verdadeiramente sublime. Fantástico! Se por vezes se diz que “aqueles desenhos são demasiadamente bons para aquele argumento” ou que “aquele argumento é demasiadamente bom para aqueles desenhos”, neste caso, desenhos e argumento fazem um casamento perfeito.
De resto, o domínio técnico do autor é bastante conhecido pelos leitores de banda desenhada e posso dizer que está no máximo das suas capacidades. Mesmo que se possa considerar que alguns desenhos, por vezes, estão mais simplistas do que o super-realismo que o autor revelou em trabalhos anteriores, considero que é um estilo de desenho mais evoluído e maturado. Talvez menos comercial mas, sem dúvida, mais gourmet, por assim dizer. E verdadeiramente irrepreensível. Momentos de ação, personagens, veículos, cenários, ambientes, o jogo de luz e sombra… tudo está desenhado com virtuosismo, detalhe e precisão. Um autêntico banquete para os olhos!
Sendo uma obra a preto e branco, é uma daquelas que sabe alimentar-se disso mesmo, criando momentos verdadeiramente belos que exploram bem a tónica do preto e do branco. Apreciei especialmente a técnica com tramas que enriquece os desenhos que já de si eram ricos.
A edição da G. Floy Studio, num coeso objeto-livro com mais de 360 páginas, é verdadeiramente impressionante, também! Com capa dura, papel de qualidade superior e ótimos acabamentos na encadernação, é um livro que impõe respeito. Nada a apontar!
Devo dizer que considero a capa deste livro demasiado redutora e, por ventura, até dissuadora para aquilo que o livro nos oferece. É que, convenhamos, o título “Monstros” e aquela ilustração de Bobby Bailey enquanto monstro, rementem-nos automaticamente para o horror, o terror, os “zombies”, certo? Mas o livro é muito, muito, muito mais do que isso. Há tanto mais nesta história e nestas ilustrações do que a ilustração da capa. É por isso que, mesmo não considerando esta capa necessariamente como má, considero-a como extremamente redutora. Se fosse eu o editor original da obra, teria sugerido ao autor uma capa diferente. Mais em linha com toda a história da obra. De qualquer maneira, convém realçar que este meu comentário não é direcionado à G. Floy Studio, que simplesmente replicou a capa da versão americana da obra e que, por esse motivo, não merece qualquer apontamento negativo. É um comentário à edição original, portanto.
Em suma, posso dizer que embora eu goste muito de certas obras que a G. Floy Studio já editou por cá (Criminal, Roughneck, Wolverine: Origem, Southern Bastards, The Fade Out, Dois Irmãos, ou Afirma Pereira serão apenas alguns exemplos) torna-se fácil para mim considerar Monstros como a melhor, mais ambiciosa, mais marcante e mais espetacular banda desenhada de todo o catálogo da editora! Um livro que roça a perfeição e que se assume como um dos melhores álbuns do ano! Façam um favor a vós mesmos e corram para comprá-lo!
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Monstros
Autor: Barry Windsor-Smith
Editora: G. Floy Studio Portugal
Páginas: 368, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2022
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