segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Análise: Dois Irmãos




Dois Irmãos, de Fábio Moon e Gabriel Bá

Dois Irmãos é uma obra-prima da banda desenhada que deve figurar em qualquer (boa) coleção de banda desenhada.

Vamos por partes.

Este livro é baseado no romance com o mesmo nome de Milton Hatoum. E, embora conhecesse a importância da obra para a literatura contemporânea brasileira, confesso que ainda não tinha tido oportunidade de a ler. Portanto, posso dizer que não sabia muito mais acerca deste romance, além do facto de se passar no Brasil e de retratar a rivalidade de dois irmãos. Portanto, e felizmente, diria, iniciei a leitura desta obra em estado cru, sem grande conhecimento de causa.

A história, essa, relata-nos a relação difícil e conturbada entre dois irmãos de um família com ascendência no Líbano e que vive em Manaus, Brasil. Embora os irmãos gémeos Omar e Yaqub sejam fisicamente idênticos, não poderiam ser mais diferentes um do outro. E, desde crianças, a rivalidade entre ambos vai crescendo. A meio da sua infância, os gémeos são separados pelos pais, sendo Yaqub enviado para o Líbano, onde passa 5 anos da sua vida. Quando regressa ao Brasil, parece estar alienado do país e da sua família. A trama vai então desenrolando as suas restantes vidas, à medida que os gémeos entram na idade adulta. À relação conturbada dos irmãos, junta-se o amor possessivo da sua mãe, Zana, por Omar e o ódio crescente do pai, Halim, pelo mesmo filho.

A maneira como a história está contada é sublime. A narrativa avança no tempo para a frente e para trás, sempre centrada em nos passar, apenas e só, os elementos que interessam ao narrador, Nael, dar-nos naquele preciso momento da narrativa. É por isso que voltamos por vezes aos mesmos acontecimentos para aprofundar certos elementos que não nos foram revelados, propositadamente, na primeira vez em que foram abordados. Dois Irmãos é um bom exemplo de como, muitas vezes, a maneira como se conta uma história faz toda a diferença para que a mesma vá fazendo crescer dentro de nós, leitores, um enorme desejo de acompanhá-la até ao seu derradeiro final. E embora esta análise seja ao livro de banda desenhada de Fábio Moon e Gabriel Bá, não consigo não destacar e não prestar o devido reconhecimento à maneira sobejamente maravilhosa como a história é idealizada e construída por Milton Hatoum.

Mas é claro que o trabalho dos, também irmãos, Fábio Moon e Gabriel Bá (dos quais fiquei fã desde que li o fantástico Day Tripper, publicado em Portugal pela Levoir) merece as devidas vénias. A opção por preto e branco, com um jogo de luz e sombras audaz, com vinhetas lindíssimas, especialmente as dos cenários que habitam harmoniosamente à volta das personagens, é um mimo para os olhos do leitor. As personagens são simplistas em termos de concepção de desenho, mas acabam por funcionar bem, com a ambiência de toda a obra. E mesmo tratando-se da história de dois gémeos, ainda por cima, sem cores para além do preto e branco, nunca temos dificuldade em perceber que personagem é qual, devido, essencialmente, à madeixa e cicatriz que Yaqub ostenta.

Outra coisa onde acho que os autores desta banda desenhada estiveram muito bem, foi no espaço e tempo, através do número de páginas da obra (232) e através da própria planificação das mesmas, que contribuem grandemente para um bom desenvolvimento da história e das personagens. Os autores poderiam perfeitamente ter feito esta história em 46 páginas – era possível, pelo menos. No entanto, a meu ver, essa opção teria sido um claro erro, pois a história principal ficaria muito mais concentrada mas o leitor não teria a possibilidade de explanar tão bem o desenvolvimento natural de cada personagem, as suas aspirações, as suas frustrações. E essa parece-me ter sido uma aposta de mestre, por parte de Moon e Bá. É, aliás essa, a grande razão que faz com que este livro seja um livro adulto, sério e maduro. Não é superficial na abordagem às personagens. Vai mais fundo, faz-nos pensar, faz-nos lamentar que certas coisas na vida aconteçam da forma como acontecem. É uma obra-prima. Um livro que me remeteu várias vezes mais para autores conceituados da literatura - Eça de Queiroz, Mario Vargas Llosa ou William Shakespeare poderiam ser exemplos – do que para autores de banda desenhada.

Ainda só vamos no primeiro trimestre de 2020 mas já me atrevo a dizer que este será um dos melhores livros de banda desenhada que lerei este ano – embora Dois Irmãos até tenha sido lançado ainda no último trimestre de 2019.

Uma nota ainda para a excelente edição da G. Floy. Este é um livro com uma espessa capa dura, e o papel aqui apresentado tem uma boa qualidade e espessura. Portanto, é justo dizer que foi dado o devido tratamento a esta obra de qualidade superior. 

Apenas tenho um reparo a fazer: por vezes, pareceu-me estar a ler um livro em português de Portugal e noutras vezes pareceu-me que estava escrito em português do Brasil. Nada contra que se tenha optado por lançar o livro em português do Brasil pois, afinal de contas, a obra é brasileira e qualquer português está apto a ler em português do Brasil. Só não gostei é que houvesse uma dualidade de critérios. Não é gravíssimo, mas chateia um bocado.

De qualquer forma, parabéns à G Floy pela aposta de fulgor neste Dois Irmãos. A par de Fade Out, Criminal, Afirma Pereira ou a viciante e magnífica série Southern Bastards, Dois Irmãos está entre o melhor que a G Floy já lançou.



NOTA FINAL (1/10):

9.0



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Ficha Técnica
Dois Irmãos
Autores: Fábio Moon e Gabriel Bá
Editora: G. Floy
Páginas: 232, a preto e branco
Encadernação: Capa dura

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