sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Análise: Nocturno



Análise: Nocturno, de Tony Sandoval

A primeira vez que agarrei num trabalho de Tony Sandoval, o Serpentes de Água, fiquei meio que espantado e maravilhado. Era algo  de novo na banda desenhada. Na verdade, embora o fosse, nem parecia bem “banda desenhada”. Parecia mais um livro de ilustrações poéticas singelamente ligadas entre si, para contar uma história. O que, note-se, pode por si só, ser uma definição para a própria banda desenhada. É claro que aquilo que Sandoval faz é banda desenhada, mas é algo que, aos meus olhos, é tão diferente ou original, que parece criar um próprio género - poesia em banda desenhada, talvez? E este facto de se conseguir ter uma assinatura visual tão própria, é dos melhores elogios que poderemos dar a um criador de banda desenhada, estou certo.

Rapidamente, fiquei fã do autor e tenho acompanhado aquilo que a Kingpin tão diligentemente vai publicando no mercado português.

No caso concreto, Nocturno conta-nos a história de Seck, um músico de heavy metal, que continua muito afetado pela presença (meta)física do seu falecido pai e pelos demónios pessoais que daí advêm. Conhece Karen, uma jornalista musical que depressa se apaixona pela banda de Seck e por ele mesmo. A partir daqui há alguns eventos que condicionam a relação de ambos. 

A componente gráfica de Nocturno – ou de qualquer trabalho de Sandoval, diga-se - é muito forte. “Impressionante” é um bom adjetivo para descrever o seu tipo de desenho, que combina vários rabiscos salpicados de suaves tintas em aguarela, com mestria. É de realçar que há vários estilos e técnicas diferentes aplicados ao longo desta obra. O que, por um lado contribui para a afirmação de Sandoval enquanto ilustrador virtuoso em vários tipos de arte, mas que, por outro lado, retira alguma da unidade gráfica à obra. Por vezes, parece que certos desenhos ficam aquém uns dos outros. Numas ilustrações fica a ideia de que o autor depositou ali toda a sua alma e magia, e noutros, parece que não se demorou mais do que 5 minutos. Outro problema com que me deparei em Nocturno é que o facto das personagens terem um aspeto andrógeno, faz com que, por vezes, seja difícil perceber se aquela personagem é do género masculino ou feminino, o que se torna algo difuso para a fluidez narrativa, especialmente no início da obra. 

Todavia, quando Sandoval se esmera, a sua arte é soberba e com uma enorme força gráfica que nos permite mergulhar no universo sombrio e gótico do autor, com personagens misteriosas e atordoadas que nos remetem – com as devidas diferenças - para os mundos gráficos de Tim Burton. De facto,  este Nocturno acaba por ser uma obra bastante contemplativa, que nos faz ficar a observar demoradamente as ilustrações mais majestosas. 

Narrativamente, é uma obra romântica que assenta no universo da música e das bandas de rock ou heavy metal, sendo carregado por uma forte violência entre personagens. E depois, há a parte do sobrenatural, dos demónios, onde se desenrola grande parte da narrativa. Nem sempre o paralelismo metafórico entre o que é real e irreal, foi bem conseguido. Por vezes, parece que a história se encaminha para ir mais fundo, para aprofundar algo mais, mas fica-se por aí. Pela ameaça.

E a verdade é que, ao contrário do Serpentes de Água, que me pareceu sempre muito bem interligado entre si em termos de narrativa, este Nocturno pareceu-me perdido na própria narrativa criada. Não se foca totalmente na componente musical da história, não se foca na relação amorosa, não se foca no sobrenatural. Pisca o olho a todas estas coisas mas sempre de forma algo superficial. O que é uma pena. Por vezes, parece ser um manto de retalhos narrativos em vez de uma história com princípio, meio e fim, deixando no ar a ideia de que Sandoval pensou os desenhos e só depois pensou a história.

Com tudo isto dito, a verdade é que embarcar em Nocturno é uma viagem onírica que todos nós, amantes de banda desenhada, devemos fazer. Sandoval é um mestre em criar imagens que nos ficam retidas na memória visual. Não é um livro perfeito em termos de história, mas é uma viagem aconselhável.

Quanto à edição da Kingpin está muito bem conseguida. Um bom papel e uma capa dura fazem deste Nocturno um objeto apetecível. Além de que os extras aqui presentes, em que Sandoval explica as peripécias pelas quais a obra foi passando até que fosse finalmente finalizada, são uma mais valia para melhor valorizarmos a obra. 

NOTA FINAL (1/10):
8.0

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Ficha Técnica
Nocturno
Autor: Tony Sandoval
Editora: Kingpin
Páginas: 240, a cores
Encadernação: Capa dura

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