Por vezes acontecem destas coisas. Séries de banda desenhada que têm arranques lentos ou que não cativam muito à primeira, mas depois, limando algumas arestas, nos conseguem conquistar. O Guardião, da autoria de Boucq e Sente, é um bom exemplo dessa situação.
O tomo 1, O Anjo de Malta, serviu para nos apresentar a personagem. O arranque foi lento, mas promissor. Contudo, o tomo 2, Fim de Semana em Davos, levou-nos a uma certa conspiração político-económica - quase burocrática! - que perdeu qualquer que fosse o ímpeto inicial da série. Na verdade, e olhando em retrospetiva para esse tomo 2, quase que sou levado a crer que o argumentista, Yves Sente, não sabia bem para onde ir e perdeu-se numa história carregada de "palha" que se afasta do curso narrativo seguinte.
Mas tenho boas notícias para vós, leitores! O Guardião consegue ser uma boa série especificamente a partir do terceiro tomo. E, com efeito, como a história só começa a ser verdadeiramente bem explorada a partir do tomo 3, e com a conclusão no tomo 5, acho que é justo considerar que os volumes 3, 4 e 5, Fantasmas em Porto Cervo, A Persistência do Passado e A Incubadora de Satanás, respetivamente, formam, por si só, uma história. Não será necessário ler os tomos 1 e 2 para bem compreender esta história.
A série conta-nos a história de Vince, um suposto padre que trabalha como agente secreto ao serviço do Vaticano. Uma espécie de 007 ao serviço de sua Santidade. E nestes 3 livros que são aqui analisados como um só, pois têm a narrativa forte e eficazmente interligada entre si, a história vai-se focar muito mais no protagonista Vince e no seu passado. Bem como no seu suposto irmão gémeo. E em muitas mais coisas, diga-se!
Embora a operação da "Ordem da Renovação do Templo" tenha fracassado no segundo tomo da série, Fim de Semana em Davos, essa mesma organização maléfica prepara uma retaliação perante o Vaticano. Mas, quando avistados por um padre a bordo de um iate, os líderes da Organização terão que medir forças com Vince que procura, mais uma vez, destabilizar os planos malvados da Organização. Nisto, Vince acaba por descobrir que esta Organização influente tem uma forte ligação aos nazis que se refugiaram em países remotos, após o término da Segunda Guerra Mundial. Aparece então o tal irmão gémeo que Vince julgava morto, desde os tempos em que era uma criança no Bronx de Nova Iorque, e que agora está ao serviço dos rivais do Vaticano e de Vince. Surge ainda uma curiosa dupla formada por uma mulher punk e um velho que procuram aniquilar os antigos nazis que, por esta altura, não passam de idosos, alheados do seu próprio passado, a gozar a sua velhice.
Parece muita coisa para digerir? E é, na verdade. Citando a velha máxima “less is more” devo dizer que talvez me pareça que a história tenha demasiadas ramificações e realidades – o passado em Nova Iorque dos irmãos, os nazis, os padres, a conspiração da Ordem, etc. Talvez se tirássemos uma destas coisas da equação, a história – e as personagens – pudessem ser enriquecidas por Yves Sente. No entanto, também há que ser justo e admitir que fiquei bastante “agarrado” à história. Incrível como nos primeiros dois tomos as ideias do argumentista para esta série me pareceram algo desinspiradas e “batidas”, mas aqui, nestes 3 últimos tomos, as suas ideias deram origem a uma história intrincada, violenta, com ação e mistério, e que, mesmo sendo algo rocambolesca, por vezes, consegue ser impactante e transformar O Guardião numa melhor série do que, inicialmente, aparentava ser. Mesmo não sendo perfeita em termos de argumento, estes três álbuns são tão melhores do que os dois álbuns anteriores!
Quanto às ilustrações do fantástico ilustrador François Boucq, posso dizer que o seu trabalho é sempre maravilhoso de se observar. O seu traço, cheio de personalidade, está aqui bem presente e a sua capacidade técnica para a boa ilustração de cenas de ação mantém-se impecável. Por vezes, senti que o autor tinha feito alguns desenhos mais à pressa e onde os detalhes eram menos presentes. Mesmo assim, este é um daqueles autores que, mesmo quando não está inspirado a 100%, o seu trabalho continua a ser, não obstante, acima da média e maravilhoso de se absorver.
Tal como escrevi na análise que fiz aos volumes 1 e 2 desta série, “as ilustrações de Boucq primeiro "estranham-se" e depois "entranham-se". O nome do autor é já uma garantia de qualidade. Se me chegar às mãos um livro em que Boucq assina as ilustrações, já posso dar por garantido que, nesse cômputo, será um bom livro. E em O Guardião, não há exceções, com o autor a apresentar um estilo mais clássico na ilustração do que noutras obras como Bouncer ou o fantástico, New York Cannibals, recentemente publicado pela Ala dos Livros. O uso de planos de câmara é bom e a aplicação de cores também está bem conseguida.”
Relativamente à edição destes três livros, a Gradiva mantém o nível de qualidade registado nos primeiros dois volumes da série: capa dura envernizada, bom papel com brilho, boa encadernação e boa impressão.
Mas mais que falar no objeto-livro, sinto-me na necessidade de falar no fantástico e inédito (?) comprometimento da editora nas séries de banda desenhada em que tem apostado nos últimos tempos. Mesmo sendo verdade que entre a publicação do segundo e do terceiro volumes de O Guardião tenha passado um ano, há que dá os devidos louvores à editora por ter editado os últimos 3 volumes em apenas 4(!) meses. Ou seja, entre janeiro e abril!
Isto traz duas consequências boas que não me canso de referir: por um lado, quem está a acompanhar a série pode ter uma leitura mais intensa, sem ter que esperar muito tempo para poder continuar a história. Por outro lado, e talvez ainda mais importante que a primeira consequência, isto faz com que a editora – entre outras editoras portuguesas que nos últimos anos têm começado e terminado séries – ganhe a confiança dos leitores portugueses. Quantos de nós, no passado, decidimos não apostar em séries com receio de que as mesmas fossem deixadas a meio? Cada vez mais, os leitores portugueses podem sentir-se confiantes para começar uma série, pois é cada vez mais frequente e expectável que a mesma possa ser publicada na íntegra. Hoje em dia é, portanto, mais seguro apostar nas edições portuguesas, em detrimento das edições originais estrangeiras. Há uma ou outra exceção em que as séries são abandonadas a meio – como Gus, da própria Gradiva, por exemplo – mas têm sido casos singulares.
Atualmente, a regra é que as editoras portuguesas comecem e terminem as séries em que apostam. E a Gradiva termina aqui mais uma série. Bem, na verdade, O Guardião parece não estar totalmente terminado e os autores poderão voltar a esta série, para um novo ciclo. Mas, por agora, a edição portuguesa acompanha a edição original francesa. Portanto, aproveito este espaço para dar os meus parabéns à Gradiva.
Portanto, em suma, O Guardião até pode ter começado com dois volumes um bocado “sem sal”, mas é a partir do número 3 que a série finalmente entra nos eixos. O argumento até podia ser mais percetível mas o que é certo é que a história nos prende como nunca antes o tinha feito. Quanto aos desenhos de Boucq, o autor não cessa de nos oferecer belas ilustrações. E, claro, é sempre bom ver mais uma boa série de banda desenhada a ser editada na íntegra em português. Parabéns, Gradiva!
NOTA FINAL (1/10):
8.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Guardião #3 - Fantasmas em Porto Cervo
Autores: François Boucq e Yves Sente
Editora: Gradiva
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Janeiro de 2022
Autores: Yves Sente e François Boucq
Editora: Gradiva
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2022
Autores: Yves Sente e François Boucq
Editora: Gradiva
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Abril de 2022
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