O Grande Gatsby – Romance Gráfico é o primeiro livro de banda desenhada que a editora Relógio d’Água lança em 2022, depois de nos últimos anos ter apostado no lançamento de adaptações de clássicos da literatura, como Mataram a Cotovia, 1984 ou Fahrenheit 451 - O Romance Gráfico.
Desta vez, a editora optou, então, por lançar a obra-prima de F. Scott Fitzgerald, cuja adaptação ficou a cargo da dupla de autores Aya Morton – nas ilustrações – e Fred Fordham, na adaptação do argumento original para banda desenhada.
Quando soube que Fred Fordham fazia parte da dupla de criadores, fiquei entusiasmado pela positiva, já que gostei mesmo muito do seu trabalho na já supramencionada Mataram a Cotovia. Livro esse que recomendo totalmente. Nesse caso, o autor assume quer a adaptação da obra, quer as belas ilustrações e cores da mesma, obtendo um resultado muito gratificante. No caso deste O Grande Gatsby, e lamentavelmente, Fordham apenas faz a adaptação da obra original para banda desenhada. Melhor seria se também tivesse sido responsável pelas ilustrações. Mas já lá irei.
E começando por isso, pelo argumento, esta adaptação faz um trabalho que considero aceitável e eficiente. Mesmo aqueles que nunca tenham lido a obra – ou visto o, relativamente recente, filme de Baz Luhrmann, com Leonardo DiCaprio – podem, com esta novela gráfica, ficar com uma boa ideia geral da boa trama e do belo texto montados por F. Scott Fitzgerald.
A história é relativamente simples e linear. Estamos nos loucos anos 20 nova-iorquinos e Jay Gatsby é um bilionário que vive em Long Island. Nick Carraway, que nos conta a história na primeira pessoa, muda-se para a casa ao lado de Gatsby e passa a ficar fascinado com a estranha, misteriosa e peculiar forma de vida de Gatsby. E, gradualmente, passam a ficar amigos. Mas, pelo meio, a prima de Carraway, Daisy, (re)aproxima-se de Gatsby, reatando, dessa forma, uma paixão antiga mal curada por ambos. Para complicar mais as coisas, o marido de Daisy, Tom Buchanan, que (também) mantém uma vida dupla, não fica nada satisfeito com o aparecimento de Gatsby na vida da sua mulher.
Basicamente, esta é uma história onde F. Scott Fitzgerald critica subtilmente a alta sociedade e as suas falsidades, as buscas incessantes pelo prazer hedonista e demais frivolidades que giram em torno da alta sociedade. No fundo, a alta sociedade até é a classe social que mais alicerça a sua vida em aparências e em falsidades. E muitas vezes os seus membros até são os mais infelizes, apesar do seu aparente sucesso e riqueza. Mas já todos sabemos que “o dinheiro não compra felicidade”, certo? Se as críticas de F. Scott Fitzgerald à alta sociedade eram certeiras em 1925, data da primeira publicação do romance, passados praticamente 100 anos, todas essas críticas continuam "na mouche".
Olhando agora para esta banda desenhada, embora seja verdade que, por vezes, exista algum excesso de texto a habitar esta adaptação, acho que Fred Fordham faz um bom trabalho a "separar o trigo do joio" e a dar-nos o principal da obra original nesta adaptação. Tendo em conta o texto delicado e inspirado do autor original, também compreendo esse tal excesso de texto aqui e ali. Mas não é nada que estrague a experiência de leitura, quanto a mim.
O que estraga a experiência de leitura é, nada mais, nada menos, que as ilustrações de Aya Morton. Mas, comecemos pela parte boa. As ilustrações da autora até têm a capacidade de nos transportar para o universo glamoroso de O Grande Gatsby. Está cá tudo: as festas, os vestidos, os penteados, os automóveis, as diferentes mansões, a célebre luz verde. E também é verdade que as ilustrações da autora, por vezes, funcionam bem. Especialmente a nível cénico, mas igualmente na audácia de algumas pranchas originais que (des)constroem, com clareza, certas verdades certas da narração em banda desenhada. Por último, também apreciei a coragem e a diversidade de planos e perspetivas – algumas complexas – com que a autora nos brinda. Mas, tirando isso, o trabalho da autora é manifestamente pobre. Até o poderá não ser tanto em termos de “ilustração” – até porque isso abrirá a porta da subjetividade de cada um – mas, certamente, se a obra procura ser uma arte sequencial, traz consigo vários problemas.
O primeiro e, talvez, o que mais me incomodou, é a caracterização facial das personagens. Vamos ser sinceros: Aya Morton não sabe desenhar caras. Não ao nível das expressões, pois as personagens não conseguem passar de forma conveniente qualquer emoção. E, muito menos, ao nível da diferenciação entre personagens. As principais figuras masculinas desta obra, Jay Gatsby, Nick Carraway e Tom Buchanan, são exatamente iguais em termos de desenho! As únicas coisas que fazem com que, a custo, as consigamos distinguir são as cores do cabelo e as cores da roupa que vestem. Exatamente a mesma maneira de diferenciar as personagens que eu usava, quando tinha 7 anos e desenhava no ATL.
É claro que reconheço que posso estar a ser um pouco duro em relação às ilustrações da autora que, tal como comecei por referir, até apresenta algumas ideias interessantes. Mas, caramba, chega a ser risível a forma pobre como representa as caras das personagens. E não me parece que o seu traço infantil e pouco desenvolvido, o seja por opção.
E, claro, se tivermos em conta que o universo criado por F. Scott Fitzgerald é, todo ele, muito rico, detalhado, glamoroso e requintado, os desenhos de Morton acabam por não se adequar à obra original. A própria nota introdutória de Blaze Hazard pareceu-me que tentava justificar a “bela escolha” que foi Aya Morton para esta adaptação. Como se fossem necessários argumentos para a escolha. Se esses argumentos fossem óbvios, não seria preciso que o editor da obra os referisse com tanto afinco. Digo eu! Aya Morton pode ser uma bela ilustradora ao nível cénico ou mesmo em termos de livro ilustrado, mas os seus dotes e técnica não chegam para a arte sequencial, vulgo banda desenhada.
Em termos de edição, a Relógio d’ Água, não fugindo ao seu catálogo de banda desenhada em capa mole, brinda-nos com mais uma edição em capa mole, com bom papel e boas encadernações. O único extra é a nota introdutória de Blaze Hazard que referi mais acima.
Há umas semanas este livro também causou algum rebuliço nas redes sociais pela sua capa que comete alguns dos erros mais primários na conceção de capas. Como já tive oportunidade de opinar, consigo pensar em muitas, muitas capas piores do que esta. É fraca, sim, mas pareceu-me que também houve uma certa histeria com a mesma. No entanto, é claro que esta capa apresenta erros difíceis de compreender. Não tanto na ilustração – pode não ser a mais bela de sempre, mas também não a considero minimamente má –, mas sim no grafismo, isto é, nos elementos que foram, depois, introduzidos em cima da ilustração. E se a versão original americana já é má, a portuguesa ainda consegue ser pior. Especialmente na forma mal-amanhada e amadora como o título foi colocado na capa. Até me faz ter arrepios de dor ao pensar como alguém disse: “Sim, a capa está boa e pronta para ir para a gráfica”. Não sou designer, mas até tive duas cadeiras de produção gráfica na universidade e, baseando-me no finito conhecimento que daí retirei, digo-vos que havia tantas e tantas formas de salvar esta capa. Mas nada disso foi feito. Tivesse eu mais tempo em mãos e até fazia uns exemplos no photoshop, só para demonstrar que a minha crítica não é gratuita ou fácil, mas sim construtiva.
Em suma, e embora eu goste muito da obra original de F. Scott Fitzgerald, tenho que dizer que este livro fica bastante aquém da minha expetativa. Fred Fordham ainda consegue salvar a honra do convento, com uma adaptação do argumento convincente, mas Aya Morton não consegue oferecer a esta adaptação a beleza, a vivacidade, a dinâmica, a riqueza e a qualidade narrativo-visual que este livro merecia.
NOTA FINAL (1/10):
5.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Grande Gatsby - Romance Gráfico
Autores: Aya Morton e Fred Fordham
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 216, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Março de 2022
Aquilo que anteriormente referi relativamente à abordagem da BD por parte de editoras tradicionais é válido igualmente para esta publicação. A 9ºa arte continua a ser uma disciplina subordinada à "arte maior" da literatura, sem autonomia e valores inerentes próprios. Lamento este perda de tempo (e recursos) por parte de (mais) uma editora que, claramente, anda a "apanhar bonés" no que concerne à edição de BD. Enfim..
ResponderEliminarPois. Na verdade, sendo sincero, até acho que quer o "1984", de Xavier Coste, quer o muito bom "Mataram a Cotovia", de Fred Fordham, são obras muito boas e excelentes apostas da Relógio D'Água. Este "O Grande Gatsby" é que, de facto, fica bastante aquém das expetativas, quanto a mim.
EliminarConcordo Nuno, mas essas são as excepções (a que eu adicionava o magnífico "Relatório de Brodeck"). No fundo tudo isto traduz uma coisa muito simples - falta de direção editorial na área da BD. Edita-se por editar e por "colagem" ao título em prosa. Quem gosta e aprecia BD sabe que existem centenas (milhares?) de adaptações por esse mundo fora de obras de literatura mas apenas um reduzidíssimo número atinge patamares de excelência (guião e arte). Compreendo que este tipo de obras seja uma forma de trazer para a BD leitores (que, de outra forma, nunca considerariam este meio), mas há que saber fazer uma curadoria informada para não "despejar" simplesmente títulos para o mercado. Se estas editoras estão verdadeiramente comprometidas em criar chancelas de BD terão que fazer muito, muito mais...
ResponderEliminarSim, António, concordo que a "curadoria informada" é deveras importante. Já que, pela razão do nosso mercado ser pequeno, não podemos ter todos os títulos de bd que chegam ao mercado estrangeiro, ao menos que saibamos publicar os melhores títulos.
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