quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Análise: A Fera #2

A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita

A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé

Há livros que se leem como quem regressa a casa. A Fera 2, que a editora A Seita publicou recentemente, é um desses regressos. Não apenas ao universo que Zidrou e Frank Pé inauguraram no primeiro volume, mas também a uma certa forma de fazer banda desenhada: humanista, poética, bela e profundamente europeia. 

Este é o segundo e último livro da abordagem dos autores ao universo da personagem Marsupilami, criada pelo mítico autor André Franquin. O enredo, relembro, transporta-nos à cidade de Bruxelas dos anos 50, chuvosa e cinzenta, onde um animal exótico se vê prisioneiro de um mundo que não o compreende. Criatura de força desmedida e ternura inesperada, este animal é o espelho da diferença numa Europa que ainda lambe as feridas de uma II Guerra Mundial, em que os antagonismos entre os humanos ficaram mais realçados do que nunca.

Embora a história retome o fio do primeiro tomo, sente-se, logo à partida, que o ritmo narrativo será outro. Com efeito, se o primeiro volume se deteve mais no retrato e na construção do ambiente, A Fera 2 ganhou no movimento, na dinâmica e no sentido de urgência. Há ação, perseguições, e uma tensão que cresce página a página, sem nunca abdicar da delicadeza que Zidrou sabe imprimir aos seus argumentos. O leitor sente que neste segundo tomo a história desperta como se, de súbito, o animal mítico começasse a correr dentro do próprio livro, arrastando consigo todas as outras personagens.

A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
Não obstante, apesar da maior energia narrativa, a simplicidade da história permanece. Este é um conto de amizade, de coragem e de compaixão. São todos ingredientes clássicos, sem dúvida, mas que são tratados com a maturidade de quem sabe que estas histórias com apelo a um público mais jovem são, no fundo, histórias para adultos disfarçadas. As personagens, mesmo as mais caricaturais, ganham espessura. Zidrou escreve-as com ternura e ironia: o riso até nos pode surgir, mas quase sempre como disfarce de algo mais fundo, de um vazio ou de uma memória difícil. A personagem de Boniface é um exemplo perfeito disso.

Há um perfume de infância a pairar sobre estas páginas, e é talvez por isso que este livro me remeteu, claro, para as bandas desenhadas mais clássicas da escola Spirou, mas também para outros clássicos da literatura e do cinema, como King Kong ou E.T. de Steven Spielberg. Tal como o extraterrestre do filme,  Marsupilami é um ser de "outro mundo", alvo da cobiça e do medo humano, mas também capaz de despertar num rapaz, o impulso mais puro de proteção e amizade. Essa relação é o centro emocional da narrativa, que cria alicerces na aliança tácita entre a inocência e a necessidade de proteção daqueles que mais se ama. 

Mas, convém dizer, o argumentista Zidrou não se fica pela ternura fácil. Há em A Fera 2 uma sombra que paira, uma melancolia que recorda os traumas da guerra e os seus ecos na geração seguinte. Até porque, convém não esquecer, a Bélgica dos anos 50 ainda tinha nas consciências do seu povo as cicatrizes da ocupação nazi. E é nesse contexto que a relação do protagonista François e Fut Fut surge. Colocados em lados opostos pela guerra - o pai de François era soldado alemão, enquanto que o pai de Fut Fut perdeu a vida às mãos do exército alemão - a relação das duas personagens começa por ser extremamente negativa, assente numa clara relação de bullying estudantil, mas com o tempo acaba por florescer para uma verdadeira amizade, ultrapassando ressentimentos herdados. Zidrou sugere, com subtileza, que talvez as crianças tenham mais a ensinar aos adultos do que o contrário. E nesse ponto, a obra também me remeteu para o Spirou de Émile Bravo.

As referências à banda desenhada clássica, em particular a Hergé e a Tintin, também atravessam o livro, sendo algumas vezes óbvias e, noutros casos, meras sugestões para os mais atentos. 

A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
A escrita de Zidrou tem essa rara qualidade de parecer familiar sem nunca ser previsível. Usa arquétipos, sim (o cientista obcecado, o órfão sensível, o animal prodigioso) , mas modifica-os ligeiramente, fazendo com que nós, leitores, tropecemos nas nossas próprias expectativas. Onde, em várias situações, poderíamos esperar o conforto de um clichet, somos surpreendidos com algo de inesperado, havendo resoluções que surpreendem, e até algumas que nos deixam desconcertados. Mas essa desconstrução do “final feliz” é talvez o maior mérito de Zidrou: lembrar-nos que a vida raramente termina em harmonia perfeita. Gosto especialmente dessa vertente do autor. Tal como gosto que o autor não tenha medo de "mentir" nas suas criações, de forma a torná-las mais realistas e a desconcertar os seus leitores, como o faz aqui quando afirma que existiu mesmo um animal com as características de Marsupilami ou quando, por exemplo, em Naturezas Mortas, publicado pel' A Seita e pela Arte de Autor, levou os leitores a considerarem como real a existência do pintor Vidal Balaguer i Carbonell.

Como menos positivo, considero que há certas pontas soltas no argumento que talvez pudessem ter sido melhor aproveitadas, e que há algo de ligeiramente forçado no fecho da narrativa. Não por ser um mau final, mas por me parecer algo apressado. Ainda assim, mesmo esse final apressado tem o mérito de manter viva a inquietação: fechamos o livro, mas a fera continua a respirar dentro de nós, enquanto que nos permite obter uma sensação de ciclo fechado, como se esta obra tivesse sido feita antes da criação de André Franquin.

O trabalho de Frank Pé é, como sempre, deslumbrante. A sua mestria no desenho animal é inquestionável: o Marsupilami move-se com uma graça selvagem, mistura de felino e símio, e cada movimento da sua enorme cauda parece uma extensão do próprio traço do autor. Frank Pé desenha com amor e uma exatidão impressionante, pois sente-se que conhece os músculos e os ossos de cada bicho que cria. As expressões humanas, caricaturais e vivas, equilibram a intensidade naturalista dos animais, criando um contraste de rara beleza. Já os cenários com que o autor nos brinda, são outro ponto alto. Bruxelas ganha corpo e textura neste livro: ruas húmidas, becos, praças, o cheiro do carvão e do fumo. Cada vinheta é uma janela para um tempo perdido, com Frank Pé a transformar a cidade numa personagem tão presente quanto o próprio Marsupilami. 

A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita
O traço deste autor tem algo de monumental e, ao mesmo tempo, de profundamente terno. Há uma energia vital em cada linha, como se os seus desenhos respirassem por si só. Além de que o autor também domina o espaço e o movimento com uma sensibilidade cinematográfica, quase coreográfica. Com efeito, é impossível não sentir, ao folhear A Fera 2, que o desenho se move, como se Marsupilami saltasse literalmente da página para o olhar do leitor, num jogo de ritmo e fluidez que poucos artistas conseguem alcançar.

E não menos majestoso é o uso da cor. Elvire de Cock oferece ao livro uma paleta luminosa, de tons suaves e com um cariz algo moderno e clássico, ao mesmo tempo, que assenta no desenho de Frank Pé que nem uma luva.

Quanto à edição d' A Seita, estamos perante um dos melhores trabalhos do ano. O livro apresenta uma espessa e vigorosa capa dura baça, com detalhes a verniz e, no miolo, o seu papel é baço e de extrema qualidade. A encadernação e impressão também são de primeira categoria. Além de tudo isto, a edição portuguesa desta obra é, até à data, a melhor do mundo, apresentando um conjunto de extras que mais nenhuma outra edição tem. Inclui Lange Staart, uma história curta de oito páginas a preto e branco, que nos oferece mais um capítulo sobre as personagens da obra e, como cereja no topo do bolo, brinda-nos com o dossier À Descoberta da Bruxelas de Frank Pé... em que o ilustrador da obra nos faz uma visita pela cidade de Bruxelas, evocando memórias antigas, inspirações para o desenho deste livro e desvendando-nos easter eggs que, naturalmente, nos deixam com vontade de relermos o livro. A acompanhar estes comentários do autor, estão as vinhetas onde podemos conferir aquilo que ele nos revela. É uma edição de primeira linha aquela que A Seita preparou para esta obra. Parabéns aos envolvidos. 

Em conclusão, Fera #2 completa de forma deslumbrante este "Marsupilami de autor", em que o desejo de reencontrar a pureza, a empatia e a compaixão num mundo que as perdeu, se transforma numa parábola sobre o medo do diferente e sobre a ternura como forma de resistência. O animal Marsupilami, criatura inventada e impossível, torna-se o símbolo do que ainda resta de inocência em nós. E talvez seja essa a maior força da obra: lembrar-nos que a verdadeira fera nunca é o animal, mas o homem que o tenta capturar.


NOTA FINAL (1/10):
9.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Fera #2, de Zidrou e Frank Pé - A Seita

Ficha técnica
A Fera #2
Autores: Zidrou e Frank Pé
Editora: A Seita
Páginas: 224, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 274 xx 290 mm
Lançamento: Setembro de 2025

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