sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Análise: Como Pedra

Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo

Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo
Como Pedra, de Luckas Iohanathan

Uma das mais recentes bandas desenhadas editadas pela Polvo, dá pelo nome de Como Pedra e marca a estreia do autor brasileiro Luckas Iohanathan na feitura de banda desenhada. Foi uma estreia em grande, na verdade, já que esta foi a obra que venceu o relevante Prémio Jabuti, no Brasil, em 2023.

Como Pedra é daqueles livros que nos chegam de mansinho, quase sem que ninguém repare neles, mas aqueles que lhe dão uma oportunidade encontram nesta banda desenhada solitária, companhia para o espírito e matéria para reflexão. A obra promete-nos uma travessia pelo Sertão profundo, mas aquilo que o autor nos oferece é, acima de tudo, uma descida lenta, mas profunda, às camadas mais áridas da condição humana, onde a seca não é apenas climática, mas também espiritual, social, emocional; e onde a fome não é apenas por alimento para o corpo, mas também por alimento para a alma.

Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo
A história começa com um casal que luta, dia após dia, para garantir a sobrevivência de Rosa, a filha que depende inteiramente de uma cadeira de rodas e de medicamentos que o Estado brasileiro só oferece pela metade. A outra metade da medicação necessária ao tratamento de Rosa, têm que ser os pais a assegurar por falta de meios do Sistema de Saúde Brasileiro. Dias depois de ter lido o Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci, não deixa de ser curioso que, novamente, embora de forma muito diferente, o frágil e insuficiente sistema de saúde do Brasil seja exposto a nu. 

A narrativa, aqui, não tem pressa. A presença de Rosa é central, mesmo que ela própria esteja ausente do movimento e da palavra, mas é interessante como Luckas Iohanathan transforma essa ausência em presença simbólica: Rosa existe nos silêncios, nas pausas, nos olhares suspensos entre uma página e outra. Há um certo lirismo austero neste livro, quase seco, que amplifica a impotência e, ao mesmo tempo, o cuidado que afeta a vida de Rosa. E é talvez nessa vertente que este livro mais me fascinou.

A chegada do filho mais velho do casal, ausente durante anos, funciona como ponto de viragem na narrativa. Ele não vem sozinho, traz consigo uma seita religiosa, composta por amigos convertidos a um fanatismo que se propaga como uma praga silenciosa. A partir daqui, o livro mergulha numa espiral religiosa em que as personagens, especialmente os pais de Rosa, começam a acreditar que a fé pode resolver tudo… desde que haja um sacrifício, claro, pois nada é grátis, nem mesmo a misericórdia de Deus. E, claro, o alvo desse sacrifício não tarda a tornar-se evidente.

Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo
O ritmo, conforme já mostrado, é lento, o que pode ser uma forma de afastar alguns leitores nas primeiras páginas. Mesmo assim, garanto-vos que a viagem que fazemos enquanto leitores, vale bem a pena. A história demora a arrancar, sim, mas esse atraso prepara a explosão emocional que virá mais tarde. Quando a trama finalmente acelera, ou melhor, se afirma, o impacto da narrativa faz-se soar. 

A forma como Iohanathan explora o fanatismo é subtil mas incisiva. O autor não caricatura nem demoniza abertamente a religião, limitando-se a mostrar o modo gradual como a crença se infiltra e como a esperança distorcida pode ser mais devastadora do que a própria miséria. 

Mas talvez o que mais me tocou tenha sido o modo poético com que o autor trabalha os silêncios. Há vinhetas inteiras em que nada se diz, mas muito se sente. É nesses vazios que a narrativa respira e, paradoxalmente, onde nos afogamos. 

Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo
Outro aspecto particularmente forte, mesmo que subentendido, é a dimensão ecológica da obra. O livro expõe as consequências da destruição ambiental. No Nordeste brasileiro, onde a seca se agrava ano após ano, as alterações climáticas são uma violência diária que tem como principal causa a sobreexploração agrícola governamental - e privada -, que é empurrada por interesses económicos distantes, que leva a que natureza e as comunidades próximas que dependem dela pereçam. 

E é sempre o pobre quem mais paga. A família de Rosa, já vulnerável, fica ainda mais exposta quando o ambiente se torna hostil, quando o solo deixa de dar sustento, quando a fome se estabelece e quando o Estado falha. A precariedade climática e a precariedade social caminham, pois, de mãos dadas.

Visualmente, Como Pedra impressionou-me bastante. O estilo de desenho remete, de certa forma, e com as devidas distâncias, para o traço de Bastien Vivès, mostrando-se minimalista, elegante, de linhas limpas e expressivas e dando espaço a que as sombras possam desempenhar um papel essencial. As cores, em tons amarelados, incrementam a sensação de aridez, de calor, de seca, de desolação. É verdade que, por vezes, os desenhos podem ser um pouco despidos demais, mas creio que isso é opção autoral com um propósito claro de se atingir uma certa poesia.

A edição da Polvo apresenta capa mole baça, com badanas. No interior, o papel é baço e de boa qualidade. A impressão e encadernação também são boas. No início, há um texto introdutório de Marcelino Freire que nos enquadra perante a história. Há duas capas diferentes disponíveis.

Concluindo, Como Pedra é uma Bd demarcadamente poética. Não é apenas uma leitura, mas uma experiência emocionalmente desgastante e, quer queiramos, quer não, necessária. Luckas Iohanathan constrói um retrato brutal e poético do Sertão, onde a fé, a fome, a esperança e a loucura se entrelaçam. É uma obra que dói, que pesa e que exige bastante de nós, leitores. 


NOTA FINAL (1/10):
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Como Pedra, de Luckas Iohanathan - Polvo

Ficha técnica
Como Pedra
Autor: Luckas Iohanathan
Editora: Polvo
Páginas: 200, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Lançamento: Novembro de 2025

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