Acaba de ser lançado o quarto e último volume da série O Castelo dos Animais, de Dorison e Delep, depois de três volumes que deixaram muita gente a salivar por uma conclusão que pudesse ombrear com os belíssimos primeiros três livros. Mas sosseguem, pois posso adiantar-vos desde já que não só este derradeiro capítulo, intitulado O Sangue do Rei, ombreia com esses três tomos, como até os ultrapassa. Estou rendido!
Este último tomo de O Castelo dos Animais fecha a série com chave de ouro, revelando-se um final que não grita, mas que vibra e causa tumulto por dentro. Dorison e Delep não nos oferecem apenas o desfecho de uma boa história, brindam-nos com uma reflexão carregada de ternura, revolta e coragem.
A narrativa começa com o que parece ser uma pequena vitória. O touro ditador, Sílvio, vê-se forçado a organizar uma votação, gesto que para ele soa a veneno, mas que para os outros animais soa a promessa. A eleição não é apenas um processo político. É um ritual de fé, um teste ao limite da esperança dos animais que se veem subjugados pelo touro e pelos seus poucos - mas fortes - seguidores.
Enquanto a campanha eleitoral se desenrola, o ar no castelo vai ficando mais pesado. Do lado de Sílvio, vale tudo, claro: golpes baixos, manipulação, medo, promessas, propaganda. Os animais de mente menos desenvolvida começam a deixar-se levar pelas promessas vãs de Sílvio. Por outro lado, o Movimento das Margaridas, que tendo começado de forma frágil até já se tinha ancorado no coração de muitos animais, começa a perder gás na semana que antecede as eleições devido à sua líder se limitar a responder com verdade aos pedidos dos animais. O povo, já se sabe, gosta de ser enganado. Mas a gata Miss B, o coelho César e o rato Azelar não sendo(?) heróis perfeitos, carregam uma enorme armadura intangível que é a teimosia de continuar a lutar pelos valores em que acreditam.
À medida que a história avança, sentimos a tensão crescente. O castelo transforma-se num campo de batalha feito de palavras, memórias, jogadas eleitorais e coragem. Não falo mais da história para não estragar o prazer da leitura a ninguém, mas digo-vos que Dorison não poupa os seus leitores a momentos de dor. Há perdas que nos amarguram e há cenas que nos fazem parar um instante só para engolir em seco.
No entanto, nunca sentimos gratuitidade, pois a fábula ganha corpo político sem perder alma poética. Ecoa George Orwell no seu A Quinta dos Animais, claro, mas a trama desenvolve-se depois para algo mais poético e impactante. Dorison toma de empréstimo o espírito crítico de Orwell enquanto constrói algo que fala aos nossos dias com uma clareza quase inquietante. Veem-se reflexos dos tempos atuais nesta história: a sedução dos discursos fáceis e o fascínio perigoso por figuras que prometem ordem enquanto queimam liberdades. Numa altura em que, por esse mundo fora - e até mesmo por Portugal - há muita gente encantada com discursos propagandistas e demagogos, esta narrativa assume-se como um alerta para alguém que parece não (querer) ver o inegável.
O livro lembra-nos que a democracia é frágil como cristal, mas também resistente como aqueles que não abrem mão de si. Lembra-nos que a união dos vulneráveis pode derrubar o mais feroz dos tiranos. Lembra-nos que a esperança não nasce do nada. Cresce quando alguém decide não desistir. Há momentos em que o castelo parece desabar. O ritmo aumenta, o medo cresce, mas no horizonte há sempre um fio de luz. É essa luz que faz deste desfecho não apenas emocionante, mas necessário.
Quando a história alcança finalmente o seu clímax, sentimos o peso da jornada. Não é uma vitória simples. Não é um triunfo limpo. É uma conquista que custa, que dói, que exige. E exatamente por isso... tem valor. A série termina em apoteose, não pela grandiosidade, mas pela verdade emocional que deixa no leitor. E tudo com uma beleza ímpar, onde as personagens ficam na memória, onde os momentos dramáticos nos entristecem, mas onde, no final, há uma réstia de esperança na humanidade. Esta pode muito bem ser a série que todos nós precisamos de ler. Majestosa, impressionante e uma das melhores histórias arquitetadas por Xavier Dorison, um argumentista que, convém não esquecer, tem muitas outras belas histórias.
Delep, por sua vez, ilustra este volume com uma maturidade visual que nos maravilha e comove. As expressões dos animais parecem carregadas de vida interior: o olhar de Miss B transmite mais que muitos monólogos, a brutalidade de Sílvio pesa no desenho como se o papel rangesse. A cada página sentimos uma evolução no desenho, com o autor a saber pegar na beleza dos três volumes anteriores e a conseguir elevá-la, como se estivesse a tocar o auge da sua arte. É verdadeiramente impressionante o trabalho detalhado, meticuloso e poético que nos oferece Delep.
E tenho que referir ainda que, para isso, também conta o fantástico e inesquecível trabalho de cores de Julien Leplâtre, Sophie Dhénin e Oya Lydia Bierschwale. São das cores mais bonitas que já vi em banda desenhada. Os verdes da vegetação, o azul do céu e os amarelos da terra quase parecem palpáveis. Que trabalho magnífico! As cores e desenho da restante série sempre foram fantásticas, mas neste O Sangue do Rei estão ainda melhores.
A edição da Arte de Autor permanece muito bonita. A capa é dura, com detalhes a verniz e com uma textura aveludada, suave ao toque, que adoro. No miolo, o papel é brilhante e de boa qualidade, tal como também assim é a impressão e encadernação. É uma edição muito bonita. Julgo que, tratando-se do último volume da série, teria sido bom ter recebido uma caderno adicional esboços, estudos de personagem ou outro tipo de conteúdo extra, mas compreendo que se trata de uma co-impressão e que, naturalmente, a edição portuguesa espelha apenas a edição original, pelo que não há nada a criticar negativamente.
Em suma, e olhando para o conjunto da obra, O Castelo dos Animais entra para aquele pequeno círculo de bandas desenhadas que não se fecham quando a contracapa se fecha. Ficam na cabeça, no coração e no modo como olhamos o mundo. Dorison prova aqui ser um argumentista no auge, capaz de arquitetar uma história que, mesmo sendo uma fábula, nos atinge como sendo a mais pura das realidades. E este último volume não só conclui uma série magnífica. Coroa-a. Com beleza, com coragem, com inteligência e com alma. É difícil não lhe dar nota máxima. É difícil não recomendar esta série como uma das BDs que mais valem a pena ler nos dias de hoje. Porque precisamos deste tipo de histórias. Histórias que nos lembram que o poder sem limites pode ser feroz, mas que a esperança, quando encontra companhia, se torna imparável.
NOTA FINAL (1/10):
10.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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