Há livros que se abrem como portas de um elétrico: de repente, sem aviso, e basta um segundo para que algo mude. Peças, do espanhol Víctor L. Pinel, começa justamente assim, com um jovem que, numa dessas aberturas súbitas do quotidiano, vê uma rapariga que não voltará a encontrar, mas que o marca de forma irremediável. É um ponto de partida simples, quase frágil, daqueles que cabem num parágrafo curto… mas que escondem a promessa de algo maior. É este o começo do mais recente livro de Víctor L. Pinel, editado pela Ala dos Livros, autor do qual a editora já tinha publicado o muito interessante O Mergulho, dessa feita, com argumento de Séverine Vidal.
Em Peças, Víctor L. Pinel, assume-se como autor completo, oferecendo-nos argumento e ilustrações. E, se nas ilustrações o autor nos volta a dar um belo trabalho, é no argumento que mais me surpreendeu.
Ao início, confesso-vos, a história deste livro pareceu-me leve em demasia e carregada de alguns clichets, com personagens que sentimos já ter encontrado noutro livro, noutro filme, noutro romance... até noutra banda desenhada qualquer. Há reconhecimentos imediatos, quase automáticos, como se Pinel estivesse a jogar com arquétipos já gastos. Mas é precisamente por aí que o autor nos engana: a leveza é apenas o disfarce da peça antes de ser movida e, acreditem, o argumento deste livro acaba por se nos revelar mais inteligente e intrincado do que aquilo que, à partida, poderíamos adivinhar.
Pouco a pouco, percebemos que há algo muito especial por baixo dessa superfície aparentemente familiar. A narrativa abre pequenas fendas, deixa pistas quase imperceptíveis, e o que parecia um conjunto de histórias independentes, quase uma antologia, ganha profundidade, textura e intenção. O autor escreve com a precisão de alguém que sabe que cada detalhe - mesmo o mais discreto - pode alterar toda a estratégia do jogo. Afinal de contas, é de o xadrez que estamos a falar.
Mas, voltando ao início deste texto, é a partir da referida faísca inaugural, em que um jovem observa outra jovem pelas portas de um elétrico que se abrem - o que me remeteu para o filme Sliding Doors, com Gwyneth Paltrow, já agora - que Víctor L. Pinel lança um conjunto de personagens que carregam nos ombros as suas falhas, as suas desistências e as suas pequenas esperanças. Todas as personagens se movem como peças num tabuleiro de xadrez invisível, avançando, recuando ou estagnando, às vezes sem perceberem que o jogo já começou. Ou que ainda não acabou. Os peões questionam-se sobre o preço do sacrifício, os bispos cruzam caminhos sem verdadeiramente se tocarem, e o cavalo salta com uma liberdade que é, paradoxalmente, a sua maior vulnerabilidade.
Temos aqui vários exemplos de vida: o clássico adolescente bonitão da escola, por quem todas as outras miúdas suspiram, mas que acaba por se apaixonar pela miúda geek de óculos a quem ninguém dá importância; a mulher traída pelo marido, que não consegue prosseguir com a vida; a mulher que sente-se só na vida com o seu namorado, que nunca parece estar disponível para ela; o galã da televisão que, embora desejado por tantas mulheres, sente um enorme vazio e uma vontade de conhecer alguém que goste dele por aquilo que ele é e não pela imagem que a indústria do entretenimento fabricou de si; o casal que está separado pela distância física e onde os projetos de um não parecem coincidir com os projetos do outro; o casal mais idoso que viu a sua relação acomodar-se pelo peso da rotina; a rapariga que não se consegue prender a relacionamentos sérios; a idosa que desistiu de viver enquanto aguarda pela sua morte e o rapaz, já mencionado, que se apaixona por uma estranha à saída do elétrico.
Sem que o leitor se aperceba, este mosaico de trajetórias vai montando uma espécie de coreografia silenciosa: todos avançam, todos colidem, todos procuram sentido neste tabuleiro urbano a que chamamos "vida" e onde nada parece totalmente controlável. A vida, aqui, não é tanto um jogo para ganhar, mas um jogo para tentar resolver.
A metáfora do xadrez, longe de ser um truque estilístico, transforma-se, pois, num verdadeiro eixo temático. Cada tipo de peça corresponde subtilmente a um tipo de personagem, um tipo de movimento emocional, um modo próprio de existir. Somos todos distintos, sim, mas todos estamos a jogar algum tipo de xadrez. Uns fazem-nos com avanços cautelosos, outros com saltos impulsivos, outros parecem estar presos em diagonais impossíveis. O argumento é simples na forma, mas absolutamente brilhante na execução.
Peças é, acima de tudo, um livro que aquece o coração. Cada página convida à reflexão sobre as nossas escolhas, sobre os laços que criamos e sobre a fragilidade das relações humanas. Pinel lembra-nos, de forma subtil e poética, que tudo precisa de cuidado. Um gesto ignorado, uma palavra não dita, uma atitude não explícita pode fazer um amor desvanecer-se como se este nunca tivesse existido. E, como no xadrez, perceber o momento certo de avançar ou recuar, de arriscar ou proteger, é essencial: jogar bem a vida é, muitas vezes, a única forma de preservar aquilo que nos importa.
Mas se toda esta metáfora entre a vida e o xadrez já dava uma boa profundidade à obra, o autor vai ainda mais longe quando, no final, nos apresenta, através de cirúrgicos flashbacks, várias pequenas escolhas das personagens que desfilaram à nossa frente, e que, sem dêssemos conta - ou sem que isso nos fosse previamente demonstrado - acabaram por impactar as vidas das restantes personagens. Nessa parte final há, pois, um certo momento de epifania narrativa, quase cinematográfica, em que tudo se encaixa. As histórias, que antes pareciam soltas e meramente circunspetas a um tema comum, convergem numa revelação que lembra o filme O Efeito Borboleta, com o ator Ashton Kutcher, não pelo tema, mas pela sensação de que cada pequeno gesto nas nossas vidas pode ter consequências escondidas. É um “ah!” silencioso, daqueles que fazem o leitor recuar duas páginas só para confirmar que as peças sempre estiveram lá, prontas a serem alinhadas.
É impossível não pensar no trabalho estrutural que isto exige. O argumento é intrincado, quase milimétrico, e denuncia um autor que preparou tudo com extremo cuidado para que as interligações nunca ficassem desalinhadas. Há inteligência, mas também há um enorme respeito pelo leitor a quem é feito o convite para participar na montagem do puzzle.
Já falei de vários filmes nesta análise, para os quais fui remetido, e há um em especial que também não posso deixar de referir: a comédia romântica Amor Acontece. Não tanto pelo enredo que, nesta caso, nada tem a ver com o natal, mas no modo como várias histórias se cruzam sem perderem a sua individualidade e, também, por nos passar a ideia de uma certa harmonia, que nos faz sentir bem, mesmo que, por momentos, possamos ficar pensativos. São vidas que se tocam por momentos, criando linhas de força que só percebemos quando olhamos para o conjunto completo.
Do ponto de vista visual, Peças abraça um desenho moderno, com um toque semi-cartoonesco que lhe assenta bem. Algo a que Pinel já nos habituou em O Mergulho. O traço, solto mas expressivo, faz lembrar o trabalho de Jordi Lafebre na forma como combina leveza estética com peso emocional. Não se trata apenas de ilustrar a história: trata-se de lhe dar ritmo, humores, gestos quase coreográficos. As expressões das personagens são muito bonitas e as cores suaves convergem para a leveza bela do relato.
E essa acessibilidade gráfica contribui para algo que não devamos esquecer: Peças é uma banda desenhada perfeita para introduzir pessoas ao próprio universo da banda desenhada. Não exige bagagem prévia, não pede que o leitor domine códigos ou convenções. É uma obra acolhedora, acessível, fácil de ler, com uma mensagem tão universal como o amor nas nossas vidas. Quando alguém, que não lê BD, me voltar a perguntar: "Com que livro é que devo por começar o meu mergulho na banda desenhada?" - e, acreditem, é uma pergunta que me fazem recorrentemente - é bem provável que eu lhe coloque este Peças nas mãos.
Nota positiva, ainda, para o facto de ser notório que, ao longo do livro, o traço de Vidal ficou mais aprimorado e elegante. Basta comparar a página 6 e umas das páginas do final da obra para constatarmos facilmente isto.
Quanto à edição da Ala dos Livros, encontramos um livro com capa dura baça, lombada arredondada, com bom papel brilhante no interior.
Em suma, Peças é um livro que se lê com a suavidade de uma história simples, mas que se entranha no leitor com a complexidade de um argumento muito bem montado. E que, como no xadrez, nos lembra que a vida é um avanço contínuo, às vezes lento, às vezes inesperado, quase sempre imprevisível. Uma obra delicada e inteligente, que confirma que, no fim de tudo, somos sempre peças em movimento. É uma das BDs que mais prazer me deu ler no corrente ano e, sem dúvida, uma das grandes surpresas do ano. Antes de a ler, achava que seria boa, mas não tão boa. Adorei.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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