quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Análise: Butterfly Chronicles

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas

O livro de banda desenhada mais recente da editora Escorpião Azul dá pelo nome de Butterfly Chronicles e é da autoria de João Mascarenhas, um autor veterano da nossa praça. 

Esta começou por ser uma banda desenhada editada como webcomic, há mais de 10 anos, mas só agora foi lançada em álbum físico, com o autor a terminar a sua história que se mantinha inacabada.

Butterfly Chronicles parte de uma premissa simultaneamente científica e filosófica: será possível aceder à memória individual através do ADN? Depois de um primeiro capítulo mais filosófico, que procura ambientar o leitor ao tema, a narrativa abre verdadeiramente com a equipa de Investigação em Bio Robótica da Universidade de Kymera, em Tóquio, mergulhada num projeto destinado a ler a chamada “memória da espécie”, isto é, a informação comportamental inscrita nos genes de determinados animais. O objetivo inicial é pragmático: usar esses dados para aperfeiçoar o movimento de robots desportivos no competitivo e vibrante mundo do "Droidball", um jogo/desporto em que "robots" jogam entre si, com uma bola, para ver quem marca mais pontos. Não se trata de futebol praticado por robots, é algo diferente e mais complexo, de que falarei mais à frente.

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
O enredo ganha profundidade quando a equipa descobre que este estudo não só permite aceder à memória genética coletiva, mas também à memória específica de cada indivíduo. Ora, claro está, esta reviravolta científica abre as portas a implicações éticas, sociais e psicológicas de maior alcance, que vão desde a privacidade biológica até ao próprio conceito de identidade. 

É a bela e carismática jovem Hanako-san, estudante de primeiro ano de Bio Robótica, quem protagoniza a história e quem serve de guia ao leitor. O seu envolvimento com o laboratório, com o Professor Manabu-sensei e com os mistérios emergentes do projeto, faz dela o centro emocional da narrativa. Sim, porque este (também) é um livro bastante emocional e filosófico. Através do olhar de Hanako-san, testemunhamos a fusão entre o quotidiano universitário, a tecnologia de ponta, as questões éticas e as ameaças externas que surgem à medida que grupos criminosos se interessam pelo poder contido naquela nova forma de leitura genética.

A história de Butterfly Chronicles articula-se, assim, como uma aventura de ciência especulativa profundamente ancorada em bases científicas reais. A ficção não se descola do plausível; pelo contrário, serve-se das fronteiras ainda nebulosas da genética e da robótica para construir um cenário que poderia bem ser um vislumbre do futuro. É esta ponte entre rigor e imaginação que tornam o livro cativante e intelectualmente estimulante. Posso dizer-vos que, assim que mergulhei neste livro, não descansei até chegar ao fim do mesmo.

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
Talvez por isso, a obra destaca-se como uma das mais completas de João Mascarenhas. Consegue levantar uma diversidade surpreendente de temas - da ciência à cultura japonesa, do humor à criminalidade organizada, da música à banda desenhada - e enlaçá-los num enredo coeso e credível. Eu próprio, quando li a sinopse do livro, que fazia menção a todos estes subtemas, pensei: "Hmm.. não serão temas a mais?". Mas, se o são, João Mascarenhas tem aqui o mérito de os "embrulhar" bem na trama principal, havendo um equilíbrio interessante entre entretenimento e profundidade conceptual, de modo a que o nosso interesse se mantenha constante, mesmo quando a narrativa aborda tópicos complexos. É claro que talvez certas personagens pudessem ter sido um pouco mais desenvolvidas, mas, ainda assim, a narrativa revela-se bem-conseguida.

A ciência especulativa, pilar central do livro, funciona com especial eficácia porque se apoia firmemente no que sabemos hoje sobre genética e robótica. João Mascarenhas não inventa fantasias desprovidas de base; prefere ampliar, com rigor e imaginação moderada, possíveis linhas de evolução científica. Este método confere ao livro uma sensação de plausibilidade, conforme já por mim referido, que reforça a sua força distópica e o seu valor como reflexão sobre o futuro. Sou-vos franco: quando a ficção científica extrapola as narrativas para realidades que considero pouco plausíveis, costumo perder o interesse. Neste caso, o meu interesse manteve-se sempre presente.

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
Butterfly Chronicles
 oferece-nos uma leitura rica que convida à reflexão: sobre o que significa memória, sobre as fronteiras entre humano e máquina, sobre os riscos da mercantilização do património genético e sobre a responsabilidade da ciência. João Mascarenhas demonstra um domínio notável da capacidade de comunicar conceitos complexos de forma acessível, sem sacrificar a profundidade nem o rigor.

Outra coisa que apreciei foi a metáfora da borboleta que, aliás, percorre o texto com uma força poética inesperada. Há momentos em que a narrativa adquire um tom quase lírico, evocando reflexões sobre identidade, mudança e vulnerabilidade humana. É neste cruzamento entre ciência e poesia que o livro atinge o seu auge artístico, criando uma experiência de leitura que ultrapassa o habitual na banda desenhada científica.

Contudo, a obra não é isenta de fragilidades. Um dos pontos menos conseguidos reside na apresentação do Droidball. Embora a ideia do desporto seja fascinante, e visualmente muito apelativa, as regras, dinâmicas de jogo e identificação das equipas nem sempre são claras. Em cenas mais movimentadas, é fácil perder o fio ao que está a acontecer, o que pode quebrar o ritmo de leitura. João Mascarenhas bem se esforça para explicar o seu jogo e as suas regras, mas creio que, mesmo assim, o resultado nem sempre é devidamente atingido. Detectei ainda algumas pontas soltas em termos de ideias não suficientemente desenvolvidas ou na sequência narrativo-temporal entre vinhetas. Mas nada que seja muito dramático.

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
Quanto ao desenho, num traço a preto e branco enriquecido com tramas que conferem profundidade e textura às ilustrações, a obra revela um estilo que bebe do mangá, mas que mantém a identidade própria de João Mascarenhas. Os grandes planos realistas das personagens estão entre os momentos mais impressionantes do livro, transmitindo emoções subtis e densidade psicológica. Todavia, há uma certa rigidez nos movimentos de algumas personagens ao longo da história.

Além de que, apesar da qualidade geral das ilustrações ser elevada, o desenho nem sempre se revela totalmente homogéneo ao longo da obra, pois há páginas e vinhetas de grande impacto visual, com traço detalhado, expressivo e tecnicamente muito sólido, especialmente nos grandes planos e nas cenas mais introspectivas, mas coexistem também momentos gráficos menos conseguidos, onde o nível de detalhe, a proporção ou a fluidez do traço não atingem o mesmo patamar de excelência, criando uma ligeira oscilação qualitativa.

Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul
Importa, ainda assim, referir que os robots imaginados pelo autor são outro dos pontos altos da obra. Não tanto pelo desenho - embora este seja apelativo - mas pela capacidade do autor em investigar e em estudar algo que possa ser tão verossímil como possível. Ou seja, os robots não impressionam apenas pelo design, mas também pela forma como dialogam com o tema central da obra: a convergência entre biologia e tecnologia. 

A edição da Escorpião Azul apresenta-se em capa mole, com badanas, bom papel baço no interior e boa encadernação e impressão. As margens do livro voltam a estar pintadas a uma cor, neste caso em vermelho, o que dá um aspeto diferenciado e apelativo ao livro. Há ainda um prefácio da autoria do biólogo José Matos e, no fim, há um caderno de extras, que achei bastante valioso, em que o autor da obra nos oferece mais informações sobre o droidball, os robots que o jogam e as respetivas equipas na liga. Não esclareceu todas as dúvidas que me surgiram, mas foi um bom complemento.

No conjunto, Butterfly Chronicles afirma-se como possivelmente o trabalho mais marcante de João Mascarenhas desde O Menino Triste. Embora muito diferente em temática, estética e ambição, partilha com essa obra maior uma sensibilidade rara e uma capacidade de provocar reflexão profunda no leitor. Trata-se de uma narrativa intelectualmente desafiadora e uma das contribuições mais significativas do autor para a banda desenhada contemporânea de inspiração científica.


NOTA FINAL (1/10):
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Butterfly Chronicles, de João Mascarenhas - Escorpião Azul

Ficha técnica
Butterfly Chronicles
Autor: João Mascarenhas
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 232, a preto e branco
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 17 x 24 cms

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