segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Análise: Dormindo Entre Cadáveres

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate
Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci

A Livros Zigurate, uma editora portuguesa de não-ficção, com foco no ensaio, iniciou-se recentemente na publicação de banda desenhada, com a obra de estreia do autor português Luís Moreira Gonçalves, que conta com ilustrações do brasileiro Felipe Parucci. Este livro, intitulado Dormindo Entre Cadáveres, foi originalmente editado no Brasil, pela Comix Zone!.

Dormindo Entre Cadáveres apresenta-nos uma história intensa e visceral que se desenrola no coração da Amazónia durante a pandemia de COVID-19. Luís Moreira Gonçalves conta-nos na primeira pessoa, já que é médico, a tragédia humana, política, económica, clínica, governamental e social que enfrentou na linha da frente brasileira, enquanto lutava para salvar vidas num cenário marcado pela escassez de recursos essenciais. É uma viagem marcante, que nos relembra de algumas das feridas esquecidas que esta pandemia nos deu, e que vai ao âmago da questão, abrindo as portas dos bastidores clínicos na forma como a pandemia foi tratada. Mas não é apenas um livro em registo de crónica simplista. Não, Dormindo Entre Cadáveres vai mais longe do que isso, transportando-nos para um ambiente em que a realidade se confunde com o delírio e o sonho, refletindo a pressão psicológica extrema que a pandemia impôs aos profissionais de saúde. E, talvez por isso, o livro é tão (mais) impactante.

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate
Quando a pandemia espoletou, Luís Moreira Gonçalves vivia na cidade de São Paulo, sendo professor da Universidade de São Paulo. Exercia, portanto, funções do foro académico-científico, com a sua experiência a assentar mais na teoria e menos na prática. Quando confrontado com um anúncio do Governo do Estado de Rondónia - na Amazónia - que faz um apelo expresso a solicitar o recrutamento imediato de profissionais médicos para o combate à COVID-19, o médico português acaba por oferecer os seus serviços. Depois de enviado o e-mail, passam apenas 10 minutos até que o seu telefone toque, com alguém a chamá-lo para a linha da frente. Luís Moreira Gonçalves ainda revela ao seu interlocutor que não tem experiência clínica, mas a situação hospitalar é tão complexa que aquilo que mais importa para o hospital de Rondónia, é que Luís possa ajudar conforme pode. 

Claramente, o médico português não sabia o que iria encontrar e não estava preparado para esta situação. Mas, pergunto, algum de nós estaria? Um pouco por todo o mundo, nas mais variadas vertentes, veio-se a provar que, de facto, a sociedade não tinha qualquer preparação para uma pandemia destas proporções. 

Luís Moreira Gonçalves começa por encontrar dificuldades devido à sua pouca experiência clínica, mas "em tempos de guerra, não se limpam armas" e a necessidade extrema de ajudar os - cada vez em maior número - infetados com COVID-19, impõe-se. E, claro, o primeiro contacto com a morte, mesmo ali à sua frente, deixa marcas no protagonista deste Dormindo Entre Cadáveres.

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate
A narrativa mostra os dias de aflição na linha da frente, com pacientes a morrer devido à falta de meios, hospitais saturados e a constante sensação de impotência. É uma experiência especialmente relevante por ser contada na primeira pessoa, o que permite uma proximidade emocional profunda, quase como se estivéssemos dentro do hospital, sentindo o cansaço, o medo e o desespero que Luís Moreira Gonçalves enfrenta diariamente. 

O livro é particularmente relevante por abordar a pandemia de COVID-19 do ponto de vista dos profissionais de saúde. Médicos, enfermeiros e outros trabalhadores de apoio são mostrados na linha da frente de uma das crises sanitárias mais mortíferas da história recente, dando-nos uma perspetiva rara e urgente sobre o impacto humano da pandemia. Esta abordagem proporciona uma visão íntima e realista de um evento global que afetou todos, mas que poucas vezes foi narrado de forma tão direta e pessoal. E ainda menos em banda desenhada. Lembro-me, por exemplo, que a obra Você Não Me Conhece, de Guilherme de Sousa, editado em Portugal pela Lamb' Lambe Editora, também abordou este tema, de modo interessante. Cada obra tem as suas valências, claro está, mas devo dizer que a ressonância deste Dormindo Entre Cadáveres acaba por ser maior.

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate
Isto porque a densidade da história é notável, sendo várias as passagens em que o leitor sente o seu estômago a ser esmurrado pela crueza dos acontecimentos e pela descrição detalhada do sofrimento e da morte. Não se trata de um horror gratuito, mas de uma representação honesta das condições extremas vividas nos hospitais amazónicos, transmitindo a intensidade da experiência sem recorrer a dramatizações artificiais. Pelo menos, foi essa a ideia com que fiquei.

Essa crueza no relato biográfico é, aliás, uma das maiores forças da obra. Luís Moreira Gonçalves não tenta tornar a narrativa mais bonita ou mais tenebrosa do que aquilo que foi, e opta por apresentar os factos com uma honestidade brutal que impressiona e comove. 

Outro ponto relevante é a crítica direta ao sistema de saúde brasileiro, especialmente à burocracia que dificulta o trabalho dos profissionais na linha da frente. O livro não suaviza as insuficiências institucionais, mostrando de forma clara as falhas de organização, falta de recursos e obstáculos administrativos. Mas, mais uma vez, esta crítica é feita de maneira franca, sem espaço para elogios superficiais, e convida o leitor a refletir sobre paralelos possíveis com outros sistemas de saúde, nomeadamente o português. É certo que a situação vivida em Portugal esteve longe, em gravidade, daquela experenciada no Brasil, mas, ainda assim, não deixa de ser curioso e bem-vindo este exercício de comparação entre os problemas do sistema de saúde brasileiro e português.

Sendo esta a primeira obra de banda desenhada de Luís Moreira Gonçalves, ficamos - nós, leitores - com o bónus adicional de vermos nascer um novo argumentista de BD, capaz de traduzir experiências reais em narrativa gráfica com grande eficácia. 

Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate
O autor das ilustrações é, conforme já mencionado, o brasileiro Felipe Parucci que enriquece a narrativa, traduzindo o caos e a intensidade emocional em imagens poderosas, carregadas de movimento e ritmo acelerado. 

O desenho, a preto e branco, é rápido e dinâmico, complementando a narrativa de forma eficiente. Por vezes, os traços parecem um esquisso nervoso, refletindo o ritmo acelerado e caótico da situação retratada. Embora alguns leitores possam considerar este estilo de desenho algo simplista, tenho que afirmar que considero que, para a obra em questão - e é bom ter sempre isso em conta - funciona perfeitamente com o tom do relato, reforçando a sensação de urgência, tensão e intensidade emocional, em vez de distrair com excesso de detalhes. 

A edição da Livros Zigurate é em capa mole, baça e com detalhes a verniz, que inclui badanas. No interior, o papel utilizado é baço e de boa qualidade, tal como também assim o é o trabalho de impressão e encadernação. No final do livro, há ainda um posfácio e algumas fotografias que atestam a veracidade do relato. Apreciei que as falas de Luís Moreira Gonçalves, o único português desta história, tenham sido adaptadas para o português de Portugal, deixando-se as restantes falas no português brasileiro. Penso que esta opção fez sentido.

Em resumo, além de contar uma história pessoal e comovente, Dormindo Entre Cadáveres oferece uma reflexão sobre a condição humana em situações extremas. Mostra como a pandemia de COVID-19 expôs vulnerabilidades, fortalezas e a resiliência dos profissionais de saúde, mas também como as limitações estruturais e sociais podem amplificar tragédias. É um relato essencial sobre esta maldita pandemia que emociona, ensina e desafia o leitor a confrontar-se com a realidade crua e complexa da linha da frente médica.


NOTA FINAL (1/10):
8.5

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Dormindo Entre Cadáveres, de Luís Moreira Gonçalves e Felice Parucci - Livros Zigurate

Ficha técnica
Dormindo entre Cadáveres
Autores: Luís Moreira Gonçalves e Felipe Parucci
Editora: Livros Zigurate
Páginas: 320, a preto e branco
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 23 x 18 cms
Lançamento: Setembro de 2025

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