Análise: Você Não Me Conhece

Você Não Me Conhece, de Guilherme de Sousa

Foi recentemente que a editora Lamb' Lambe lançou em Portugal a sua segunda aposta em banda desenhada. Depois do muito interessante Os Olhos de Barthô, de Orlandeli, a editora independente editou agora o livro Você Não Me Conhece, do autor brasileiro Guilherme de Sousa.

Esta é uma banda desenhada autobiográfica que resulta da experiência intensa vivida por Guilherme de Sousa durante um dos períodos mais marcantes da história recente: a pandemia de Covid-19. Trata-se de uma obra extremamente pessoal que se destaca pela forma como o autor transforma a dor e o isolamento em arte e reflexão. Escrito e desenhado pouco tempo após a alta hospitalar de Guilherme de Sousa, o livro é um testemunho cru e sincero sobre a fragilidade humana num momento de crise sanitária e emocional, experenciada à escola global. Se há coisas pela qual todos nós passámos, de uma forma mais ou menos difícil, consoante as (in)capacidades de cada um de nós, foi esta pandemia de Covid-19, razão pela qual este livro se transforma automaticamente num documento para a posterioridade sobre um evento recente e inolvidável.

A narrativa centra-se na experiência individual de Guilherme de Sousa durante o ano de 2020, ano em que o mundo parou. É com um traço "cartoonesco", aparentemente leve, que o autor nos mergulha nas suas memórias pesadas sobre um período difícil em que teve que enfrentar um isolamento profundo, uma crescente tensão familiar, um medo constante da morte e a solidão extrema de estar internado num quarto de hospital. O contraste entre a estética visual e o peso emocional do conteúdo é, pois, intencional e eficaz: o estilo gráfico aproxima o leitor, enquanto o conteúdo nos consegue atingir.

Guilherme de Sousa foca-se nos pequenos momentos, nos silêncios pesados, nas interações mínimas que, naquele contexto, significaram tanto. Esses pormenores, como um gesto, um olhar ou um corredor vazio, ajudam a construir uma atmosfera realista e angustiante, que muitos leitores reconhecerão como semelhante à sua própria vivência - ou à vivência dos seus - durante a pandemia.

A experiência da pandemia é ainda recente, mas já é distante o suficiente para ser representada artisticamente com alguma clareza. Guilherme oferece-nos, pois, um retrato emocional do tempo em que tantas famílias foram separadas, em que a culpa por não se estar presente foi constante, e em que a saúde mental de milhões foi colocada em risco. Diria até que as consequências psicológicas desse tempo ainda são difíceis de apurar, e obras como esta funcionam como registos relevantes dessa vivência coletiva.

É importante realçar também a coragem do autor em se expor com tanta transparência. Guilherme de Sousa não procura heroísmo, nem disfarça as suas fragilidades. Pelo contrário, abraça-as. Mostra o medo, a ansiedade, a raiva e a tristeza com uma honestidade desarmante. E numa cultura que muitas vezes valoriza a (aparência de) força e o heroísmo, é refrescante - e, por ventura, comovente - encontrar um autor que opta por contar a sua verdade sem filtros.

Voltando ainda à questão do desenho, o estilo "cartoonesco" do autor pode parecer à partida dissonante com a gravidade dos temas aqui tratados, mas considero que funciona com surpreendente eficiência. A expressividade das personagens, a clareza das emoções nos rostos e nos gestos, servem bem a história. Ainda assim, fica a sensação de que, se em vez de ser a preto e branco, o livro fosse a cores, o mesmo poderia ter alcançado uma nova camada de profundidade emocional e impacto junto do leitor. A capa, aliás, já demonstra isto mesmo que acabo de sugerir: é vibrante, sugestiva, e estabelece imediatamente uma ligação emocional com o leitor.

A edição da Lamb'Lambe é em capa mole, baça, com badanas e com verniz localizado. Tem bastante bom aspeto. No interior, o papel tem uma qualidade aceitável e um bom trabalho de impressão e encadernação. O livro abre com um prefácio do editor Leonardo Guajardo Tzung e fecha com dois posfácios do autor, e ainda com um conjunto de notas adicionais sobre os eventos retratados nesta história. São bons acrescentos à obra. 

O livro é lançado em português brasileiro. Não me choca, pois qualquer português compreenderá bem a totalidade do livro, mas, mesmo assim, considero que tinha sido simpática uma aproximação ao mercado português com a adaptação para o português de Portugal. O próprio título da obra beneficiaria disso, conseguindo consequentemente chegar a mais pessoas, não tenho dúvidas.

Em suma, Você Não Me Conhece toca em aspetos universais da experiência humana durante a pandemia de covid 19: o medo de se perder quem se ama, o sentimento de impotência, a insegurança do desconhecimento, a fragilidade das relações familiares sob tensão e, acima de tudo, a luta pela preservação da identidade num momento em que tudo parece ruir. É um livro que fala de feridas ainda recentes e que expõe de forma corajosa. Uma excelente aposta para quem procura um testemunho honesto sobre um tempo que nos marcou a todos. Vale a pena conhecer porque, no fundo, ao lermos Você Não Me Conhece, acabamos por nos conhecer melhor a nós mesmos, também.

NOTA FINAL (1/10):

7.8

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

Você Não Me Conhece

Autor: Guilherme de Sousa

Editora: Lamb' Lambe

Páginas: 98, a preto e branco

Encadernação: Capa mole com badanas

Lançamento: Maio de 2025