Depois das fantásticas adaptações para banda desenhada de Drácula e Frankenstein, do autor francês Georges Bess, chegou-nos recentemente a sua terceira adaptação de clássicos da literatura mundial. Desta vez, a obra em questão é O Corcunda de Notre Dame (no original Notre Dame de Paris), de Victor Hugo, que, à semelhança das obras acima referidas, é publicada por cá pela editora A Seita, na sua coleção Nona Literatura.
Esta banda desenhada mergulha-nos na atmosfera sombria e intensa da Paris medieval, onde a catedral de Notre Dame se impõe como uma personagem quase viva, testemunha silenciosa das tragédias humanas que ali se sucedem em catadupa. Georges Bess opta por uma abordagem profundamente fiel ao original, distanciando-se das versões mais ligeiras e populares, como a dos estúdios Disney, o que confere à narrativa um peso e uma densidade que a tornam uma experiência mais exigente, mas também, diria, mais recompensadora.
E ao contrário da célebre adaptação da Disney que se centra quase exclusivamente na personagem do corcunda Quasimodo, esta adaptação, à semelhança do texto original, divide-se mais irmãmente entre as personagens de Quasimodo, o corcunda que vive enclausurado na catedral, Esmeralda, a jovem cigana de beleza hipnótica, e Dom Frollo, o arquidiácono atormentado por desejos reprimidos e consequentes culpas. Aparecem ainda várias outras personagens que acabam por reclamar para si mesmas mais peso e relevância para o desenlace da história. A teia de sentimentos contraditórios, paixões proibidas e impossíveis, bem como os variados conflitos morais, habilmente arquitetada por Victor Hugo, é trazida à 9ª arte por Georges Bess, que consegue reproduzir todo esse peso narrativo, revelando-se, novamente, um mestre na forma como conduz a narrativa visual, equilibrando a grandiosidade do texto com uma componente visual notável.
Não posso negar que sou um verdadeiro fã destas adaptações de Georges Bess. Gostava do trabalho do autor em O Lama Branco ou Juan Solo, mas é nestas grandiosas adaptações a preto e branco que o virtuosismo do autor mais sobressai. Autor que, já agora, divide os créditos da criação da obra com a sua esposa, Pia Bess - embora essa informação não conste na capa da obra.
Do ponto de vista gráfico, este álbum é verdadeiramente uma obra de arte! O domínio do preto e branco por parte de Bess mantém-se fulgurante. As sombras profundas, os contrastes intensos e a expressividade das personagens conferem à obra um caráter dramático, ao mesmo tempo belo e perturbador. Os detalhes da arquitetura gótica de Notre Dame, os rostos marcados pelo sofrimento ou pela obsessão, tudo está meticulosamente desenhado, revelando um cuidado quase obsessivo com a fidelidade estética e emocional, por parte do autor.
Os desenhos do autor já me tinham arrebatado em Drácula e Frankenstein e voltam a fazê-lo neste O Corcunda de Notre Dame, embora reconheça que, em certos momentos deste livro - não tantos assim - se sinta uma ligeira oscilação no aprumo visual. Nada de muito gritante, mas um olho atento encontrará algumas vinhetas que aparentam ter recebido menos tempo ou atenção, com fundos mais vazios e traços menos elaborados e mais rabiscados. Reitero que são ligeiras oscilações e que, olhando para o todo, não comprometem a obra, mas fazem-se notar, sobretudo porque o padrão geral é tão elevado.
Há momentos particularmente memoráveis nesta adaptação como certas cenas de grande tensão dramática ou passagens visuais que nos tiram o fôlego pelo seu impacto artístico. A cena da execução iminente de Esmeralda, por exemplo, é retratada com uma intensidade visual que encapsula perfeitamente o desespero e a injustiça da situação. Da mesma forma, a solidão de Quasimodo ganha vida nas sombras do campanário, numa representação comovente e profundamente humana.
Em termos de adaptação narrativa, a densidade da história original de Hugo impõe-se de forma clara. A complexidade dos enredos secundários, os múltiplos pontos de vista e as reviravoltas constantes podem tornar a leitura algo desafiante, reconheço. Mas se isso puder ser considerado como menos positivo, não será por culpa de Georges Bess, que opta deliberadamente por manter a estrutura e a profundidade da obra original, mas da própria história de Victor Hugo que, quanto a mim, tem alguns volte faces algo rebuscados. Enfim, convém não esquecer que a obra foi originalmente escrita em 1831, há quase 200 anos.
Portanto, será nesse sentido, na tal componente narrativa e não tanto na visual, que na comparação com as anteriores adaptações de Georges Bess, este O Corcunda de Notre Dame fica uns ligeiros furos abaixo. Quer Drácula, quer Frankenstein, apesar da sua densidade temática, apresentavam uma fluidez narrativa ligeiramente superior. Talvez isso suceda pelo facto de O Corcunda de Notre Dame ser mais enraizado em conflitos humanos e menos centrado em elementos fantásticos.
Seja como for, estamos aqui a falar de detalhes, importando destacar também o respeito quase reverencial com que Georges Bess trata a obra de Victor Hugo. Sente-se que o autor tem um gosto especial por esta história, o que se reflete na forma cuidadosa como a representa. E ao contrário de adaptações mais livres, esta é um tributo fiel, onde as palavras e os silêncios são igualmente poderosos. A escolha de manter o tom trágico, sem aligeirar a narrativa, é uma decisão corajosa e honesta, que dá credibilidade à obra.
Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz, bom papel baço no miolo e um bom trabalho em termos de encadernação e impressão. Há ainda um caderno extra de 10 páginas que nos oferece um magnífico conjunto de ilustrações de Georges Bess.
Em suma, neste O Corcunda de Notre Dame, Bess entrega-nos mais uma vez uma obra de primeira linha, marcada por uma estética requintada e uma fidelidade intransigente ao texto de origem. Pode não ser a sua adaptação mais acessível ou imediata, e ficar uns pontos abaixo de Frankenstein ou Drácula, mas é um trabalho de elevado mérito artístico, que alia a qualidade gráfica à densidade literária, e que, por isso, é fortemente recomendado.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Corcunda de Notre Dame
Autor: Georges Bess
Editora: A Seita
Páginas: 216, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 225 x 290 mm
Lançamento: Maio de 2025
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