Uma das mais recentes bandas desenhadas editadas pela editora A Seita - e, desta feita, através da chancela Comic Heart - foi este A Aventura do Sapo - Caos e Coaxos que hoje vos trago, que junta pela primeira vez a dupla nacional formada por André F. Morgado, no argumento, e Kachisou, no desenho. Autores dos quais, de resto, tenho as melhores impressões com base nas suas obras, das quais posso citar, por exemplo, O Infeliz Pacto de George Walden (Morgado) Quero Voar (Kachisou) ou as recentes adaptações de obras clássicas da literatura portuguesa da coleção da Levoir, que André Morgado tem feito com vários ilustradores brasileiros.
Olhando para as obras criadas até então, este A Aventura do Sapo - Caos e Coaxos apresenta-se como uma alternativa deveras diferente face àquilo que os autores nos deram até agora. Este é um livro cuja catalogação afigura-se-me difícil. Dizer que é um livro para um público mais novo está correto, sim, embora seja uma afirmação redutora, pois este é um livro munido de um humor maduro, carregado de referências, que, por isso, também pode (e deve) ser lido por um público mais adulto.
A Aventura do Sapo - Caos e Coaxos apresenta-se como uma fábula moderna, com simpáticos animais - exceptuando os amargurados ratos - e reveste-se de um humor que varia entre o inteligente e o absurdo.
A história centra-se num sapo entediado com o pântano e com a sua rotina, que, num impulso de inconformismo, procura uma nova aventura. O que se segue, no entanto, não é o épico tradicional que o protagonista poderia imaginar, mas sim uma espiral de acontecimentos caóticos onde os animais passam a conseguir adquirir as características que nunca tiveram, como a capacidade para falar, para voar, para cantar, para saltar... enfim, para viver tal como os humanos. E tudo isso é conseguido através de amuletos mágicos comercializados pelo Sapo. Entretanto, a comunidade dos ratos decide ficar com enormes corpos musculados e procura a sua vingança por, historicamente, ser um classe animal tão desprezada e mal tratada por todos. No meio disto tudo, ainda entram na trama as caralhotas (pães) de Almeirim. Bem, só por aqui já dá para ver como este desejo do Sapo em alterar a sua vida nos leva a situações divertidas e inusitadas.
É praticamente impossível que o início desta aventura não nos remeta para O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame, e brilhantemente adaptado para banda desenhada por Michel Plessix, quando o sapo dessa história também sente um chamamento interior para ter uma aventura que o transporte da sua vida rotineira no pântano. Mas, claro, o Sapo deste Caos e Coaxos é ainda mais propenso à criação de caos à sua volta. E coaxos!
A estrutura da história é interessante. O início arranca um pouco aos tropeções, mas essa sensação é rapidamente contrariada quando a trama ganha corpo e se estabelece um fio condutor entre os diversos episódios e as personagens excêntricas que vão surgindo. André F. Morgado demonstra um bom domínio da narrativa ao conseguir amarrar todos os elementos aparentemente aleatórios num final que fecha o ciclo da história com coerência e até com uma subtil moral.
É nesse equilíbrio entre o nonsense e a estrutura clássica da fábula que reside uma das maiores forças da obra, porque embora o absurdo impere, nunca se sente que o autor perdeu o controlo da narrativa. Ao contrário, percebe-se uma intenção clara de brincar com as convenções do género e de subverter expectativas, algo que contribui para manter o interesse do leitor ao longo da obra. Ao longo da leitura somos constantemente surpreendidos, seja com personagens inusitadas, seja com referências pop inesperadas ou com momentos de quebra da quarta parede.
Nesse ponto, o humor do livro merece um destaque especial. À primeira vista, pode parecer algo infantil ou “silly”, como se se limitasse ao jogo de palavras ou ao absurdo pelo absurdo. No entanto, uma leitura mais atenta revela um humor multifacetado, com várias camadas de referências culturais, literárias e musicais, jogos linguísticos e até críticas subtis ao nosso quotidiano. Essa combinação torna o livro acessível a leitores mais jovens, mas também muito satisfatório para leitores mais maduros que consigam captar as referências. André Morgado tem aqui o mérito de escrever com despretensão sem cair na banalidade. Também é de salientar o trabalho de diálogo e caracterização das personagens. A escrita é eficaz e ritmada, com bons tempos cómicos e um domínio interessante do absurdo como ferramenta narrativa, sem que este se torne cansativo.
Todavia, se posso criticar algo, diria que a opção de incluir notas explicativas para duas ou três referências, como as de Tyler Durden ou de Chad Channing, por exemplo, me parece desajustada porque, lá está, se a intenção é criar um humor referencial, então parte da graça está precisamente na capacidade do leitor de reconhecer (ou não) as tais referências. Explicá-las tira-lhes impacto e, em certos casos, mata a própria piada, além de criar uma inconsistência, pois algumas referências são explicadas e outras não, o que leva à sensação de que se subestima a inteligência do leitor. Mas, enfim, é apenas uma nota pequena que, naturalmente, não belisca em nada a qualidade da obra.
Falando em qualidade, o trabalho de ilustração de Kachisou é outro ponto alto da publicação. O traço "cartoonesco", simplista, leve e expressivo, combina perfeitamente com o tom da narrativa. A paleta bicromática em tons esverdeados confere identidade visual à obra, sem a sobrecarregar.
As ilustrações complementam e, em vários momentos, amplificam o humor e o ritmo da narrativa. O Sapo tem expressões que, por si só, são inequívocas em transmitir as suas emoções e pensamentos. Admito que não comecei por adorar os desenhos da autora nas primeiras páginas, mas não é menos verdade que acabei o livro a achar que Kachisou tinha aqui feito (mais) um belo trabalho. E que é diferente de tudo o que a autora já nos deu nas suas outras obras de banda desenhada. Prova superada, portanto.
Refiro ainda que a pertinência deste livro no panorama editorial português também é digna de nota. O humor tem escassa representação na banda desenhada nacional, especialmente com esta combinação de humor absurdo, fábula e sátira, o que faz com que esta A Aventura do Sapo - Caos e Coaxos seja ainda mais bem-vinda. A aposta das editoras A Seita e Comic Heart revela, neste sentido, uma visão interessante e arriscada, num mercado que nem sempre valoriza este tipo de propostas.
De resto, a edição do livro é em capa dura baça, com bom papel baço e um bom trabalho quanto à impressão e encadernação. No final, como extra, há um conjunto de ilustrações sobre a obra, feitas por artistas convidados.
Em suma, A Aventura do Sapo - Caos e Coaxos traz consigo algo de lúdico e libertador, convidando à gargalhada, ao espanto e, ao mesmo tempo, à reflexão sobre o que pedimos à vida e sobre as consequências dos nossos desejos. É um livro que vale pela diversão, mas que recompensa também a atenção e a releitura do leitor.
NOTA FINAL (1/10):
7.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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